Em 14 de outubro de 2019, o juiz Ulysses Louzada, da 1ª Vara Criminal de Santa Maria, determinou que os quatro réus do incêndio na boate Kiss fossem julgados na cidade onde aconteceu a tragédia. Caberia à comunidade marcada pela catástrofe definir o destino dos acusados. De lá para cá, tudo mudou: três deles conseguiram a transferência do júri para Porto Alegre — em data indefinida — e o único julgamento que ocorreria em Santa Maria está no centro de batalha jurídica sem fim.
Os réus no processo criminal — que soma 16,6 mil páginas, distribuídas em 79 volumes — são Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann, donos da casa noturna, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, integrantes da banda Gurizada Fandangueira. Respondem por 242 homicídios e 636 tentativas, com dolo eventual (quando se assume o risco de matar). O incêndio aconteceu em 27 de janeiro de 2013. São sete anos e ninguém preso.
Em outubro do ano passado, Louzada separou o júri em dois devido à “complexidade do processo, dos fatos e as teses até então apresentadas”. Um deles começaria nesta segunda-feira (16) e o outro em 27 de abril. Ambos em Santa Maria. Dois meses depois, em dezembro de 2019, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) decidiu que Kiko deveria ser julgado na Capital e que os demais ouviriam o veredito em Santa Maria, juntos. A alteração envolvendo o sócio da Kiss atendeu a pedido da defesa, sob a justificativa de que a mudança de comarca (ou “desaforamento”, no jargão jurídico) evitaria tumultos e garantiria imparcialidade do julgamento.
Inesperada, a mudança provocou indignação na Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes, e o Ministério Público (MP) recorreu, sem sucesso. Depois disso, outros dois réus — Hoffmann e Santos — seguiram os passos de Kiko na 1ª Câmara e, em fevereiro, tiveram o júri transferido para a Capital. Restou Bonilha Leão a ser julgado em Santa Maria – a defesa não pediu alteração do local do júri por ter convicção da absolvição do cliente.
No fim de fevereiro, o MP entrou com outros dois recursos no TJ. Em um deles, insistiu para que os quatro acusados se sentassem no banco dos réus em solo santa-mariense. No outro, pediu que nenhuma sessão ocorresse até haver decisão final sobre a comarca onde todos seriam julgados. Ambos os recursos foram rejeitados, e o júri de Bonilha Leão foi confirmado.
Em março, os promotores pediram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para que Kiko, Hoffmann e Santos fossem julgados junto de Bonilha Leão. Caso contrário, solicitaram a suspensão do júri do integrante da banda. Não deu certo. O STF manteve tudo como estava, o que levou o MP a rever a estratégia. A Promotoria decidiu, então, brigar para que os quatro réus fossem julgados juntos em Porto Alegre. Para o MP, a separação pode gerar a nulidade do processo. O pedido foi feito ao TJ na última segunda-feira.
— Buscamos, desde o início, julgamento único e em Santa Maria, e fomos ao limite das possibilidades perante o Judiciário — disse, na ocasião, o subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais, Marcelo Dornelles.
O TJ negou o pedido e manteve, mais uma vez, o júri de Bonilha Leão como estava. O caso foi parar no STJ, onde ocorreu a última reviravolta. Na quinta-feira (12), quatro dias antes da audiência de Bonilha Leão em Santa Maria, o júri foi suspenso pelo STJ até que a 1ª Câmara Criminal do TJ julgue o mérito da questão — isto é, estabeleça, em definitivo, se será aceito ou não o pedido do MP pela transferência do caso para Capital.
Na sexta-feira (13), o TJ emitiu comunicado informando que o pedido do MP “deverá retornar ao relator, desembargador Manuel José Martinez Lucas, para que ele o coloque em pauta em sessão de julgamento do colegiado”. Segundo a nota, “os autos se encontram na Procuradoria de Justiça, para parecer” e poderão ser incluídos na sessão de 18 de março.
Defesa entra com recurso
Inconformada com a decisão do STJ de suspender o primeiro júri da tragédia na boate Kiss — que estava marcado para segunda-feira (16)—, a defesa do réu Bonilha Leão decidiu recorrer. O recurso foi direcionado ao Supremo Tribunal Federal (STF) no início da tarde de sexta-feira (13).
— Recebemos a decisão do STJ com indignação. Já estávamos preparados para o plenário e, em cima da hora, sai uma decisão dessas. É inexplicável, porque o mesmo ministro já havia se manifestado, lá atrás, dizendo que Santa Maria deveria julgar o caso. Isso só reforça a ideia de que o MP não tem absolutamente nada contra o Luciano (Bonilha Leão) e de que ele deve ser absolvido — afirmou Jean de Menezes Severo, advogado do réu.
Bonilha Leão era assistente de palco da banda Gurizada Fandangueira e foi ele quem acionou o artefato pirotécnico que, nas mãos do cantor Marcelo de Jesus dos Santos, deu início às chamas.
Em entrevista para GaúchaZH publicada em 11 de março, ele relembrou a tragédia e disse ser inocente — alegação contestada pela Associação de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.
Juiz da 1ª Vara Criminal de Santa Maria, Ulysses Louzada disse na sexta-feira que aguarda os desdobramentos do processo para decidir o que fazer — inclusive sobre a estrutura preparada no Centro de Convenções da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) para o primeiro júri do caso Kiss.
Os equipamentos começaram a ser montados na última quarta-feira (11) e incluem, além de mobiliário, um raio X, semelhante aos usados em aeroportos. O aparelho veio de São Paulo ao custo de R$ 98 mil.
— Não tenho como fazer pedidos, reconsideração, tenho de cumprir determinações. A decisão do STJ é superior. Venho tentando, ao máximo, a realização desse júri. Estou pronto, e a estrutura também. O advogado do réu disse que está entrando com medidas com relação à decisão. Então, vou aguardar até o último minuto — concluiu o juiz.