Pouco mais de sete anos depois da tragédia que deixou 242 jovens mortos e mais de 600 feridos, um dos quatro réus pelo incêndio na Boate Kiss começará a ser julgado na próxima segunda-feira (16), no Centro de Convenções da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Luciano Bonilha Leão era assistente de palco da banda Gurizada Fandangueira e foi ele quem acionou o artefato pirotécnico que estava na mão do cantor Marcelo de Jesus dos Santos, também réu, e começou as chamas na espuma no teto da boate. Em entrevista à GaúchaZH, Bonilha relembrou tudo o que aconteceu no dia da tragédia e afirmou que é inocente. Ele diz que apenas cumpriu o que haviam lhe pedido como funcionário da banda e acredita que será absolvido.
Além disso, reafirma o desejo de ser julgado em Santa Maria e não em Porto Alegre, como acontecerá com os demais três réus.
Um dos advogados de Bonilha, Jean Severo assegura que não há fatos que coloquem o seu cliente como culpado e que acredita na absolvição:
— Foi uma decisão correta do tribunal manter o julgamento do Luciano em Santa Maria. Todos esses recursos comprovam a nossa tese, que Luciano é inocente e deve ser absolvido. Estamos diante de um julgamento, e não diante de uma vingança privada. O Ministério Público quer uma vingança privada, juntando todos os quatro réus para ver se consegue uma condenação, porque se for analisar conduta por conduta, e assim tem que ser um julgamento, Luciano tem que ser absolvido.
Além de Marcelo de Jesus dos Santos, Elisandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios e donos da casa noturna, serão julgados em Porto Alegre, ainda sem data definida. Confira trechos da entrevista.
O que espera do júri?
São sete anos em que venho lutando para trazer a verdade, e isso está dentro de cada um. Esse processo já era para ter terminado há muito tempo. Esses pais estão lutando por justiça há tanto tempo. Entro nesse júri triste, porque eu era um trabalhador que estava cumprindo ordens. Não posso chegar para um pai e questionar a situação dele, porque a dor deles é grande, acho que eles têm que pedir justiça. Mas não essa justiça que eu penso, não por ser eu. Tenho uma história, sempre trabalhei, quem me conhece bem sabe quem sou. Vou para o júri triste, mas vou porque quero terminar isso. Acho que está na hora. Preciso dar um norte na minha vida. Mas não vai existir vitorioso nesse júri. Estava prestando um serviço. Estava fazendo o meu trabalho.
Não foi o meu ato que deixou 242 mortos. Estava simplesmente trabalhando.
Há dois caminhos, absolvição ou condenação. Como você lida com as duas possibilidades?
A condenação é algo que nunca passou na minha cabeça. Mas se tiver a condenação, será a maior injustiça que vão fazer. Condenando um roadie (assistente da banda) estará sendo feita justiça? Se for absolvido hoje, no outro dia já tenho que buscar por justiça porque também tentaram me matar lá dentro. Penso que a Kiss não devia existir, e se existiu foi porque o sistema é corrupto. Em nenhum momento posso pensar que existiu uma maldade minha, que aceitei um risco que poderiam acontecer as coisas. Jamais a banda entraria na boate para querer matar alguém ou perder um ente querido, que era o Danilo (Jaques, gaiteiro da banda e que morreu no incêndio).
Quem são os culpados?
Existem responsabilidades: dos proprietários da casa, mas também da prefeitura, dos bombeiros, do Ministério Público. A Kiss era uma boate que estava há três quadras da prefeitura. Certamente o prefeito deve ter passado lá, os ficais, os bombeiros, o Ministério Público entrou lá dentro e tirou foto do mesmo ferro que me trancou lá dentro (ninguém ligado ao Ministério Público ou à prefeitura foi responsabilizado no caso. Bombeiros responderam na justiça militar). Se a tragédia acontecesse em outra boate, será que a Kiss estaria aberta hoje?
A banda não teve responsabilidade?
A banda nunca usou artefato que não era permitido para usar lá dentro. A banda usou um artefato que se usava cotidianamente na sociedade de Santa Maria. A banda não tinha esse conhecimento de que um podia usar dentro, outro não. As pessoas morreram por uma situação. Se naquele dia um extintor estivesse funcionando, ninguém teria morrido. Se uma espuma tóxica que mata não fosse permitida vender no Brasil. Se aquela boate que era um labirinto estivesse fechada, ninguém teria morrido. Quando aquelas pessoas estavam felizes na fila para dançar, se divertir, a banda também estava feliz para se apresentar, para estar junto dos seus fãs. Não posso dizer que a banda deixou uma história que foi lá e matou as pessoas. Será que o Danilo queria se matar, então? Por que o Danilo morreu? Ele morreu porque não pôde sair de lá.
Como está a sua vida desde a tragédia?
Nesses sete anos, vejo que Santa Maria não aprendeu nada com a tragédia. Continua a mesma coisa. Salões superlotados, saídas de emergência bloqueadas. E me revolto. Vejo a dor de todos esses pais, que é legítima. Aí me vem na cabeça que sou um palhaço. Estou pagando e vejo que continua a mesma coisa. Os pais pagaram um preço muito alto, a vida dos filhos, e a fiscalização nada. Aí agora fica a expectativa de fazer o maior júri da história, mas segue tudo errado. Isso me dói.
Parece que ninguém aprendeu nada. E vai acontecer outra tragédia. Não existe fiscalização. No final de semana vi cadeiras, mesas, tudo trancando uma porta de emergência.
Nunca imaginei ser preso. Imagina ser preso ao lado de pessoas que matam crianças, que violentam mulher, dividindo uma parede com uma pessoa que estuprou uma mulher. Eu fazia telemoto, porque não poderia ir comprar esse artefato? Era mais uma tele. Depois que saí, fui para uma lavoura, em Dom Pedrito, fiquei 30 dias e fui para Tupanciretã, mas 30 dias depois voltei para Santa Maria. É a cidade que eu amo. Fui acolhido em todas as empresas que já havia trabalhado. Fui trabalhando e depois de um ano, um amigo me convidou para eu retornar a ser DJ. Lembro que a primeira festa que toquei foi de uma menina que estava se formando em Direito e na mesa que estava ao meu lado, estavam todos os delegados que me indiciaram.
Por que não pediu o desaforamento?
A tragédia ocorreu em Santa Maria. Não posso achar que um pai que perdeu um filho tenha que sair de Santa Maria para ver uma resposta sobre o que aconteceu. E o réu não pode falar para um jurado que não tem nada a ver com Santa Maria. Não concordo. Acho que a pessoa tem que chegar e falar se tem culpa ou não. Se teve, tem que falar que teve culpa. Se não tem, é preciso falar a sua verdade. O que mais quero é que esses pais me escutem. Jamais poderia imaginar que estaria trabalhando no dia 27 de janeiro, iria matar as pessoas, poderia morrer lá dentro e ser considerado um dos indiciados por toda essa tragédia. Vejo que essa luta de justiça dos pais é uma luta de justiça por mim também. Se tivesse morrido, minha mãe estaria com eles também. Como não morri, acharam que sou um dos responsáveis por isso. Mas vou ir, vou lutar, vou provar e acho que Santa Maria é competente para julgar isso. Os jurados vão saber analisar fato por fato e tenho certeza que vou ser absolvido.