Mais de sete anos após o incêndio na boate Kiss, o primeiro julgamento do caso está prestes a acontecer. O que poderia ser um alento aos familiares de vítimas, ainda gera desconforto entre eles. Em entrevista à GaúchaZH, o presidente da Associação de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Flávio da Silva, disse que os familiares foram “os primeiros condenados”, já que foi estipulado limite para a entrada de parentes no local do júri, o Centro de Convenções da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Silva acrescenta que esse sentimento se reforça pelo fato de que os locais sugeridos para instalação da tenda dos familiares nas proximidades do auditório não foram aceitos.
— Já nos sentimos excluídos neste processo no momento que estão nos afastando dali como se fôssemos um bando de pessoas sem sentido, que estivessem ali na intenção de perturbar o júri — disse.
O primeiro júri do caso, que definirá o destino do réu Luciano Bonilha Leão, está previsto para segunda-feira (16). Já o julgamento dos outros três acusados — os sócios Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann e o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos — ocorrerá em Porto Alegre ainda sem data marcada.
Ao longo dos sete anos desde a tragédia, qual sua avaliação a respeito do processo?
Para nós, familiares, foi um processo muito longo porque, durante esses anos, foram ouvidas muitas vítimas, testemunhas e, depois, os réus. Após as decisões, acabaram entrando com muito recurso, e esse processo acabou demorando muito. Alguns juristas, pelo tamanho do processo, consideram que está se resolvendo em um espaço pequeno de tempo. Mas, para nós, familiares, que perdemos nossos filhos, é tempo demais.
Qual sua posição sobre o júri desta segunda-feira? Em entrevistas, o réu afirma ser inocente. Qual o entendimento dos familiares?
Para nós, não existe essa divisão de responsabilidade entre os réus.
Na hora da decisão, todos eles vão se declarar inocentes. Mas já ficou comprovado nos autos, inclusive, por meio do depoimento de quem vendeu aquele artefato pirotécnico para o Luciano, que ele foi advertido de que o material era especificamente para uso externo. Luciano, por uma questão de uma diferença mínima de dinheiro, optou por comprar aquele que era mais barato, e deu início a essa tragédia que matou nossos filhos. Claro que todo mundo vai querer se declarar inocente porque sabe que a condenação é pesada. Só que essa economia matou a minha filha e 241 jovens, deixando 638 feridos, entre eles, vítimas que ficarão com sequelas para o resto da vida. Ele (Luciano) fala que se for condenado vai ser uma injustiça. Orientado pela defesa ele já está pressionando os jurados para garantir a absolvição. A associação não pode aceitar isso de forma alguma. Ele que prove nos autos do processo, no júri, que é inocente.
Qual a posição da associação a respeito da responsabilização de cada um dos quatro réus? Os familiares acreditam que algum tem maior ou menor responsabilidade que outro?
Para nós, não existe essa divisão de responsabilidade entre os réus. O ato de cada um deles fez um somatório na responsabilização do risco que assumiram com essa tragédia. Luciano na compra do artefato pirotécnico e no momento que liga esse material, Marcelo por ter sido inconsequente de mirar o artefato para o teto tão rebaixado revestido com aquela espuma que causou a fumaça tóxica que matou nossos filhos, Kiko (Elissandro) pela ganância em superlotar aquela boate e desrespeitar tudo que pudesse alertar para que prevenisse e zelasse pela vida das pessoas lá e Mauro é tão responsável quanto o Kiko. Os dois sócios tinham o objetivo de simplesmente ganhar dinheiro lotando a boate.
Como será a participação da associação no júri?
Ainda temos planos de colocar uma tenda nas proximidades, mas não tão perto do local onde vai ocorrer o júri. A tenda seria para receber as famílias que vem de longe e muitas têm previsão de chegar cedo. A intenção da associação é preparar as famílias porque todos estarão nervosos. Então, mandamos um ofício para a Universidade Federal de Santa Maria para colocação de uma tenda e tivemos a resposta pessoalmente do reitor de que não seria possível nas imediações que pleiteávamos, que seria nas proximidades do Planetário ou no Espaço Multiuso, que fica cerca de cem metros do Centro de Convenções onde será realizado o julgamento. Ele falou que, por determinação do doutor Ulysses (Louzada, juiz), não permitiam porque ia acontecer muito tumulto pelo assédio da imprensa. Ficou uma questão muito estranha porque o doutor Ulysses escolheu um lugar quase lá dentro de uma estrebaria para montar nossa tenda. Então, esse júri já teve a sua primeira condenação. Nós, como pais e irmãos de vítimas, fomos os primeiros condenados. Primeiro, porque foram designados apenas 200 lugares para as famílias, não daria um lugar por vítima fatal. Em segundo lugar, pela proibição da montagem da nossa tenda nas proximidades para receber as famílias. Mandaremos um ofício para o reitor novamente pedindo permissão para colocarmos uma tenda na Casa da Comunicação, que dá mais de cem metros dali. Das 242 vítimas fatais, 120 estudavam na UFSM, então, acho que teria que ter vindo de modo espontâneo essa abertura para essas famílias (leia a resposta da UFSM e do Judiciário ao final da entrevista).
A associação sempre afirmou que queria o júri de todos os réus em Santa Maria. Recentemente vocês apoiaram o Ministério Público que pediu a transferência do júri de Luciano Bonilha Leão para Porto Alegre, o que foi negado. O que provocou essa mudança de posicionamento?
Desde o início, quando ficou definido que esses réus iriam a júri, a associação teve o entendimento que deveriam ser julgados juntos em Santa Maria. Foi tentado de várias formas o reaforamento dos réus que foram desaforados, sem sucesso algum. Então, apoiamos o Ministério Público para que não haja nenhum prejuízo processual com esse júri separado em Santa Maria, e seja preciso fazer novamente. Queremos que os quatro sejam julgados juntos, uma vez que a tragédia não aconteceu de forma fracionada. Não abrimos mão disso.
Achamos que, com a realização do júri separado se corre o risco de nulidade.
Em comparação com o primeiro ano após o incêndio, o número de famílias envolvidas com a associação diminuiu. A que o senhor atribui essa desmobilização?
Entendemos que as pessoas acabaram se decepcionando com muitas coisas que aconteceram ao longo desse processo, com o resultado dele, inclusive, quando os resultados das decisões do Tribunal de Justiça começaram a ser desfavoráveis para o nosso lado. As pessoas começaram a acreditar que a falta de justiça iria se manter, porque muitos falam que isso não vai dar em nada.
O senhor foi um dos pais processados pelo Ministério Público (MP), caso que já teve desfecho com a extinção do processo. Como está a sua relação e também dos familiares com o MP?
Nossa relação com o Ministério Público refere-se ao júri. As coisas que aconteceram não são relevantes na questão deste processo.
O senhor acha que alguma coisa mudou na prevenção a incêndios ou outras questões?
Por incrível que pareça, onde deveria se ter a resposta, que seria na nossa cidade ou Estado, continuamos patinando. Tem vários locais de Santa Maria em que se percebe falha na fiscalização. Tem leis e decretos que foram feitos e ainda não estão sendo fiscalizadas. Sempre digo, sem medo nenhum de pecar, que a resposta deveria partir daqui. Deveríamos estar exportando prevenção. O último ponto negativo foi o decreto criado no final do ano passado pelo governo do Estado, prorrogando por mais quatro anos, em alguns casos até cinco, o cumprimento da Lei Kiss. Mandamos uma carta aberta para o governador e a resposta dele foi inaceitável, porque ele referiu que não poderia provocar o fechamento de hospital, de uma escola ou de um presídio. E nem a gente quer isso, não pedimos para que sejam fechados esses locais. O que queremos é que eles iniciem um processo de readequação. Infelizmente, no Brasil, o pessoal está acostumado com aquela virada de mesa no finalzinho do jogo e eles ficam esperando. Sempre tem um que vai puxar essa ponta.
A gente acredita que a justiça feita é a condenação desses quatro réus por dolo.
Para a associação, o que seria fazer justiça no caso?
Fazer justiça é ser justo. Em relação à tragédia, os motivos da denúncia, os crimes cometidos pelos quatro réus estão explícitos, não há como negar, nem eles podem negar. Negam por orientação de advogados na hora de desespero. Ligado a essa esperança de justiça tem outra coisa: no Brasil, as tragédias continuam matando porque a justiça não tem sido feita. A falta de punição faz com que as pessoas não se sintam receosas. Aconteça o que acontecer neste júri, nossos filhos não voltarão, mas ficará um legado, inclusive, para exemplo de outros falsos empresários da noite que, se eles colocarem a vida das pessoas em risco, existe punição. O que esperamos como justiça é uma conscientização dos jurados na hora de colocar o voto deles e que tenham noção do que estão fazendo. Se eles não forem justos, pessoas como esses quatro réus vão seguir colocando em risco a vida de jovens e também matando muito.
Contrapontos
O que diz a UFSM sobre o espaço destinado aos familiares
Em nota, a UFSM informou que todo o entorno do Centro de Convenções é de uso da Justiça, conforme convênio assinado entre a instituição e o Poder Judiciário. A universidade também destaca que será montada, no Colégio Politécnico, em frente ao Centro de Convenções, uma tenda de atendimento de áreas de saúde, psicologia, terapia ocupacional e enfermagem. Já em relação à solicitação da AVTSM, a UFSM afirma que “está sendo analisado o local de instalação e deve ser informado oficialmente nesta sexta-feira (13)".
O que diz o Tribunal de Justiça
De acordo com a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a decisão do magistrado proíbe apenas a instalação de tendas em frente ao Centro de Convenções.