O delegado que comandou a investigação policial do caso Kiss, Marcelo Arigony, pediu aposentadoria. Com 47 anos, sendo 21 dedicados à Polícia Civil, avalia que a tragédia na casa noturna foi "um paradoxo" em sua carreira e que o momento é de "buscar novos horizontes" e "contribuir mais". O pedido foi feito ainda na semana passada.
Sete anos após o incêndio que matou 242 pessoas em Santa Maria e às vésperas do julgamento de um dos quatro acusados que respondem criminalmente no processo, ele acredita que o júri separado e feito com somente quatro pessoas no banco dos réus não possibilitará que a justiça seja feita.
Ainda em março de 2013, pouco mais de 50 dias após a tragédia, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas. No total, o documento divulgado em 22 de março responsabilizava 28 pessoas. Contudo, o Ministério Público (MP) apresentou denúncia contra quatro pessoas pelos crimes de homicídio e tentativas de homicídio. Eles foram transformados em réus pela Justiça no dia seguinte.
São réus, no processo principal do caso, os empresários e sócios da boate Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e ainda o ajudante de palco grupo, Luciano Bonilha Leão (único com o julgamento já marcado). Bonilha tem júri previsto para começar na próxima segunda-feira (16) no Centro de Convenções da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Já o julgamento dos outros três acusados ocorrerá em Porto Alegre ainda sem data marcada.
Em entrevista à GaúchaZH, Arigony falou sobre sua trajetória na Polícia Civil, destacou de que forma a tragédia impactou em sua carreira e ainda avaliou os desdobramentos do caso na Justiça. Confira os principais trechos.
Qual o motivo do pedido de aposentadoria?
Fechei o tempo na polícia. Trabalho desde os 13 anos porque fiz alguns bicos, fui chapista e garçom. Depois, com 15 anos, comecei no Banco do Brasil, onde fiquei por quase 10 anos. Me formei em Direito na Universidade Federal de Santa Maria. Depois, fiz o concurso para delegado de polícia, que era algo da família, meu pai é delegado. Nasci e me criei dentro da Polícia Civil. Acho que chegou a hora, acho que tenho condições de contribuir mais em outras áreas. Fui delegado de polícia regional em dois locais: Santiago e Santa Maria. Em Santa Maria, exerci essa função durante quatro anos e meio e neste período, infelizmente, houve a tragédia na boate Kiss. E hoje faz quase cinco anos que estou na 2ª delegacia de polícia de Santa Maria, e acho que tenho condições de contribuir mais do que estou ali. Sou professor universitário, fiz um curso de mestrado, estou em fase de conclusão de um processo de doutorado e preciso e quero buscar outros projetos e horizontes.
Nasci e me criei dentro da Polícia Civil. Acho que chegou a hora de contribuir mais em outras áreas
De que forma a tragédia marcou a sua carreira?
A tragédia na minha carreira foi um paradoxo. Por um lado, me deu muita visibilidade e as pessoas reconhecem isso, não só em Santa Maria, como em vários municípios. Por outro lado, isso fechou muitas portas também porque o inquérito da boate Kiss acabou apontando pessoas de diversos cenários, de diversas forças políticas e, mais do que isso, diria que apontou pessoas de todas as forças políticas. Então, quando terminamos o inquérito da Kiss, ficamos muito respeitados, mas, por outro, as pessoas não queriam muita proximidade com a gente. Tanto que logo depois não teve condições, vamos dizer assim, de ficar na delegacia regional. Depois, a força política que foi apontada acabou ganhando o governo do Estado. A gestão estadual, por quatro anos, ficou por conta de quem havia sido apontado no inquérito. E isso, de certa forma, trouxe reflexos muito negativos na minha carreira.
Qual era sua maior preocupação com relação ao inquérito?
O inquérito tem dois momentos bem claros. Eu fui acordado às 5h da manhã daquele dia, fui até o local, desde aquele momento trabalhamos. Tínhamos um primeiro momento que era o domingo, quando tínhamos que resolver tudo referente ao local, a remoção dos corpos das vítimas, como faríamos o reconhecimento no Centro Desportivo Municipal. Era uma cena de guerra, foi um desafio muito grande, acredito que nenhuma polícia do mundo estava preparada para aquilo e, felizmente, não só a Polícia Civil, como os bombeiros, a Polícia Militar, a Guarda Municipal, todos os atores de segurança, assim como os de saúde, conseguiram, numa grande sinergia, levar a cabo isso e fazer todos os reconhecimentos, as coletas de materiais. Fomos muito exitosos. Deus deve ter nos ajudado, obviamente. Ainda na manhã de domingo, deslocamos uma equipe para começar a investigação e durante a tarde começamos a fazer as representações por prisões, cautelares, mandados de busca. Tínhamos dois momentos na Polícia Civil. A questão do local de crime, a realização da perícia, o reconhecimento das vítimas (com a coleta de sangue e urina), montamos uma espécie de delegacia de polícia improvisada no Centro Desportivo e o IGP (Instituto-Geral de Polícia) junto com a gente, com ilhas no meio do salão entre os mais de 200 corpos, com classes improvisadas de colégios. O IGP já puncionava o coração e a bexiga para coletar o material. Paralelamente a isso, no segundo momento, tínhamos o inquérito policial em andamento. A partir das prisões e mandados de busca conseguimos coletar ainda algumas provas que foram muito importantes no inquérito policial e que não teríamos conseguido se isso demorasse um pouco mais. O judiciário foi muito importante naquele momento por ir ao encontro dos anseios da Polícia Civil no sentido de decretar aquilo que estávamos pedindo. No dia da entrega do inquérito tínhamos um prazo para entregar e lembro que viramos a noite eu e o (delegado) Sandro (Meinerz). Ficamos até de manhã para revisar o relatório do inquérito, que tem mais de cem páginas. Olhando para trás, não vejo que a gente tenha errado. Se isso quer dizer culpa, se as pessoas tem que ir para a cadeia, isso é outra coisa que não depende só de mim. Isso, o Ministério Público, o Poder Judiciário e especialmente o juiz natural (o jurado) que vai dizer.
Olhando para trás, não vejo que a gente tenha errado. Se isso quer dizer culpa, isso é outra coisa que não depende só de mim
Como o senhor vê o desenrolar e a evolução dos fatos referentes ao caso?
A justiça é morosa e não é culpa do juiz, do promotor, de ninguém. Temos um processo no Brasil que é muito complexo, cheio de meandros e chicanas. E esse cumprimento do devido processo legal, ao meu ver, e os advogados criminalistas talvez queiram me espancar por dizer isso, tem muita curva. Estamos aí há sete anos, sei que é um processo de uma magnitude muito grande. O inquérito foi o maior que o Estado fez e talvez esse júri seja o maior que a Justiça do Estado veja. Embora ache que não tem justiça nesse plano terreno que vá acalentar o coração de um pai e de uma mãe que perdeu um filho naquele dia, tenho impressão que as pessoas vão se frustrar esperando por uma justiça que talvez não venha neste sentido.
Um réu um réu pode ser responsabilizado em maior ou menor grau que outro?
Exatamente, corremos o risco. A situação é peculiar ainda porque o réu que vem a ser julgado em Santa Maria é, vamos dizer assim, um dos coadjuvantes, não é um protagonista. Os quatro têm responsabilidades no meu ponto de vista, assim como todos que apontamos, na minha opinião, têm responsabilidades. E isso não quer dizer que as pessoas tem que ir para a cadeia por 30 anos por isso. Ter responsabilidade pelo evento é uma coisa, agora, quem vai dizer que é culpado, se é culpa ou dolo, é o jurado.
O senhor acredita que será feita justiça?
Da maneira como está, infelizmente, não vejo justiça sendo feita
Acho que não. Primeiro porque não há justiça neste plano terreno que vá acalentar o coração de um pai e uma mãe. Infelizmente, as pessoas vão se frustrar nesse sentido. Em segundo lugar, porque precisaríamos, para ser feita justiça, de mais gente sendo julgada. Existem diversos atores que têm responsabilidade no caso e que tinham que estar ali. Não acredito que condenar esse rapaz que está no primeiro julgamento represente justiça. O direito e a justiça, por vezes, são coisas diferentes. Para mim, a justiça tem que ser feita para todos. Não adianta condenarmos apenas uma pessoa, três ou quatro, enquanto há diversas outras que também tem responsabilidades. O caso Kiss é um conjunto de negligências que gerou o evento, então cada uma daquelas pessoas tem um pouquinho de responsabilidade, o que não quer dizer dolo/culpa. Cada um daqueles apontados tem uma conduta comissiva ou omissiva que levou ao evento danoso. Então, se dividíssemos a responsabilidade de cada um, se cada um abraçasse a sua responsabilidade, teríamos justiça, ainda que pequena. Ainda que cada um fosse condenado a pagar uma cesta básica, poderíamos dizer que, pelo menos, a justiça dos homens foi feita. Mas, da maneira como está, infelizmente, não vejo justiça sendo feita.