Enquanto conquistava a medalha de ouro nos 200m T64 (dedicada a atletas com amputação unilateral abaixo do joelho) no mundial de paratletismo de Kobe, no Japão, Wallison Fortes, 27 anos, tentava não pensar no que veria em seu retorno ao Brasil.
Longe do Rio Grande do Sul durante boa parte do mês de maio, ele desconfiava que, quando conseguisse retornar, não teria mais casa nem local de treinamento. E muito menos uma recepção calorosa pelas ruas de Eldorado do Sul, na Região Metropolitana, onde poderia comemorar com a família e os amigos sua classificação direta para as Paralimpíadas de Paris, em agosto.
Agora, com o olhar sereno e concentrado que sempre carrega, Wallison contempla o cenário na região central de Eldorado do Sul. O local reúne um misto de desolação e recomeço. Ainda há muito barro nas ruas, restos de móveis e eletrodomésticos amontados nas esquinas. Mas também há muitos braços trabalhando. Vários rodos e vassouras deslizam freneticamente rente ao chão, expulsando a água barrenta de volta aos bueiros.
Eldorado foi a cidade do Rio Grande do Sul mais atingida pelo desastre climático de maio, com 80,8% dos domicílios afetados de alguma maneira pela subida de importantes rios gaúchos. Na Avenida Getúlio Vargas, umas das principais da cidade, a marca deixada pela enchente ultrapassa o teto de muitas casas. E numa das residências desta rua, vive o morador ilustre do pequeno município: Wallison Fortes.
Enquanto a água subia nos primeiros dias de maio e invadia também a casa de Wallison, ele enfrentava uma jornada para sair do Brasil e chegar ao outro lado do mundo, literalmente. O campeonato em Kobe era a realização de um possível ouro inédito para o Brasil e a garantia do passaporte carimbado para competir em Paris. Depois disso, o desafio seria retornar logo ao seu Estado, ver de perto os estragos na cidade que o abraçou desde os seis anos e também ganhar o afago dos pais, Marcos e Regina Fortes, ambos com 53 anos.
— Saí de casa com água na altura do joelho. Levamos algumas coisas para a casa do meu irmão, aqui perto, meus pais também ficaram lá. A gente pensou que a água não chegaria na casa dele. E fui para Porto Alegre na casa da minha namorada, o aeroporto já estava fechado, então precisaria partir de lá até Florianópolis — recorda o atleta.
Desistir da competição esteve nos planos
No dia seguinte à ida para Porto Alegre, o paratleta viu a ligação entre Eldorado e a Capital ser interrompida. Sem conseguir contato com os pais por problemas no sinal telefônico na cidade onde reside a família, Wallison considerou desistir da competição:
— A gente sabe que chegar num campeonato mundial e vencer é algo que pode acontecer uma vez na vida. Mas perto do valor de ter minha família, isso não é nada.
Depois de várias tentativas e uma conexão cambaleante, o contato foi estabelecido. Em conversa com os pais, o rapaz manteve a decisão de rumar ao Oriente. Mal sabia ele que os pais e o irmão teriam de ser resgatados com ajuda de um caminhão pouco tempo depois. Em segurança, também foram levados à Capital.
A viagem até Florianópolis foi possível graças ao auxílio do protesista de Walisson, Vinícius Saramento. Foi ele também quem doou a prótese que o rapaz usa nas competições, composta por uma lâmina especial de corrida. O equipamento chega a custar mais de R$ 30 mil.
— Meu treinador, meu protesista e toda a equipe que me acompanha são pessoas para quem eu devo tudo. Foi quem ajudou a gente antes de tudo, quando competir no alto rendimento ainda era só um sonho — agradece o morador de Eldorado do Sul.
No dia 7 de maio, Walisson conseguiu ir de Santa Catarina até São Paulo, onde encontrou-se com a delegação brasileira que iria competir no Japão. Partiram para Kobe no dia 9.
Depois da chegada no Exterior, começou a preparação para o campeonato. Walisson competiu primeiro nos 100m rasos, para "conhecer a pista e também ganhar confiança", como ele define. No dia 24 de maio, veio a primeira prova nos 200m, onde o paratleta tem melhores tempos e desempenho. Com a primeira colocação, classificou-se para a final, no dia seguinte.
— Sinto que corri muito melhor na semifinal. A final tinha uma energia diferente, o estádio tinha bem mais gente assistindo, até a iluminação era diferente. Foi uma experiência que nunca tinha sentido — recorda ele, fazendo um metáfora bem-humorada sobre a diferença entre jogar futebol numa praça com amigos e em um estádio lotado.
Na pista, Wallison conquistou a segunda posição, atrás do italiano Francesco Loragno. No entanto, o adversário foi desclassificado por pisar na linha, deixando o brasileiro com o ouro. Com o resultado, o atleta garantiu vaga para os Jogos Paralímpicos de Paris.
Retorno e surpresa em Eldorado
Recebido na Base Aérea de Canoas no dia 28, Wallison enfim retornou ao braços da família. Mas ainda faltava ver com os próprios olhos os estragos deixados pela enchente em Eldorado do Sul. A família tentou blindar o atleta durante os dias de competição, principalmente, nas informações sobre a casa dos Fortes, inundada até o teto do primeiro piso e tomada por mofo no segundo andar, consequência dos dias de umidade extrema.
— Eu até via uma coisa ou outra nas redes sociais, mas comecei a mexer menos no celular. Queria evitar que aquilo afetasse minha preparação também — diz Wallison.
O Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) ofereceu o centro de treinamento da Seleção Brasileira paralímpica, em São Paulo, para Wallison treinar até os jogos de Paris. Mas ele queria ver a família e a casa de perto, ter certeza de que todos estavam bem, dentro do possível. Quando pisou na cidade, acompanhado dos pais, tomou um susto. Ruas tomadas por lixo e partes da cidade ainda alagadas. Os móveis do primeiro piso de sua casa foram todos inutilizados e descartados. Até o gesso do teto e partes do forro de PVC foram arrancadas.
As medalhas conquistadas ao longo do tempo, apesar de necessitarem uma limpeza do mofo causado pela umidade, estavam salvas no segundo piso. Com a lanterna do celular, o garoto ilumina o expositor de conquistas. A casa tem energia elétrica, mas ainda é um risco ligá-la, em razão da água infiltrada nas fiações do primeiro piso.
— Ver tudo isso foi uma coisa que me deixou tocado. Fiquei pensando em como poderia ajudar minha família, pensei até em leiloar minha medalha de campeão mundial. Sei do valor que tem para mim e não venderia por um valor qualquer. Mas foi algo que chegou a passar minha cabeça — recorda o campeão mundial.
Mudança para Porto Alegre e pista provisória de treinamento
Viajar de Eldorado a Porto Alegre nestes dias pós-enchente não é tarefa fácil. Os congestionamentos chegam a transformar o trajeto normal, que poderia ser feito em cerca 30 minutos, numa jornada de mais de duas horas. Por isso, enquanto tenta recuperar a casa, a família Fortes se mudará para Porto Alegre.
O local de treinamentos que era usado pelo rapaz, no Centro Estadual de Treinamento Esportivo (Cete), no bairro Menino Deus, está ocupado por famílias abrigadas da enchente e também é centro de armazenamento de doações. O comitê paralímpico fez contato com a Sogipa, no bairro São João, e conseguiu a cedência do espaço para que Wallison prepare-se para as Paralimpíadas de Paris, que começam no dia 28 de agosto.
— Vamos tentar nos mudar para um local próximo da Sogipa, permitindo que o Walisson treine assiduamente estes três meses antes da competição — explica o pai do paratleta, que é funcionário de uma empresa aérea no aeroporto de Salgado Filho.
Trabalhando em um setor exigente como a aviação e responsável por cálculos importantes no balanceamento de peso das aeronaves que ligam o país e o mundo, Marcos confessa que isso influencia nos estímulos que passa a Wallison. Rotinas de treino, alimentação, horários para dormir e acordar, todo o planejamento montado pela equipe de Wallison conta com o apoio do pai para ser cumprido em casa.
— Ele brinca que sou chato demais às vezes, na cobrança com os treinamentos, a aplicação para obter resultados. Mas ele mesmo abre mão de várias coisas por conta própria, porque quer ser cada vez melhor no esporte — comemora o pai.
A mãe de Wallison torce para que ela e o marido consigam acompanhar o filho em Paris. Como funcionário de empresa aérea, Marcos teria benefícios na compra da passagem, mas com partida de Porto Alegre. Agora que aeroporto da Capital está fechado pelo menos até dezembro, o casal pensa em opções para viajar até a Europa e ver o filho competindo.
— Estou ansiosa. Queremos estar lá com ele e fazer parte desta conquista — diz Regina.
As Paralimpíadas de Paris começam em 28 de agosto, mas Wallison e a delegação brasileira devem ir algum tempo antes para Europa, fazendo um período de aclimatação antes dos jogos.