Na Espanha há 22 anos, o ativista Yeison Garcia dedicou a sua vida para estudar, compreender e, acima de tudo, combater o racismo. Cientista político, pesquisador, produtor cultural e poeta, o colombiano de 31 anos milita pela causa negra na Associação Espaço e Consciência Afro, em Madrid, e também em todas as suas áreas de atuação. Ele avalia que um dos motivos que contribui para a existência de atos racistas como os que ocorreram contra Vinicius Junior é a total falta de debate que existe sobre a questão racial no país ibérico.
Em entrevista à GZH, na Espanha, Garcia afirma que o racismo espanhol é agravado pelo passado imperialista do país. Segundo o pesquisador, a Espanha ajudou a "construir a ideia do racismo moderno".
— A Espanha nunca iniciou um debate verdadeiro sobre o racismo. Toda vez que ocorre um caso, por exemplo, como o do Vinicius Junior, que tem mais atenção da mídia, ninguém aprofunda o fato. Não se debate o fato de o racismo ser uma questão sistêmica e histórica. A Espanha desempenha um papel muito importante na construção do racismo moderno. Foi na Espanha em que ocorreu o debate entre Bartolomé de las Casas e Ginés de Sepúlveda, se os povos povos originários poderiam ser considerados humanos ou não, pois se fossem considerados humanos, a dominação das Américas não seria legítima. Foi esse debate que constituiu a ideia de raça que construiu o racismo moderno. E esse debate foi aqui na Espanha. A construção do arcabouço ideológico que justificou a escravização dos negros africanos também foi construída principalmente na Espanha. E isso é uma coisa que não se discute aqui de jeito nenhum. Portanto, ao não se discutir isso, significa que a Espanha não se propõe a tomar medidas reais, não se propõe a estabelecer um marco político e jurídico real para enfrentar de verdade as consequências do racismo — crítica.
Garcia se refere ao episódio conhecido como Controvérsia de Valladolid, um debate moral e teológico promovido pelo Império Espanhol em 1550, quando a nação ibérica, poucos anos após iniciar a colonização da América, estava em debate se seria moralmente justificável dominar os povos indígenas e convertê-los à força ao catolicismo.
Neste debate, o jurista e político Bartolomeu de las Casas ficou conhecido como defensor dos povos nativos, enquanto o teólogo Juan Ginés de Sepúlveda argumentava que os índios seriam "seres inferiores", o que, segundo o seu entendimento, justificaria a sua dominação por parte dos europeus.
Confira a íntegra da entrevista do cientista político, pesquisador, produtor cultural, poeta e ativista colombiano Yeison Garcia, 31 anos a GZH:
Na sua opinião, por que o Vinicius Junior foi alvo nesta temporada de insultos racistas tão duros e de forma tão repetitiva?
Porque eu acho que o Vinicius cumpre um papel de negro que os racistas espanhóis não estão acostumados. Ele é uma pessoa que se orgulha de ser negra em um espaço tão importante como o campo de futebol e que, ao invés de baixar a cabeça ou se intimidar com os insultos racistas, o que ele faz é levantar a cabeça e levantar a voz contra os racistas. Acho que essa atitude de não mudar o seu jeito e não baixar a cabeça tem feito com que todas aquelas pessoas que queriam intimidar o Vinicius Junior com cânticos racistas sentissem muito mais raiva, pois viram que não conseguiam intimidá-lo. Pelo contrário. A cada xingamento racista, o Vinicius ficava mais forte. Isso os deixava irritados e os levava a insultá-lo ainda mais.
Como é a sua vida na Espanha no que diz respeito ao racismo cotidiano?
Eu nasci em Cali, na Colômbia. Vim para cá com nove anos e, desde então, eu e minha família sempre vivemos uma situação de lutar. A minha mãe lutou para criar dois filhos tendo que aguentar o racismo. Ela é garçonete e, em muitas ocasiões, ela contou que sofreu insultos racistas, mas que, de alguma forma ela, teve que aguentar para continuar trabalhando. Por um lado, há uma parte da sociedade espanhola que é aberta aos imigrantes e sempre tentou nos integrar. Por outro lado, há uma outra parte que só coloca barreiras a nós. Já sofri várias situações de racismo na escola e em espaços de lazer, com seguranças, por exemplo, não me deixando entrar em boates. O racismo é uma questão que se desenvolve em todos os âmbitos em que a vida se desenvolve. Lutar contra isso é o trabalho dos nossos grupos de trabalho com afrodescendentes.
A Espanha, na sua opinião, é um país racista?
É possível dividir o racismo aqui na Espanha em três áreas: há o racismo institucional, o racismo social e racismo estrutural. Existem diversos relatos que tornam visível o racismo que existe aqui na Espanha: em blitz policiais, no acesso à educação, no acesso à saúde pública, no acesso ao emprego, no acesso à moradia e no desrespeito aos direitos trabalhistas. A saúde é negada a uma parte da população imigrante. Para um negro alugar uma casa, há um grande problema. Quando você tenta alugar, mesmo cumprindo uma série de questões econômicas, de repente começam a arranjar desculpas para não te alugarem a casa. Há ainda a dificuldade de inclusão de professores afrodescendentes no sistema educacional espanhol. Então, nas ruas, por vezes é possível perceber uma grande presença negra. Mas, em diversas áreas relacionadas a educação, administração pública e espaços de poder, não tem negro nenhum. Há na Espanha um problema de racismo estrutural e de exclusão racial de certos grupos sociais.
Há poucos negros na Espanha, certo? Isso de alguma forma atrapalha o debate sobre o racismo em comparação a países como o Brasil, por exemplo, onde há uma população negra maior?
O que acontece é que na Espanha não há dados precisos sobre quantos africanos, negros e afrodescendentes existem. É uma informação que diferentes especialistas e organizações internacionais, como a ONU, pediram à Espanha para ter. Até agora tudo o que temos são estudos muito pequenos que de alguma forma não nos dão uma realidade em termos de dados precisos sobre quantos africanos, negros e afrodescendentes existem aqui na Espanha.
O fato de não haver sequer uma estatística que aponte a quantidade de negros no país não é um sinal de que a Espanha ainda debate pouco o racismo?
Com certeza. A Espanha ainda não iniciou um debate verdadeiro sobre o racismo. Toda vez que ocorre um caso, por exemplo, como o do Vinicius Junior, que tem mais atenção da mídia, ninguém aprofundar o fato. Não se debate o fato de o racismo ser uma questão sistêmica e histórica. A Espanha desempenha um papel muito importante na construção do racismo moderno. Foi na Espanha em que ocorreu o debate entre Bartolomé de las Casas e Ginés de Sepúlveda, se os povos povos originários poderiam ser considerados humanos ou não, pois se fossem considerados humanos, a dominação das Américas não seria legítima. Foi esse debate que constituiu a ideia de raça que construiu o racismo moderno. E esse debate foi aqui na Espanha. A construção do arcabouço ideológico que justificou a escravização dos negros africanos também foi construída principalmente na Espanha. E isso é uma coisa que não se discute aqui de jeito nenhum. Portanto, ao não se discutir isso, significa que a Espanha não se propõe a tomar medidas reais, não se propõe a estabelecer um marco político e jurídico real para enfrentar de verdade as consequências do racismo.
Como é a punição ao racismo na Espanha?
Temos um sistema jurídico fraco aqui na Espanha para punir o racismo. Temos um problema muito grave de subnotificação. E o grave problema está diretamente relacionado ao fato de que as pessoas que sofrem de racismo não confiam nas instituições do Estado para serem protegidas, porque nos momentos em que os casos de racismo foram levados ao tribunal, a resposta judicial foi demorada e em muitos casos o caráter racial da denúncia foi descartado. Aqui também há uma um problema muito sério na formação de juízes e promotores para que eles entendam a gravidade da questão racial. Não há formação suficiente para que isso ocorra. E a outra é que existem alguns pontos do ordenamento jurídico que não são utilizados. Por exemplo, no Código Penal há um código no qual consta que o racismo é apenas um agravante diante de um crime. Uma das principais reivindicações que o movimento antirracista está colocando na mesa é a necessidade de uma lei mais abrangente contra o racismo, uma lei que efetivamente atue contra o racismo no campo da educação, da saúde, do trabalho, da memória histórica, de todas essas áreas que são necessárias para que se tenha um quadro de proteção real aos negros na luta contra o racismo. Na Espanha, isso ainda não existe.
Qual a perspectiva para o futuro? Você acha que os episódios que ocorreram contra o Vinicius Junior podem ser um marco para que o racismo diminuía ou ao menos para que os espanhóis passam a debater mais o tema?
Como não há um debate profundo sobre racismo aqui na Espanha, quando há esse tipo de episódio, ele é explorado meramente pelo viés sensacionalista. O caso do Vinicius Junior, por exemplo, já virou um assunto secundário aqui. Agora já se debate mais a eleição geral que ocorrerá dentro de duas semanas. O Vinicius Junior já não importa mais. Portanto, não se pode dizer que o episódio gerou um processo de reflexão. O que podemos dizer é que foi uma oportunidade para vários meios de comunicação, tanto aqui da Espanha quanto do exterior, principalmente a mídia brasileira, verificarem que existe racismo na Espanha e dar visibilidade ao tema. Mas, realmente, nem o Estado espanhol e nem as instituições espanholas vão fazer qualquer tipo de reflexão profunda. No final, acaba se acreditando que o racismo é uma questão específica de gente ignorante ou uma mera questão moralista do que é certo ou errado. De forma alguma é tratado como uma questão histórica. É verdade que, com o caso do Vinicius Junior, de alguma forma se quebrou uma certa resistência de se falar sobre o racismo, mas ainda estamos muito longe de ter esse debate como deveríamos ter e principalmente de promovermos mudanças estruturais.