Macaco. Negro de m****. Vai comer bananas. Os insultos são tão pesados que fazem com que um jovem nascido em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, cogite deixar o Real Madrid. Dono de um futebol capaz de fazer um estádio gerar uma alegria ensurdecedora, o barulho que reverbera cada vez mais alto nos ouvidos de Vinicius Junior são as ofensas racistas. Entre outubro do ano passado e o último domingo (21), o atacante brasileiro denunciou 10 casos de injúria. Na prática, eles são maiores.
Não são situações isoladas. Dos 19 adversários do Real Madrid no Campeonato Espanhol, sete tiveram conduta inadequada contra o brasileiro de 22 anos. Algumas torcidas são reincidentes, como as de Barcelona, Atlético de Madrid e Mallorca. Os ataques não se restringem às arquibancadas. Na capital, um boneco com a camisa do jogador apareceu enforcado em um viaduto. Programas de televisão e jornais dispararam nos últimos meses contra o atacante formado no Flamengo.
Em muitos momentos, Vinicius Junior passa por um processo de "revitimização". Vítima de agressões verbais, o atacante vira o culpado por denunciar as palavras que o ferem, não baixar a cabeça para o racismo recorrente. Seus posicionamentos são atirados de volta para ele. Sua luta é minimizada. Em campo a situação se reproduz. No jogo contra o Valencia, domingo passado, nenhuma medida foi adotada, aumentando a tensão em campo, que terminou com uma confusão e com o brasileiro expulso.
— A figura dele é um pouco subversiva. A ideia dessas relações de supremacia racial, é de que o indivíduo que é considerado não humano, assuma passivamente esse lugar de omisso, de inferior, de ser subalterno. E o Vinicius não aceita essa condição. Essa coisa do gingado brasileiro e tudo mais. Ele fala, ele não aceita — argumenta a psicóloga do esporte Daniele Muniz.
A frieza dos números encobre a realidade. Em meio a toda a hostilidade, parece que está tudo bem. O camisa 20 do Real vive a sua temporada mais profícua. São 24 gols e 21 assistências em 59 jogos. A técnica e o corpo estão no ápice, mas o mental sofre o desgaste da batalha.
As ofensas, a falta de apoio, a insegurança de quando e como ele será atacado novamente abalam o lado psicológico. É uma guerra dupla a cada rodada. É preciso driblar os adversários e brigar com os racistas sem avistar um final próximo.
— O mecanismo de resposta ao estresse, ele tem um limite, então esse limite pode chegar e isso trazer implicações tanto físicas quanto mentais, como o esgotamento, sintomas físicos, que podem não só comprometer o desempenho, mas na saúde dele como um todo — explica Daniele.
Desabafo e histórico
Há indícios de que o limite possa estar mais próximo. A reação de Vini desta vez foi veemente. Exposta em forma de desabafo. Buscou fatos do passado vivido por outros brasileiros para mostrar que o problema é tão antigo quanto profundo. Em meio ao desafogo de sentimentos, deixou espaço para uma saída da Espanha. Embora drástica, a possível decisão de mudar de país seria pouco significativa em um contexto mais amplo, na visão de Renato Noguera, professor e filósofo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e estudioso da causa antirracista.
— Não se trata de ficar ou sair. Isso só pode ser respondido se as ligas, a Fifa, a CBF, se todas as organizações esportivas estivessem de acordo a celebrar um pacto antirracista. Não é uma questão do Vini Junior, mas das estruturas do futebol mundial. Ficar ou sair não faz diferença. A diferença só será feita se qualificarmos as ações e os dispositivos de um enfrentamento cotidiano do racismo no futebol — avalia.
A reação externa também foi diferente. Apoiadores surgiram com maior força. Adversários, celebridades, entidades e alguns veículos de imprensa compraram a briga desta vez. Até o governo brasileiro se manifestou. Na quarta-feira (24), no primeiro jogo depois do ocorrido, Vini ficou nas arquibancadas e mesmo assim foi homenageado por companheiros e torcedores. Fora de campo, seu cartão vermelho foi anulado. Sete torcedores envolvidos em casos contra eles foram detidos — alguns já soltos.
—Historicamente as instituições esportivas falharam miseravelmente no combate ao racismo. Isso acontece porque a falta de letramento racial não consegue acessar as estruturas. Precisamos de mais pessoas pretas preparadas para tratar o tema por dentro dessas estruturas. Sem isso, vamos continuar patinando num falso imaginário de luta antirracista – enfatiza Ricardo Pinto dos Santos, Doutor em História pela UFRJ.
Não se sabe se o suporte será duradouro. Pistas mostram que não. Técnico do Sevilla, adversário do Real Madrid neste sábado (27), José Luis Mendilibar externou irritação ao tratar do tema e chamou a luta antirracista de "moda". A partida na Andaluzia seria a primeira do brasileiro depois das ofensas. Porém, com dores no joelho, Vini foi relacionado para o jogo.
Essa será a última partida como visitante do Real na temporada. Em um futuro mais próximo, se poderá ter um termômetro da situação no amistoso da Seleção Brasileira contra Guiné, em 17 de junho, em Barcelona. Depois disso, só quando a próxima temporada começar, quando a temperatura do problema pode ter esfriado. Isso se o garoto de São Gonçalo não desistir do sonho de jogar no Real Madrid.