A segunda fase da Operação Penalidade Máxima revelou a escalada das fraudes em apostas esportivas e manipulações de resultados no país. Apurações pregressas jogaram luz sobre casos detectados em divisões menores, mas, agora, os delitos chegaram em pelo menos oito jogos da Série A do Campeonato Brasileiro de 2022, a mais tradicional competição do calendário nacional. Atletas que vestiram mantos sagrados do futebol brasileiro, como o do Santos, estão entre os 16 denunciados pelo Ministério Público de Goiás (MP-GO) na segunda fase da investigação.
Fragmentos do inquérito do MP-GO que se tornaram públicos indicam a possibilidade de participação de mais jogadores, as apurações seguem em curso, e a Polícia Federal foi escalada para reforçar a devassa. Ainda sob o choque dos fatos, um dos desdobramentos relevantes é a avaliação do impacto sobre a credibilidade do esporte, a reputação das instituições e dos profissionais, os riscos da judicialização e da perda de valor do futebol enquanto produto de entretenimento. Outra via de análise é o sangrar do futebol como paixão, patrimônio cultural e identidade regional.
— O simples fato de ter sido ventilado que o Brasileirão poderia ser interrompido ou suspenso é uma evidência do descrédito. Falta olhar humano, do esporte não só como negócio, mas como elemento cultural, que contribui para a formação dos jovens. Quais valores o futebol propõe e estão se perdendo? É um abalo. As pessoas começam a olhar para fora, com a globalização do esporte, e é natural que o torcedor, um menino, prefira torcer para o Real Madrid — avalia Rafael Marcondes, diretor de Relações Governamentais da Associação Brasileira de Defesa da Integridade do Esporte.
Para Andrei Kampff, advogado especializado em Direito esportivo e compliance, o aliciamento e pagamento de propina a jogadores para que recebessem cartões ou cometessem pênaltis atinge o “coração do futebol”.
— A integridade esportiva é pilar do jogo. Ela garante a incerteza do resultado e alimenta a paixão do torcedor. Quando se descobre que o que acontece em campo é decidido na calada da noite, fruto de corrupção, a essência do esporte é agredida e o negócio do futebol perde credibilidade. O torcedor está desconfiado. Esta pode ser só a ponta do iceberg — avalia.
Uma das possíveis consequências do descrédito é o aviltamento do futebol brasileiro enquanto produto e a judicialização por parte de instituições, patrocinadores e torcedores associados que eventualmente se sentirem lesados.
— Faz perder valor, com certeza. Quando forem negociar futuras transmissões, poderá ter menos interesse do público brasileiro e estrangeiro. Isso diminui o valor da competição e dos clubes. Afasta patrocinadores. Quem vai querer vincular sua marca a um evento ligado à corrupção? É uma questão de posicionamento — alerta Marcondes.
O ex-zagueiro do Grêmio e Corinthians William Machado, atualmente sócio da Messem Investimentos, empresa de atuação no mercado financeiro, faz ponderações sobre a extensão da crise. Ele recorda os históricos casos de manipulação de resultados ocorridos na Itália, outro templo do futebol mundial, e destaca que todos os setores da engrenagem sócio-econômica são passíveis de fraudes pelo fato de envolverem seres humanos e dinheiro.
As fraudes surgem, e o mercado cria novas ferramentas para evitar que se repitam. Eu vejo que a maioria esmagadora dos atletas não está envolvida. Não devemos analisar poucos e colocar todo mundo no mesmo pacote.
WILLIAM MACHADO,
ex-zagueiro do Grêmio e Corinthians, atualmente sócio da Messem Investimentos
— As fraudes surgem, e o mercado cria novas ferramentas para evitar que se repitam. Eu vejo que a maioria esmagadora dos atletas não está envolvida. Não devemos analisar poucos e colocar todo mundo no mesmo pacote. Se nada for feito para inibir e tornar a fraude praticamente impossível, entendo que perde valor. A CBF (Confederação Brasileira de Futebol), pelo o que acompanho, está em cima. Esse caso merece punição exemplar. Isso dá uma resposta aos patrocinadores e a quem tem interesse no futebol. Vejo como pouco provável que ocorra, de fato, uma perda de valor — avalia.
Na esfera jurídica, Kampff pontua que atletas, árbitros e técnicos envolvidos em manipulações de resultados podem ser punidos com base no Estatuto do Torcedor, com pena de reclusão de dois a seis anos, além da hipótese de suspensão ou banimento do futebol profissional. Ele vai além ao comentar as implicações de imagem.
— Clubes têm caminho para demitir por justa causa os envolvidos em atos de corrupção por ato contrário à ética desportiva. Clube envolvido em escândalo como esse tem imagem abalada e pode buscar indenização — diz o advogado especializado em Direito esportivo e compliance.
Regulamentação
Em paralelo ao estouro da operação Penalidade Máxima, o governo federal está finalizando a minuta de uma Medida Provisória (MP) que irá regulamentar as apostas esportivas no Brasil. A MP é uma medida editada pelo presidente da República cuja validade é de 60 dias, prorrogável por igual período. Ela precisa ser aprovada pelo Congresso nesse período, sob pena de perder validade. A prática da aposta esportiva é permitida no país desde 2018, mas o prazo de quatro anos para a regulamentação foi inobservado pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em consequência disso, as apostas esportivas ficaram em um limbo fiscalizatório e tributário. As principais casas movimentam altas cifras, mas seus sites estão hospedados fora do Brasil, não há políticas de prevenção e combate a fraudes, a fiscalização sobre apostadores suspeitos inexiste e sequer são recolhidos os impostos.
A regulamentação é avaliada como um mecanismo de moralização e controle. As apostas ganharam enorme público e a eventual proibição teria frágil eficácia: esbarraria na dificuldade de impedir a realização de palpites monetizados nos sites hospedados no Exterior.
— A nossa maior paixão está perdendo credibilidade. A regulamentação vem tarde. As empresas faturam bilhões e devem ser tarifadas. Quem quiser trabalhar dentro da legalidade, que trabalhe. E precisamos de controle da publicidade. Não podemos alienar crianças que estão gastando em apostas no cartão de crédito do pai e do avô — diz o senador Jorge Kajuru (PSB-GO).
Na recente onda de escândalos, as casas de apostas aparecem como vítimas. Os corruptores são apostadores que aliciam jogadores de futebol mediante pagamento de propina para que cometam determinados atos em campo. A partir de apostas múltiplas, em que diversos eventos precisam se encadear em uma mesma rodada, eles impulsionam os seus ganhos e levam as empresas a terem de pagar prêmios elevados quando a fraude tem êxito. Apesar disso, Kajuru é um crítico contundente pelo fato de as bancas virtuais não recolherem os tributos. Porém, pondera.
— Felizmente, há casas sérias que querem pagar os seus impostos. Não podemos generalizar — enfatiza o parlamentar.
Para Rafael Marcondes, diretor de Relações Governamentais da Associação Brasileira de Defesa da Integridade do Esporte, a regulamentação irá abrir dois caminhos: educação e fiscalização. No primeiro aspecto, é considerado fundamental conscientizar atletas, dirigentes esportivos e árbitros de que eles não podem se relacionar direta ou indiretamente com negócios do ramo, seja como garotos propaganda ou apostadores. A vedação já consta no Código de Ética da Fifa, mas não tem surtido pleno efeito até o momento. É possível que a MP do governo federal reforce esse veto.
— É preciso que os envolvidos entendam e implicações nos âmbitos cível, esportivo e criminal — pontua.
A análise tem conexão com pelo menos um fato descrito na segunda fase da Operação Penalidade Máxima: o zagueiro argentino Kevin Lomónaco, do Bragantino, ao ser abordado no WhatsApp por um aliciador que lhe oferecia dinheiro em troca de um cartão amarelo, questionou: “Mais e tudo legal. Não acontece nada né (sic)?”.
O corruptor responde: “Não irmão!! Mas você só precisa fazer o certo. Você precisa levar o cartão amarelo. Entendeu (sic)?”
Esclarecer o que é ético e o que é crime é considerado necessário. A avaliação é de que, com a normatização do setor, será possível monitorar os CPFs de palpiteiros, acessar bancos de dados das casas de apostas e investir em tecnologias de inteligência artificial que irão soar alertas diante de possíveis fraudes.
A regulamentação, com cumprimento das regras e punição pesada a quem não cumprir, são caminhos necessários. O debate precisa ser plural, com Estado, movimento esportivo e sociedade, todos juntos protegendo um patrimônio cultural do Brasil e um negócio importantíssimo para a economia nacional
ANDREI KAMPFF
Advogado especializado em Direito esportivo e compliance
— A regulamentação, com investimento em governança e integridade, educação, cumprimento das regras e punição pesada a quem não cumprir, são caminhos necessários. O debate precisa ser plural, com Estado, movimento esportivo e sociedade, todos juntos protegendo um patrimônio cultural do Brasil e um negócio importantíssimo para a economia nacional — comenta Andrei Kampff.
Modalidades de apostas
Após a Operação Penalidade Máxima mostrar a ênfase de corruptores em manipular a ocorrência de cartões amarelos, vermelhos e pênaltis, ganhou força o debate sobre excluir essas modalidades de aposta. Os palpites permitidos, neste caso, seriam mais focados nos resultados das partidas, gols marcados e eventos com dependência do coletivo, e não de uma ação individual dentro de campo.
Na Cúpula da Integridade Esportiva, evento que discutiu a regulamentação das apostas na quinta-feira (11), em Brasília, José Francisco Manssur, representante do Ministério da Fazenda, afirmou que o veto a esse tipo de aposta não consta na minuta da MP. Para o senador Kajuru, nenhuma discussão deve ser considerada inviável de antemão.
O senador Eduardo Girão (Novo-CE), ex-presidente do Fortaleza, considera que restringir apostas em cartões e pênaltis pode ajudar a conter fraudes.
— Essa enxurrada de denúncias irá, a partir do momento em que não se puder confiar nesse ou naquele atleta, desencadear desinteresse e afastar o público dos estádios. Restringir ajudaria, mas desenvolver ferramentas eficazes de controle e fiscalização, punir os corruptos dentro ou fora de campo, são as melhores saídas — avalia Girão.