Imagine que você é uma atleta no auge da sua carreira, tendo a oportunidade de competir em um torneio internacional de renome, o qual você se preparou a vida inteira para disputá-lo, mas acaba descobrindo, poucas semanas antes da competição, que está grávida ou então que é uma mãe, que é atleta, que sempre sonhou em ver o seu filho disputando uma competição em alto nível, mas que algum percalço fez com que você achasse que isso nunca iria acontecer.
São situações recorrentes na vida de mulheres que estão envolvidas com o esporte. Com o passar do tempo, o assunto maternidade no esporte foi evoluindo e as mulheres passaram a ter mais espaço para debater sobre o tema. Ser mãe é um desafio constante. E, independente da fase dos filhos, elas nunca deixam de estar do lado, seja apoiando com conselhos ou então gerando a vida, os guardando no ventre durante nove meses.
Este final de semana nas Surdolimpíadas, em especial, gerará situações peculiares para duas mães em Caxias do Sul, casualmente no Dia das Mães. Uma verá seu filho pela primeira vez ir em busca de uma medalha de ouro nas piscinas durante uma competição desse porte. A outra, atuará em uma partida de vôlei com a sua filha na barriga. Ambas unidas pelo esporte surdo.
A mãe do maior atleta surdo do Brasil
O sucesso de Guilherme Maia na natação tem nome, sobrenome e vem de berço: Andrea Maia. Desde pequeno, a então professora de natação incentivou os filhos a praticarem o esporte em que ela dava aulas. Com um ano, sua mãe já lhe colocou na água. A irmã, Beatriz, foi mais cedo para a natação, com apenas quatro meses. Em meio a dificuldades dentro e fora das piscinas, Maia contou com o apoio da sua mãe. Ele já nasceu sem audição e sofria bullying e preconceito na escola. Mas nada disso foi motivo para que o pequeno Guilherme parasse de nadar.
Um diálogo entre os dois foi fundamental para que ambos alinhassem as expectativas e fizessem um pacto para que ele permanecesse firme em busca do seu sonho. O acordo foi de que Guilherme nunca desistisse de dar o título de campeão mundial para a mãe. O que aconteceu anos depois, quando o brasileiro subiu ao lugar mais alto do pódio, na Turquia, quando conquistou o ouro nos 200m nado livre, com o plus do recorde mundial. Entre aquela conversa e a medalha, o trajeto não foi fácil.
— Foi sofrido porque ele não tinha clube, não teve técnico. Em Taipei, ele até teve, mas na Bulgária estava treinando sozinho. Na Turquia, foi um colega dele que treinou ele à distância. Ali, ele não esperava conquistar a medalha, muito menos um recorde. Não foi nada fácil, foi bem complicado para a gente — recorda Andrea, emocionada.
Quis o destino que a 24ª edição das Surdolimpíadas fosse no Brasil e realizada em Caxias do Sul, que há dois meses acolheu a família Maia. O surdoatleta veio para cá para treinar e se ambientar à cidade gaúcha. Isso propiciou a Andrea a possibilidade de acompanhar o seu filho em um evento desse porte pela primeira vez da beira da piscina praticamente. Com um mix de emoção e de ansiedade, a mãe viu o filho bater em terceiro nos 100m nado livre e conquistar o bronze — a sua sexta medalha na história, o maior medalhista brasileiro nas Surdolimpíadas.
— É uma emoção enorme. Eu vi o Mundial dele em 2019, que foi em São Paulo, mas essa competição eu nunca assisti. Então, minha emoção, meu nervosismo. Esses dias, antes da prova dos 100m, eu acordei 4h30min, achando que já era 7h30min. Eu estou na torcida para receber mais uma medalha de presente de Dia das Mães.
Não bastasse o bronze na última quarta, esse sábado pode tornar a estadia em Caxias do Sul ainda melhor. Guilherme Maia entrará nas piscinas do Recreio da Juventude em busca do bicampeonato surdolímpico da prova dos 200m nado livre. A medalha, um dia antes do Dia das Mães, seria um sonho para Andrea, mas também para Guilherme.
— É um sonho meu desde que ele nasceu (ver ele presencialmente em uma Surdolimpíada), mesmo sem saber que ele ia ser surdo. Por ter sido nadadora, eu sonhava que ele ficasse no meu esporte. Sabendo que ele teve a deficiência, teve luta, dificuldade com patrocínio, com técnico, com piscina. Ver tudo que ele construiu é muito gratificante. Acho que ele merece essa medalha, mais até do que eu.
A mãe atleta
Quando Natália Martins entrou em quadra na última quarta, a jogadora de vôlei se igualou a um personagem icônico na história do esporte mundial. A tenista norte-americana Serena Williams entrou nas quadras do Aberto da Austrália de 2017 quando havia acabado de descobrir que estava grávida. Natália, no entanto, já sabe faz tempo, mas veio para a Surdolimpíadas, em Caxias do Sul, grávida de sete meses da sua primeira filha, Rebecca.
Pode parecer estranho que uma atleta consiga performar em um esporte de alto rendimento com uma gestação tão avançada, mas a brasileira é uma das líderes do elenco do vôlei surdo feminino brasileiro. A sua participação é um marco não só no esporte, mas também uma autossuperação. Pouco antes de descobrir que estava grávida da sua primeira filha, ela sofreu um aborto espontâneo. A presença em Caxias lhe propicia uma emoção diferente.
— É emocionante e gratificante estar aqui para ajudar as meninas. Eu só posso fazer funções no fundo de quadra por conta do tamanho da bebê, mas sou grata ao Rubinho (treinador) pela oportunidade e por poder agregar a esse time que amo e podendo jogar as Surdolimpíadas em casa, aqui no Brasil — explicou a camisa 3 brasileira.
Mas para quem estranhar que alguém com uma barriga de sete meses entre em quadra, Natália tem o aval médico para fazer parte da equipe do Brasil. Rosane Teixeira, médica obstetra do Hospital Conceição, garante que não existe problema na atuação da jogadora.
— É uma situação que varia de cada paciente. Se ela já estiver acostumada a praticar atividade física e já é atleta, a princípio não tem problema. Dependendo da carga da atividade, do tipo de atividade, se tiver risco de queda, de trauma, tem um maior risco conforme a idade gestacional, mas ela deve estar bem instruída.
Depois dos Jogos, a surdoatleta Natália dará lugar a mãe Natália, uma nova experiência na vida da jogadora de vôlei, mas que ela deixará tantos legados quanto deixou para o vôlei brasileiro. A história da jogadora é curiosa e seguiu um caminho diferente do tradicional. Ela perdeu 70% da audição quando tinha quatro anos de idade. Desde que a surdez foi identificada, Natália começou a usar um aparelho auditivo, que permitiu que ela aprendesse a falar e a jogar vôlei. Mas isso era insuficiente para virar uma jogadora profissional. Ela precisou aguçar outros sentidos, como o do olhar.
A história deu certo. Recentemente, defendendo o Osasco, de São Paulo, foi uma das jogadoras que mais se destacou na Superliga de Vôlei. Em 2016, aceitou fazer parte de uma troca. Participou de um campeonato com nível esportivo bem abaixo, e por outro lado, ajudou a comunidade de atletas surdos a entender a importância do uso aparelho auditivo no esporte. Foi a sua porta de entrada para o surdoesporte.
— Recebi o convite do Xandó e Rubinho para conhecer o projeto e de cara me disponibilizei em estar e conhecer mais. Confesso que foi assustador pra mim ter de jogar sem aparelho auditivo, mas depois me acostumei apenas no momento de jogar e treinar. Me sentia sem equilíbrio e sentia a falta de sons.
Desde então, Natália se integrou ao esporte surdo, chegando a disputar a Surdolimpíadas de 2017, na Turquia. No domingo, Dia das Mães, Natália estará de novo à beira da quadra, vivendo o que vive há quase 21 anos: o esporte. No entanto, dessa vez, literalmente, não estará sozinha ali.
— Estar aqui, nesse dia, é a realização de um sonho. É mais um capítulo escrito na minha trajetória de vida.