O Supremo Tribunal Federal tem uma polêmica pela frente: discutir o ensino da linguagem neutra nas escolas. A partir de uma lei do Estado de Rondônia que proíbe expressões como "todes" e "todxs" na grade curricular e no material de instituições públicas e privadas, os ministros vão precisar decidir se esse tipo de comunicação pode ou não ser usada em sala de aula.
Criada em outubro, a lei de Rondônia estabelece que somente a norma culta deve ser ensinada aos estudantes, e que haverá sanções às escolas e aos profissionais que ministrarem "conteúdos adversos" aos alunos, "prejudicando direta ou indiretamente seu aprendizado" da língua portuguesa. Também impede que a linguagem neutra seja usada em concursos públicos.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) reagiu e ajuizou, em novembro, uma ação direta de inconstitucionalidade. Na avaliação da entidade, a decisão de Rondônia usurpa da União a competência de legislar sobre normas gerais de ensino e afronta o direito de aprender e educar com pluralidade de ideais.
A pauta caiu no colo do ministro Edson Facchin, relator do caso no STF, que no dia 16 de novembro concedeu liminar suspendendo a lei. Na decisão, o ministro argumenta que o Ministério da Educação, por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais, valoriza as diferentes variedades da língua portuguesa afim de evitar o preconceito linguístico.
Facchin escreve: "A chamada 'linguagem neutra' ou ainda 'linguagem inclusiva' visa combater preconceitos linguísticos, retirando vieses que usualmente subordinam um gênero em relação a outro. A sua adoção tem sido frequente sobretudo em órgãos públicos de diversos países e organizações internacionais. Sendo esse o objetivo da linguagem inclusiva, é difícil imaginar que a sua proibição possa ser constitucionalmente compatível com a liberdade de expressão".
Após suspender a lei, Facchin submeteu sua decisão à votação virtual do plenário, que teve início no dia 3 de dezembro. No dia 7, o ministro Kássio Nunes Marques, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro ao Supremo, pediu destaque e, com isso, o tema foi retirado do julgamento virtual e vai para discussão presencial. No entanto, como haverá recesso de fim de ano a partir do dia 17, a expectativa é que os ministros só voltem a analisar o caso em 2022.
Depois se posicionarem contra ou a favor da decisão de Facchin, eles devem avaliar o mérito da lei, ou seja, se as escolas de Rondônia podem ou não abordar a linguagem neutra em sala de aula. O resultado terá impacto nacional. Se o STF entender que esse tipo de comunicação pode ser ensinada, leis estaduais e municipais proibitivas perdem a validade. Além de Rondônia, o governo de Santa Catarina também proibiu, por decreto, que escolas públicas e privadas façam referência a esse tipo de comunicação.
O que é a linguagem neutra
Também chamada de não-binária, a linguagem neutra ou inclusiva é muito utilizada por por movimentos sociais LGBT+ que defendem uma forma de expressão sem demarcações de gênero. Eles argumentam que palavras como "ela" e "ele" compreendem apenas o gênero feminino e masculino, deixando de fora pessoas que não se definem como homem ou mulher. Nesse caso, defendem que seja utilizada a palavra "elu".
Recentemente, escolas de Porto Alegre serviram de palco para essa discussão. Enquanto a São Pedro, da rede pública municipal, recebeu críticas por ter enviado tema de casa com expressões como "alunes" e "alunxs", o Colégio Farroupilha, da rede particular, cancelou um espetáculo infantil quando se deu conta que a companhia teatral fazia uso desse tipo de comunicação.
Caminho, para especialistas, é agregar
Para além de ser contra ou a favor, a primeira observação feita pela sociolinguista Rosineide Magalhães de Sousa, professora da Universidade de Brasília (UnB), é que não existe linguagem neutra - toda forma de expressão é impregnada pela cultura de quem se comunica, por suas histórias, memórias e ideologias. Nesse sentido, diz ela, nem a norma culta é neutra, já que é utilizada por uma elite mais intelectualizada. Por isso, argumenta a professora, seria mais interessante tratar essa nova proposta de comunicação por linguagem inclusiva.
Feita a consideração, Rosineide entende que nenhum tipo de comunicação, nem mesmo a gramática normativa, é capaz de representar a todos.
— Não existe linguagem que dê conta de contemplar todo mundo. O que podemos fazer? Incluir o que se apresenta de novo — defende.
No entanto, a guerra ideológica em torno do tema distorce o debate. Em sua avaliação, a linguagem neutra ou inclusiva não pode ser uma proposta de substituição à língua padrão, e sim uma forma a mais de se comunicar, principalmente com quem demanda esse tipo de abordagem, como no caso das pessoas não-binárias.
— A sociedade é diversa. Tem que ter língua para todo mundo. Isso é democrático. Mas usar "todes" para todo mundo? Não, eu posso usar "todes", todas e todos. Por que não? A linguagem pode ser usada de várias maneiras, dependendo do contexto social. Se em determinado contexto eu vou usar "todes", eu uso. Mas se um outro contexto requer que eu use todos, vou usar todos. Não precisa usar "todes" o tempo todo — diz.
Para o professor Fernando Becker, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a língua culta serve muito bem para guiar a comunicação de um grande grupo, como uma nação. Com um conjunto de expressões que pouco se alteram, é mais fácil, diz ele, que haja uma compreensão entre todos.
— O Celso Pedro Luft (um dos maiores linguistas do Brasil, morto em 1995) falava que quem faz a língua é o povo. No entanto, a norma culta é a saída para todo mundo entender. Para ter o entendimento de uma língua, precisa haver uma norma que se mantenha, que não seja trocada toda hora — avalia.
Mas Becker entende como legítima a demanda de movimentos LGBT+ que pedem maior inclusão na linguagem, e acredita que, com o tempo, a língua portuguesa vai se abrir para essa atualização, como já vem acontecendo. Nesse sentido, um professor deve, sim, ensinar a língua culta, mas não pode ignorar o que está acontecendo no mundo.
— O professor tem que botar isso para os alunos: a língua é um organismo vivo, com tantos metros de altura e, daqui um tempo, terá alcançado outros tantos metros de altura, porque vai se desenvolvendo, vai se ampliando — defende.
Com cinco décadas de atuação em sala de aula, Becker entende que o caminho mais equilibrado é acolher novas expressões e maneiras de existir no mundo.
— Como diz Paulo Freire: tem que ser com eles, não para eles ou contra eles — diz.