Borges tem uma metáfora maravilhosa para as bibliotecas: o Livro de Areia. No seu conto, este livro aparentemente normal, nunca abre na mesma página. Nele não há início nem fim, cada espiada possibilita novos entendimentos e possibilidades de leitura. O livro comportava-se como se fosse um vórtice de todas as páginas já escritas ou por escrever. Um artefato assustador por ser infinito. O personagem que narra, livrou-se dele abandonando-o dentro de uma biblioteca.
O que Borges diria de navegar na internet? Seria a materialização do livro de areia? Quando posso, busco o inesperado nesse vasto labirinto virtual. Dia desses, tropecei num professor de inglês australiano que comentava sobre o que esperamos das mudanças gramaticais que evitam o gênero.
Ele abordou a questão de outro ângulo. Pelo farsi, o idioma de Irã, Afeganistão e Tajiquistão. Essa língua não é parente do árabe, ela é indo-europeia, tem raiz comum com as nossas do ocidente. Como no inglês, é uma língua que não flexiona masculino e feminino. Aliás, é mais radical do que o inglês, onde temos, para a terceira pessoa do singular: he, she ou it. No farsi, há duas possibilidades para a terceira pessoa, uma informal e outra formal, mas ambas neutras como o it. Ainda, ao referir-se a uma profissão, existe uma só palavra neutra que a descreve.
O que ele se perguntava é: como isso não ajudou aqueles países a serem mais tolerantes com as mulheres e com outras expressões da identidade de gênero? Como que, ao contrário, são lugares brutais para com as mulheres e gays. Resposta dele: porque isso de fato impacta menos do que esperamos.
Vocês já escutaram falar de: “abelha poedeira” (abeille pondeuse)? Era assim que, depois da Revolução Francesa, batizaram as abelhas rainhas. Os baralhos e as peças de xadrez também foram renomeados para banir a realeza. Será que foi isso que garantiu à república francesa se manter? Ou foi o ferro e fogo dos movimentos sociais que derrubaram a monarquia e seus privilégios?
Sigo a correnteza. Pouco entusiasta das mudanças gramaticais, mas sem resistência. Aliás, quem sou eu para dizer como os outros gostariam de ser chamados. Não estou na pele de quem sofre discriminação. Apenas queria que não misturássemos causas e consequências.
A limpeza da linguagem racista que fazemos chegou tarde. E ela não se deve à consciência e à delicadeza, mas é sim fruto da luta árdua do movimento negro. Temo que nos atenhamos demasiado à gramática e esqueçamos o inverno da época obscura em que vivemos. Não se muda o mundo com linguagem correta. Ela ajuda, mas é o empoderamento real das pessoas que fará a diferença.
A diversidade humana, tão plural e assustadora para alguns como o Livro de Areia, é uma realidade. Não somos binários, somos múltiplos e sem uma gramática que dê conta.