Ao enviar tarefas para os estudantes tratando-os como "alunes" e "alunxs", uma escola municipal de Porto Alegre foi criticada por uma mãe, virou alvo de um pedido de providência de um vereador e trouxe para o debate: a linguagem neutra, também chamada de não-binária, deve ser abordada em sala de aula?
Em julho, uma mãe revoltada com o material fez uma notificação extrajudicial criticando a atitude da Escola de Ensino Fundamental São Pedro. O filho, matriculado no sexto ano, havia recebido pelo menos três tarefas em que professores das disciplinas de História e Geografia tratavam os estudantes como "alunes" e "queridxs alunxs", uma forma defendida por movimentos LGBT+ que pedem que a fala e a escrita promovam maior inclusão. Nesse tipo de comunicação, evita-se usar artigos que indiquem o masculino e o feminino para abordar outras formas de autoidentificação, sem deixar de lado pessoas transexuais, de gênero fluido etc.
Ao perceber pela primeira vez que o material trazia a linguagem neutra, a mãe, que não quis se identificar, ficou incomodada e pediu uma reunião com a direção. Segundo ela, após o primeiro encontro, foram enviadas novas atividades em que os alunos eram chamados de "alunes" e "alunxs".
— Fui conversar, entender o posicionamento deles e explicar o meu. Na primeira vez, fomos eu e a diretora. Depois da reunião, as atividades vieram do mesmo jeito, então também pedi uma reunião com os professores. Eles deram o pensamento deles e eu, o meu. Deixei claro para a escola que não concordava. Me responderam o mesmo de sempre: que é inclusivo, que estão pensando em abordar isso em sala de aula para que as crianças aprendam a incluir a todos — contou ela.
Ela também acionou o vereador Jessé Sangalli (Cidadania), que em 14 de julho encaminhou à prefeitura de Porto Alegre um pedido de providência. A solicitação foi respondida no dia 27 pela Secretaria Municipal de Educação (Smed). No comunicado enviado ao vereador, a pasta diz que "a linguagem neutra foi usada apenas na saudação do exercício, não como conteúdo da atividade", e considerou que, embora a escola tenha tido a intenção de fazer uma comunicação inclusiva, "é preciso trabalhar as normas gramaticais e ortográficas vigentes, utilizando o padrão culto da Língua Portuguesa, de acordo com o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) e com grafia fixada pelo Acordo Ortográfico de 2016".
A GZH, a secretária municipal de Educação da Capital, Janaina Audino, também reforçou que a orientação é de que "todas as escolas da rede municipal de ensino de Porto Alegre devem utilizar o padrão culto da língua portuguesa sempre que se dirigirem aos estudantes e à comunidade escolar, bem como na construção de todos os materiais didáticos".
A direção da escola não quis se pronunciar, mas pediu para ser representada pela Associação dos Trabalhadores/as em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa). Segundo o diretor da entidade, o professor Ezequiel Viapiana, é a segunda vez no ano que uma escola da rede pública da Capital é denunciada por usar a linguagem neutra em atividades enviadas aos alunos. No entendimento dele, é dever de uma instituição pública trazer a pluralidade para a sala de aula.
— Estamos falando de uma rede pública, municipal, cujo primeiro compromisso é a universalidade do acesso à educação. E por ter esse princípio da universalidade, temos que ter uma escola que ofereça educação gratuita, que prepara os alunos para os princípios da laicidade, prepara para lidar com pessoas de todos os credos, com negros, imigrantes, pessoas vulneráveis socialmente, pessoas com necessidades especiais, pessoa com gênero ou sem gênero, pessoas que se identificam de formas diferentes. A escola, por tudo isso, tem que ser democrática — diz ele.
Na opinião do diretor da Atempa, recados como a notificação extrajudicial enviada pela mãe são uma forma de intimidar os professores.
— São mecanismos que podem ser identificados como cerceamento de liberdade de cátedra. Não existe legislação que proíba a utilização de linguagem neutra, esse documento (notificação extrajudicial) não tem efeito prático. É muito mais assediador — diz Viapiana.
Debate em sala de aula
Na notificação extrajudicial que enviou à instituição, a mãe escreveu que a linguagem neutra está relacionada à "ideologia de gênero" e frisou que os pais e tutores têm "o direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções".
À reportagem de GZH, ela disse que é contra o que a equipe da escola chamou de linguagem inclusiva.
— Discordo porque a escola não é inclusiva em parte nenhuma. Não vejo linguagem de sinais, não vejo rampa para cadeiras de rodas. É questão de gramática: meu filho não pode usar essa linguagem em outro lugar, e o professor, que está ali para ensinar, está ensinando uma gramática errada — disse.
A mãe também contou que, ao conversar com um professor da instituição, ele lhe explicou que a gramática muda com o tempo.
— Eu concordei, mas até agora não mudou. Acho que um professor não pode pôr isso em sala de aula — diz ela.
Docente dos programa de Pós-Graduação em Psicologia e em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS) e coordenador do Grupo de Pesquisa Preconceito, Vulnerabilidade e Processos Psicossociais, o professor Ângelo Brandelli lembra que a linguística, ciência que analisa a linguagem verbal humana, aponta que a língua é algo vivo, que se transforma conforme as culturas se modificam, e é por reconhecer essa transitoriedade que pode haver divergências da gramática normativa, que buscar reunir uma série de regras.
Para ele, é importante que uma escola reconheça as mudanças que ocorrem na sociedade, apresente as novidades e estimule debates com os alunos - como a discussão sobre o uso do "x" para dissipar demarcações de gênero.
— A língua é formada de baixo para cima, não de cima para baixo. A escola tem que estar aberta para os debates linguísticos que acontecem. Quando um professor aborda os alunos desse jeito, está mostrando ao aluno o que ele pode encontrar na internet, na TV. É fundamental que as escolas trabalhem estratégias para reconhecer as diversidades humanas, sejam elas de classe, religião, de gênero, raça — diz.
Na interpretação de Brandelli, achar que tratar da linguagem não-binária em sala de aula pode influenciar na orientação sexual dos estudantes é um equívoco. O que os movimentos sociais desejam é que as salas de aulas se transformem em espaços mais tolerantes e menos amedrontadores para quem se sente diferente:
— A escola, por cem anos, só falou em heterossexualidade, e mesmo assim alguns jovens se identificaram como LGBT. Mesmo com toda a invisibilização, o sofrimento, alguns jovens cresceram adultos LGBT. Isso demonstra que a escola não influencia nada. O que se deseja é acabar com um sofrimento desnecessário. Existem pessoas LGBT, elas já foram crianças, elas estão nas escolas, e quando a escola não trata disso, está deliberadamente sendo negligente e perpetuando uma discriminação.
Atuante na área da sociolinguística, a professora do Instituto de Letras e da Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do RS (UFRGS), Elisa Battisti, entende que é válido que as escolas abram espaço para discutir o lugar das minorias sociais e as demandas que elas fazem. No entanto, observa que o Volp, que reúne as expressões usadas por uma comunidade, já foi atualizado com palavras como "drive-thru" e "pandemia", mas ignora termos da linguagem não-binária - o que dificulta que esse tipo de comunicação seja de fato inserida.
— Qualquer tentativa de se aproximar de uma linguagem inclusiva parece mais um exercício de efeito estético do que uma comunicação. Esse professor que enviou material chamando os alunos de "alunes" não pode ser condenado por estar dando um trabalho de conscientização sobre minorias. Por outro lado, é necessário conversar com os pais, preparar a comunidade — considera.
Para a professora, é importante que uma escola, ao avançar em direção a um tema que pode ser considerado polêmico, deve, antes de tudo, sentar para ouvir os pais e os familiares, muitas vezes apartados de discussões levantadas pela academia e pelos movimentos sociais.
— Temos que entender essa mãe: ela nunca viu isso, nunca esteve presente nesses debates sobre linguagem neutra, e como o vocabulário da língua portuguesa não reconhece essas expressões, ela está no direito de dizer que não existe. Resumindo bem, existe por parte desses grupos uma luta por direitos, mas isso não está normatizado. O emprego desses termos na escola por um professor é um ato corajoso, reconheço, mas o professor e a escola precisam conversar com a comunidade, não só com os alunos, para ouvir e explicar os propósitos. Se a comunidade entender que não, a escola também tem de ouvir. Escola não é para massacrar. Já basta a norma padrão — observa Elisa.