Com implementação prevista para o ano que vem, o Novo Ensino Médio tem mudanças ainda pouco conhecidas pela população em geral e pela própria comunidade escolar, segundo especialistas. A principal diferença está na redução da carga horária do currículo obrigatório, comum a todos os alunos, compensada pela possibilidade de o estudante escolher o restante da grade curricular nos outros horários, de acordo com a sua área de interesse e as possibilidades existentes na sua escola.
A reforma no Ensino Médio tem origem na Lei 13.415/2017, que previa que os Estados fariam as adaptações para o novo modelo em 2019 e o implementariam em 2020. Com a troca de governos estaduais em 2019 e o início da pandemia no ano seguinte, a reforma ficou suspensa ou passou por atraso em muitos Estados. Em 13 de julho, porém, o governo federal divulgou um novo cronograma, determinando que os alunos de primeiro ano do Ensino Médio sejam matriculados já no novo modelo em 2022.
Para o formato ser posto em prática, é preciso que cada governo estadual elabore um novo referencial curricular, que conecte as necessidades locais aos novos requisitos. Esse documento precisa ser apresentado ao Conselho Estadual de Educação (CEEd), que faz sua análise, o homologa e cria normas complementares para viabilizá-lo.
O Observatório Nacional do Ensino Médio e a rede Ensino Médio em Pesquisa calcula que atualmente 12 Estados já têm referenciais curriculares homologados pelo CEEd. Outros 13, entre eles o Rio Grande do Sul, estão em fase de finalização do documento ou já entregaram o texto para análise, e dois ainda estão na fase anterior, de consulta pública.
— A base fundamental é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. O que muda em cada Estado é como ele vai executar aquilo — explica a professora Mônica Ribeiro da Silva, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que coordena o Observatório
A lei federal institui cinco áreas de conhecimento que compõem os itinerários formativos – Linguagens e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; e Formação Técnica e Profissional. No Rio Grande do Sul, a previsão é de que os estudantes possam escolher entre 10 itinerários – Cidadania e Gênero, Educação Financeira, Empreendedorismo, Expressão Corporal, Expressão Cultural, Profissões, Relações Interpessoais, Saúde, Sustentabilidade e Tecnologia. Não há, porém, garantia de que todos os itinerários sejam oferecidos em todas as escolas. Há possibilidade de que eles sejam viabilizados, inclusive, por meio de convênios com instituições de ensino a distância.
Para Mônica, a segmentação causada pela reforma é “absurda”:
— O Ensino Médio ainda é Educação Básica, então deveria ter uma formação comum maior. A reforma restringe a formação básica comum e torna a oferta desigual, já que muitas escolas não vão poder oferecer todos os itinerários formativos. Se não se der estrutura física, formação continuada e oferta de material didático, não é a reformulação do currículo que vai mudar algo — observa a professora, que destaca, ainda, que a maioria dos professores não pôde participar ainda da discussão sobre o Novo Ensino Médio.
O doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Mateus Saraiva, que estuda temas ligados ao Ensino Médio, avalia que o principal desafio é proporcionar a mesma diversidade em uma rede estadual ampla, com mais de mil escolas de Ensino Médio, que tem desde instituições de ensino centrais, com laboratórios, bibliotecas e recursos, até escolas de cidades menores com infraestrutura mais precária.
— É necessário um investimento que lide com a complexidade que é fazer isso (a reforma) acontecer. Não é por decreto que se faz algumas coisas, e sim com a disposição dos envolvidos, como os professores, que são muito desvalorizados — pontua o pesquisador.
Na visão de Saraiva, a proposta tem pontos interessantes, mas ele não enxerga muita viabilidade de serem postos em prática. O estudioso também ressalta que a reforma trata os adolescentes como “sujeitos prontos” para fazerem escolhas sobre suas carreiras, quando ainda são muito jovens.
A reforma no Rio Grande do Sul
No Rio Grande do Sul, o CEEd recebeu da Secretaria Estadual de Educação (Seduc) em 30 de junho a segunda versão do referencial curricular gaúcho, que ajusta o currículo do Ensino Médio com base na reforma, e prevê concluir a análise até setembro. Uma primeira versão havia sido entregue em dezembro de 2020, mas, em fevereiro, foi acordado junto a um grupo de regime de colaboração que o documento precisaria enfocar todas as redes de ensino, e não apenas a estadual. Depois da análise, o conselho fará regramentos específicos para a oferta dos itinerários nas redes.
— Levaremos em conta quais as possibilidades de escolha pelos estudantes em cada instituição pública e privada, como será viabilizada a oferta de pelo menos dois itinerários, considerando que tem municípios sem nenhuma escola de Ensino Médio, e como poderão ser feitas as parcerias, no caso de formação técnica e profissional, por exemplo — cita a presidente do CEEd-RS, Márcia Adriana de Carvalho.
A conselheira aponta que, em comparação com outros Estados, há manifestações que dão a entender que o Rio Grande do Sul está atrasado, mas assegura que a construção está no prazo e que o regime de colaboração entre as partes firmado já durante a elaboração da segunda versão do referencial curricular facilita, pois proporciona a discussão sobre o assunto em paralelo à produção do texto. Márcia acredita que tudo estará pronto dentro de um “tempo razoável”.
A Seduc informou que aguarda a homologação do referencial curricular gaúcho junto ao CEEd-RS para, então, realizar os demais encaminhamentos, como oferecer formações para a comunidade escolar e definir se contratará mais professores. A título de comparação, em São Paulo – que tem uma rede estadual com cerca de três vezes mais escolas de Ensino Médio do que o Rio Grande do Sul –, a previsão é de contratar até 10 mil docentes para dar conta da oferta de ao menos duas opções de itinerários formativos por instituição.
O RS tem 299 escolas-piloto do Novo Ensino Médio. Em apresentação feita pela diretora pedagógica da Seduc, Letícia Grigoletto, em live do CEEd em novembro, a indicação era de que as 3 mil horas/aula do Ensino Médio – mil em cada um dos três anos – seriam divididas em duas modalidades: a formação geral básica, que representa até 60% da carga horária e é composta pelo currículo obrigatório e comum a todos os anos; e os itinerários formativos por áreas de conhecimento e de formação técnica e profissional, que representam pelo menos 40% da carga horária e são compostos por diferentes opções de disciplinas que os alunos poderão escolher.
Conforme as etapas vão passando, a distribuição da carga horária deve mudar. Enquanto no primeiro ano a formação geral básica compõe 80% do currículo e os itinerários formativos apenas 20%, o percentual cai para 60% e 40%, respectivamente, no segundo ano, e para 40% e 60%, respectivamente, no terceiro ano.
Rosário terá itinerários como educação financeira, sustentabilidade e processos criativos
No Colégio Marista Rosário, o planejamento para a implementação do Novo Ensino Médio ocorre desde 2018, com formação de professores, entrevistas com alunos e definição dos itinerários formativos, com base nas demandas apresentadas pelos estudantes. Na instituição, haverá alguns itinerários obrigatórios e outros optativos, todos interdisciplinares, com foco em áreas como empreendedorismo, educação financeira, sustentabilidade, linguagem e processos criativos
— Focamos muito no diálogo com os estudantes. Fazemos um diálogo geral, com uma explicação mais genérica, e também momentos com grupos menores. Agora, pós-recesso, teremos uma agenda bem intensa para detalhar o que vai acontecer no próximo ano — relata a coordenadora pedagógica do Ensino Médio do Rosário, Carla Spagnolo.
Entre as principais demandas dos estudantes estão conhecer a cultura de outros países, aprender sobre sustentabilidade, educação financeira, cuidados com a saúde e descobrir de que forma podem ser protagonistas nas mudanças sociais necessárias no mundo.
— Eles (os alunos) estão muito curiosos. Essas mudanças geram algumas inseguranças, mas, aos poucos, vamos apresentando o desenho e eles vão ficando mais tranquilos — estima Carla.
Para que os alunos consigam cumprir com os itinerários, o Rosário agregará mais três períodos semanais com ensino híbrido em seu currículo. Atualmente, o Ensino Médio conta com 35 períodos; com a mudança, serão 38. A instituição ainda estuda se haverá necessidade de aumentar o corpo docente para dar conta da demanda.
Uma das estudantes que deve ingressar no primeiro ano do Ensino Médio do Rosário já no novo formato é Júlia Baratto Freitas, 15 anos. Aluna do nono ano do Ensino Fundamental, a estudante aprova a mudança.
— Eu gosto da ideia de me preparar mais para as coisas que eu quero ser quando crescer. Eu já pensei em ser escritora, é uma paixão que eu tenho, e eu acho que o itinerário de processos criativos pode me ajudar — avalia a adolescente.
Júlia admite que tem um pouco de medo da novidade e se sente animada e um pouco ansiosa, mas acha que a mudança permitirá que ela consiga explorar diversas áreas e, se quiser, trocar de itinerário. Sua animação fez com que ela participasse ativamente de encontros sobre o Novo Ensino Médio neste ano.
A mãe de Júlia, Viviane Baratto Freitas, que é professora, considera que os itinerários formativos vão ao encontro do momento de vida dos adolescentes.
— Quanto mais eles souberem e quanto mais ampla for a formação, melhor eles irão se preparar. É muito difícil decidir sobre alguma coisa nessa fase, então o colégio trouxe mais informações sobre contextos socioculturais, empreendedorismo. É muita expectativa — comenta Viviane.
Pandemia impossibilitou que escola-piloto da rede estadual implantasse Novo Ensino Médio
Uma das 299 escolas-piloto do Novo Ensino Médio na rede estadual, o Colégio Estadual Piratini, de Porto Alegre, chegou a fazer um projeto em 2019 que visava introduzir os estudantes no formato. No projeto Cem Minutos, feito em 2019, a cada 15 dias uma área de conhecimento elaborava uma atividade na qual os alunos apresentavam algo relacionado àquela disciplina. A ideia era mostrar as potencialidades de cada área para que o estudante amadurecesse seus interesses.
Uma das estudantes que participou do projeto Cem Minutos foi Vitória Stifft, 17 anos. Hoje no terceiro ano do Ensino Médio, na época a adolescente estava no primeiro ano. Ela conta que as atividades duraram da metade do primeiro semestre até novembro e aconteciam nos dois últimos períodos da tarde, nos quais era feita uma roda no saguão para as apresentações, especialmente por alunos do segundo ano.
— Foi mais para introduzir como funcionaria o Novo Ensino Médio, porque estava todo mundo confuso. O projeto Cem Minutos deu um norte. A gente estava muito eufórico de passar por aquilo no segundo ano. Foi meio decepcionante não ter acontecido — reconhece Vitória.
A jovem, que pretende fazer faculdade de Artes Cênicas ou Cinema, gostaria de ter feito o itinerário de processos criativos, se pudesse.
— Eu achei muito legal, porque dá mais abertura para a gente ver aonde quer seguir e usar nosso tempo para direcionar para onde queremos que a nossa vida vá — ressalta Vitória.
Ao longo do ano, foram definidos dois itinerários, que, segundo o diretor do Piratini, Maurício Girardi, eram mais viáveis de serem oferecidos na escola – Relações Interpessoais, que mescla Ciências Humanas e Matemática, e Expressão Corporal, que mescla Linguagem e Ciências da Natureza.
Em 2020, a ideia era que os alunos já escolhessem itinerários ao longo do ano e passassem pela nova experiência. Com a chegada da pandemia, porém, os planos foram abortados, e a direção da instituição não sabe como fará a implantação.
— Acho que dá para fazer, meio aos trancos e barrancos, mas nossa supervisora pedagógica se aposentou e não mandaram mais ninguém. Ela era a fonte da operação da escola. Eu não dou conta sozinho, preciso de uma equipe. Não adianta fazer propaganda na TV sobre a reforma e não dar estrutura — relata Girardi.
Apesar da preocupação do diretor, o Piratini tem a seu favor o fato de já funcionar em tempo integral. Por isso, alguns componentes previstos no Novo Ensino Médio, como Projeto de Vida, Culturas Juvenis, Estudos Orientados e Projeto de Pesquisa já estão presentes no currículo, o que facilita a implementação da reforma. Ainda assim, há muitas dúvidas sobre a mudança.
— Não ficou claro, por exemplo, como o aluno faria se quisesse fazer um itinerário diferente do que temos. Ficou muita coisa no ar — analisa o diretor.
A diretora Geovana Affeldt, da Escola Estadual Tuiuti, de Gravataí, sente que a apresentação do modelo às escolas foi feita de forma superficial, o que não lhe permite avaliar se a reforma é boa ou ruim. Entretanto, considera que as escolas estaduais não têm condições de aplicar os itinerários.
— Há uma falta crônica de professores que não é resolvida há anos, por exemplo. Há coisas muito anteriores a uma política pública desse porte que precisam ser resolvidas para que ela dê certo — critica Geovana, citando a própria Tuiuti, que, das 16 salas de aula existentes, está com 12 interditadas.
Para sanar dúvidas que surgem dos estudantes, a diretora chegou a solicitar acesso ao referencial curricular gaúcho, que tramita no CEEd. Recebeu a informação de que o documento está em construção e, por isso, não está disponível. Na opinião de Geovana, a indisponibilidade do material inviabiliza a implementação da reforma já no ano que vem, pois impossibilita o planejamento e o conhecimento de seu conteúdo.