As prisões de políticos que ocuparam cargos importantes em todas as esferas de governo, desencadeadas pela Operação Lava-Jato, representaram uma mudança na percepção da população brasileira sobre a Justiça: finalmente se podia ver figuras do alto escalão pagando por seus desvios de conduta.
Mas não foi só na política que isso mudou. As empresas envolvidas em escândalos de corrupção também se viram diante de um impasse: ou mudavam, garantindo que adotariam a ética corporativa, ou amargavam um naufrágio nas suas reputações.
A solução: tentar prevenir fraudes, orientar os funcionários, incluindo, talvez principalmente, a direção da empresa a sempre fazer o que é certo, obedecer as leis, não favorecer ninguém, não buscar vantagens, oferecer condições de igualdade a todos. A tudo isso – e ainda mais – é dado o nome de compliance.
Quem atua nessa área encontra diversas definições para o termo: estar ou agir em conformidade, ter um mecanismo de integridade, praticar a ética corporativa. Para o advogado criminalista Guilherme Abrão, professor da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o sentido da complicada expressão em inglês é bem simples:
— Na minha opinião, é mais do que estar em conformidade. Acho um bom sinônimo o "fazer a coisa certa e ética". Um sistema adequado de compliance é para assegurar, para buscar a conformidade com valores e princípios. Isso se reflete em políticas e procedimentos internos que devem ser seguidos — define Abrão.
Essa questão é bastante importante no âmbito interno, mas também no externo. Para que consumidores e acionistas saibam exatamente o que a empresa faz, como opera, o que julga adequado ou inadequado.
GUILHERME ABRÃO
advogado criminalista
Com um sistema assim, defendem os especialistas, a empresa garante que está atenta a princípios importantes como transparência, responsabilidade corporativa, prestação de contas, equidade. Implementa formas de prevenir e punir ilícitos penais, administrativos e civis. E, pautada pela ética, preserva – ou tenta recuperar – sua imagem, sua reputação, pavimentando o caminho para a longevidade no mercado.
Mas não pense que só devem trabalhar por essa integridade as empresas flagradas em atividades ilegais. O compliance tem se disseminado no Brasil, tanto no setor público quanto no privado, e como prevenção, não só como consequência de problemas com a Justiça.
— Essa questão é bastante importante no âmbito interno, mas também no externo. Para que consumidores e acionistas saibam exatamente o que a empresa faz, como opera, o que julga adequado ou inadequado. Enfim, para que tenha transparência nos negócios — diz Abrão.
Esse tipo de processo tampouco deve ser restrito a grandes multinacionais. Cada vez mais empresas de médio porte, e até as pequenas, buscam formas de se adequar a uma atuação pautada pela ética.
— Vemos as empresas pequenas, até startups, já preocupadas com o tema. Até porque muitas acabam tendo contato com corporações maiores para fazer negócio, e estas têm exigido mecanismos para prevenir eventuais fraudes — pontua o consultor Fábio Vitola, que trabalha como mentor de empresas.
Instituições que fornecem capital de investimento têm implementado a política de só fornecer recursos para companhias com mecanismos de integridade em vigor. É uma forma de garantir que essa verba será aplicada com lisura desde o início. E até editais públicos, conforme os especialistas, têm privilegiado a contratação de empresas com processo de compliance ativo. No mundo empresarial, avaliam eles, logo vai chegar um momento em que um programa como esse será tão necessário quanto ter um setor financeiro.
A fraude do cotidiano
Ainda que os casos de maior repercussão envolvendo má conduta empresarial sejam de funcionários ou diretores que tinham conhecimento do que estavam fazendo e agiam ou em benefício próprio, ou buscando vantagens econômicas, a maior parte dos casos investigados em processos de compliance é de pessoas que cometeram fraudes menores. Em muitos, inclusive, sequer há intenção clara de cometer algum desvio.
É frequente que um funcionário não saiba que recaiu em prática ilícita. Arredondar os números de um relatório, repassar informações privilegiadas sem ter conhecimento de que isso é um problema, encaminhar um processo para um conhecido que vai "aliviar" o colega: mesmo atitudes aparentemente simples como essas significam uma conduta inadequada, algo combatido por companhias que implementam programas de ética corporativa.
— Por isso é importante ter um sistema de gestão dentro da empresa como forma de prevenir que sejam feitas coisas erradas, e mesmo para informar o que se considera adequado. É importante ter um guia de ética muito claro e seguir essas práticas em qualquer escalão da empresa — salienta Wagner Giovanini, autor do livro Compliance: A Excelência na Prática e coautor de Lei Anticorrupção e Temas de Compliance, publicados, respectivamente, em 2014 e 2016.
Qualquer um, em algum momento, está sujeito a tomar uma decisão inadequada. Há muito a ideia de que um fraudador ou um assediador sabe o que está fazendo. Nem sempre é assim.
ALESSANDRA COSTA
psicóloga e especialista em "compliance"
Sem conhecer as regras, qualquer um pode cometer enganos. Por isso, consultores defendem a importância de sempre trabalhar com processos que busquem a integridade na atuação corporativa. E isso mesmo nas microempresas – ainda que, nesses casos, às vezes baste uma lista bem clara de "o que fazemos" e "o que não admitimos".
— Qualquer um, em algum momento, está sujeito a tomar uma decisão inadequada. Há muito a ideia de que um fraudador ou um assediador sabe o que está fazendo. Nem sempre é assim — destaca a psicóloga Alessandra Costa, especialista em compliance da S2 Consultoria.
Depois de ter acompanhado o desenrolar de mais de 9 mil processos suspeitos de desvios de conduta em empresas, Alessandra destaca que os problemas acontecem muito mais por falta de conhecimento do funcionário do que por intenção de prejudicar a empresa ou os colegas. E relata que a maioria dos casos não se dá na busca por dinheiro – esse foi apenas o nono motivo mais frequentemente citado em uma pesquisa realizada pela consultoria sobre o porquê de atos ilícitos terem sido cometidos. A motivação maior, conforme o estudo, é o poder.
Canal de ética e denúncias
Um programa de compliance passa por muitas etapas, como adequação jurídica, trabalhista, criminal e tributária. Mas a faceta mais conhecida e aquela que mais atinge os funcionários é algo que tem se tornado cada vez mais comum nas grandes empresas: o canal de ética. É um mecanismo que recebe denúncias, de forma anônima, sobre possíveis desvios dentro da empresa – desde o estagiário até o diretor.
O ideal, explica Wagner Giovanini, que por oito anos trabalhou como diretor de compliance da Siemens e hoje é sócio e responsável técnico da Compliance Total, é que todo o procedimento por trás do canal de ética seja feito de maneira terceirizada, já que apurações internas podem trazer riscos, como a falta de privacidade, ao processo.
— Ninguém quer fazer denúncias tendo a impressão de que o colega ao lado pode ficar sabendo. É preciso um canal de denúncia disponível 24 horas por dia e totalmente confidencial — afirma Giovanini.
A orientação é que qualquer suspeita de atividade ilícita possa ser levada ao canal. A preferência, relatam os consultores, é de que a denúncia seja feita por telefone, o que permite obter mais detalhes.
Se faltam informações em uma denúncia por e-mail, fica mais difícil identificar questões importantes, já que o processo é confidencial – a não ser que haja um contato posterior do funcionário, ou novas denúncias.
Para que isso funcione, é preciso muito mais do que implementar um canal e torná-lo disponível aos trabalhadores: é preciso incentivar seu uso, mostrar que a empresa está comprometida com a correção de eventuais desvios, punir quem for flagrado cometendo algum tipo de fraude e também quem, por má-fé, quer ver o colega prejudicado.
— Fala-se muito do "jeitinho brasileiro", que em uma empresa pode significar fazer um processo de forma mais rápida burlando alguma regra. E o compliance busca justamente conscientizar sobre isso. Mostrar que as regras são estas, quem as infringe pode sofrer tal punição, e isso tem que ser cumprido — afirma Susana Falchi, CEO da HSD Consultoria em RH.
A apuração das denúncias deve ser sigilosa. Espera-se que a pessoa investigada por má conduta só saiba do processo quando for encontrada alguma prova material contra ela. As punições variam, podendo ir desde reorientação profissional até demissão. Casos mais graves podem ser levados à polícia e à Justiça.
O que é compliance?
- O termo pode significar “estar em conformidade”. Em resumo, significa fazer a coisa certa e ética.
- É cumprir a legislação e políticas/normas internas para prevenir ilícitos penais, administrativos e civis.
- No mundo corporativo, significa, também, preservar a imagem e a reputação de uma empresa, garantindo sua longevidade.
- O compliance é visto como um instrumento de cumprimento de leis, de proteção contra desvios de conduta e de preservação e geração de valor econômico. Está associado à gestão do risco e à prevenção da corrupção.
- Envolve código de ética, canal de denúncias, treinamento, mapeamento de riscos, investigações internas, entre outras medidas.
Fonte: Guilherme Abrão, advogado criminalista e professor da PUCRS
Como prevenir desvios e fraudes?
- Mapear o perfil comportamental de todos os profissionais selecionados – e não somente, comportamentos observáveis, mas também os fatores estruturantes da personalidade;
- Ter seus sistemas de controle aperfeiçoados para não ter dependência humana no que tange aos indicadores gerenciais, principalmente;
- Ter processos integrados que assegurem entradas, processamentos e saídas que possam ser controladas;
- Desenvolver a cultura de ética e integridade nas organizações com plano de consequências;
- Valorizar os resultados a médio e longo prazo;
- Rever o sistema de bônus executivo, vinculando seu ganho aos resultados de longo prazo;
- Desenvolver políticas de RH que sejam permeadas pela visão de gerenciamento de riscos.
Fonte: Susana Falchi, consultora em RH, presidente da HSD
Os problemas mais comuns
Levantamento realizado em 2017 pelas empresas HSD Consultoria e Orchestra Soluções indicou sete tipos de desvios mais usuais no âmbito das companhias:
- Omissão de erros: resultados maquiados podem ocasionar problemas maiores, além de indicar falta de transparência.
- Desvio de caráter: a autoimagem inflada de algum integrante de uma equipe de trabalho costuma fazer com que passe por cima de pessoas ou regras.
- Desvio de valores financeiros: cobrar comissões "por fora", fugindo de práticas adequadas em empresas com o objetivo de ganhar dinheiro extra, é um dos problemas mais comuns nas companhias.
- Dissimulação, mentira ou intriga: apresentar relatos que não correspondem à realidade com o objetivo de tirar algum tipo de vantagem é outra situação corriqueira.
- Baixa autoconfiança: esse traço da personalidade de algum funcionário pode acabar fazendo com que mude de posicionamento dependendo do interlocutor, o que, consequentemente, ocasiona problemas de comunicação e mesmo de posicionamento estratégico.
- Estrutura emocional frágil: caso algum integrante da equipe apresente essa característica de personalidade, pode terceirizar culpas por determinadas decisões equivocadas, entre outras situações, indica o levantamento.
- Assédio moral ou sexual: algumas das situações mais comuns nas denúncias a canais de ética envolvem desvios de comportamento sexual e abuso de poder.
Fonte: pesquisa Perfil Comportamental dos Executivos, elaborada pela HSD Consultoria em RH e pela Orchestra Soluções Empresariais