As pacatas e organizadas cidades do interior do Rio Grande do Sul viram suas vidas se transformarem nos últimos meses. Em muitas escolas dos vales do Taquari, do Rio Pardo e do Caí, a recuperação pós-enchente parece a reprise de um filme – instituições que recém se reerguiam dos estragos sofridos em setembro de 2023 assistiram, impotentes, à água voltar e levar embora os investimentos feitos.
Ainda que os rios tenham retornado aos seus cursos, pouca coisa voltou ao normal. Em municípios como Muçum e Roca Sales, no Vale do Taquari, o alto número de pessoas que tiveram suas casas devastadas fez com que bairros inteiros se esvaziassem, fazendo cair também a população nas escolas.
Em Muçum, a Escola Estadual General Souza Doca é a maior da cidade. Em maio, a água dominou todo o térreo e alcançou 20 centímetros do segundo piso. Em 2023, mais de 400 estudantes estavam matriculados lá. Desde então, um em cada quatro alunos foi embora – sobraram 300.
— A gente teve bastante perda de alunos, mais agora do que em setembro (de 2023). Em setembro, como tinha sido a primeira vez, todo mundo tinha esperança de que não fosse mais acontecer. Agora, muitos foram embora, por falta de emprego, de moradia, por não ter casas o suficiente para alugar em lugares onde não vai água — descreve Karina Baronio Cucioli, diretora da Souza Doca.
Os estudantes que ficaram, tiveram aulas remotas por um mês e, em junho, retornaram às atividades presenciais de forma escalonada, pois a instituição ainda não tinha energia elétrica e o funcionamento à noite era inviável. Com a oferta de transporte escolar, a maioria dos alunos não teve dificuldade para retomar as idas à escola.
A exceção foi entre os que moram em áreas rurais cujos acessos eram por estradas que ficaram interditadas por semanas, como Diogo Boni, 18 anos, que só pôde voltar após dois meses:
Acumulou muita coisa, porque eu tinha que fazer as aulas remota para tentar recuperar. No começo não foi tão fácil, porque nunca é igual a dentro de uma sala de aula.
DIOGO BONI
18 anos
— O lugar onde eu moro foi um dos últimos em que voltou a luz, e a internet ainda voltou umas duas, três semanas depois. Aí acumulou muita coisa, porque eu tinha que fazer as aulas remota para tentar recuperar. No começo não foi tão fácil, porque nunca é igual a dentro de uma sala de aula, com a explicação do professor, mas, graças a Deus, deu tudo certo.
Mesmo agora, que as estradas já estão liberadas, a falta da ponte que ligava Muçum a Roca Sales gera transtorno. Diogo e a colega Daiane Furlanetto, 17 anos, que também mora na área rural de Roca Sales, levam cerca de três horas para chegar à Souza Doca. Antes, o percurso durava meia hora.
— Eu acordo um pouco antes das 5h, saio de casa às 5h20min, faço toda a volta pelo município de Roca e venho por Encantado até chegar aqui. A gente chega aqui às 7h10min, 7h15min. Na volta, a gente sai daqui às 11h30min e eu chego em casa 13h15min, 13h30min — estima a jovem.
Apesar do cansaço, eles não cogitam trocar de escola ou desistir.
— Eu estudo aqui desde o 1º ano (do Fundamental). Se eu trocasse de escola, seria mais perto de casa, mas seria muito complicado, porque o meu aprendizado sempre foi aqui. Aqui é uma família, né? Não adianta, vou me formar aqui — conclui Diogo.
Com a ajuda de doações e recursos extraordinários repassados pelo Estado, boa parte das salas de aula já foi reformada, assim como a instalação elétrica do prédio e o telhado. O playground seguia interditado quando a Zero Hora visitou o local, e um muro derrubado pela água mantinha uma parte do pátio sem condição de uso. A obra no auditório ficou para o final.
Local provisório
Vizinha de Muçum, Roca Sales teve a sua única escola estadual – a Padre Fernando – devastada pela enchente duas vezes: em setembro de 2023 e em maio de 2024. Em abril, se preparava para a reconstrução de seu prédio, mas os estragos deste ano foram maiores, e a recuperação está descartada. Por isso, a escola opera provisoriamente há um ano nas salas de catequese do salão paroquial da igreja da cidade, onde ficará, pelo menos, até o final de 2025.
— Era muito melhor (o espaço antigo). Tinha refeitório, o pátio era maior, tinha a quadra. E também as salas eram maiores. Não era tão quente, tinha ar-condicionado e tudo. E é um pouco estranho ver como a escola ficou. Todas as nossas vivências, que a gente teve lá, não tem mais, sabe? Foi tudo com a água — lamenta Matheus Paranhos Peres, 15 anos.
No primeiro mês, o adolescente confessa que não tinha vontade de ir à escola. Depois, se acostumou. O sentimento é compartilhado pelo colega Luan Salini Rodes, 15 anos:
— Foi bem difícil voltar tudo de novo, que nem foi no ano passado. O mais difícil acho que foi a rotina de voltar a estudar de novo. As ruas também, voltar às aulas e vir pra cá — reflete.
A mudança exigiu grandes adaptações. No prédio antigo, havia 12 salas de aula. Agora, são apenas quatro. Não há laboratórios ou salas de informática, e dois banheiros químicos foram colocados no local para somar aos dois existentes: um para estudantes e outro para professores. A prioridade é receber os alunos do Ensino Médio, visto que a Padre Fernando é a única a oferecer essa etapa na cidade.
— Tivemos que reorganizar. São quatro turmas em cada turno. De manhã, tem o Ensino Médio. À tarde, tem os Anos Finais do Ensino Fundamental. À noite, o Ensino Médio noturno. A principal questão é o espaço nas salas de aula, que é limitado: não conseguimos colocar mais de 30 alunos — relata a diretora Bernadete Vuaden Severico.
A comunidade vive um impasse: no local original, a instituição precisaria ser reconstruída, uma região que pode voltar a sofrer com enchente. Já em outros espaços do município, a diretora afirma que a prioridade é de construir residências, e demoraria a haver disponibilidade para erguer a escola.
— Os alunos até estão fazendo um trabalho sobre a possibilidade de reconstruir a escola lá (no local original), mas uma escola diferente, adaptada à enchente. A gente tem o acompanhamento de um engenheiro do município, e a proposta é, embaixo, fazer toda uma área só de jogos, de estacionamento, e as salas começarem em cima — conta Bernadete.
Arthur de Castro Gonçalves, 15 anos, perdeu a casa durante a enchente de setembro de 2023, e ficou em um abrigo com a família durante nove meses. Em junho, se mudou para uma casa entregue pela prefeitura, e sente que a vida voltou quase ao normal – só reclama que o colégio ficou longe.
— O colégio era ali no Centro e a minha casa era duas ruas depois. Aí, agora, eu tô morando lá no Interior, porque a casa foi embora. Aí, eu tenho que vir de ônibus, é muito demorado, aí tem que subir um morro — descreve Arthur.
No início de 2023, havia 280 estudantes matriculados na Padre Fernando. Após as duas enchentes, o número caiu para 230, redução de 18%. Assim como em Muçum, os pedidos de transferências são para cidades próximas, como Encantado e Lajeado, e Santa Catarina.
Única escola estadual de Arroio do Meio e a maior da cidade, a Guararapes também não escapou da enchente de maio. Mesmo atingida, precisou retornar ao local onde funcionava, porque não havia outro espaço para abrigá-la. A sorte é que a água não atingiu o segundo andar e não danificou a maior parte das salas.
No entanto, espaços como a secretaria, a biblioteca com 8 mil títulos, o setor pedagógico, a sala de professores e a cozinha foram destruídos. Dos 600 alunos matriculados em abril, hoje restam 510. Muitas famílias também tiveram suas casas danificadas.
— Não só pelo que aconteceu na nossa escola, mas pelo que aconteceu na cidade, houve muitos pedidos de transferência. Muitos perderam o emprego, muitos foram tão arrasados em suas casas, que foram embora. Não queriam mais ficar na cidade — diz a diretora Valquíria Dienstmann.
Enchente recorrente
Em Venâncio Aires, no Vale do Rio Pardo, a Escola Estadual de Ensino Médio Mariante já vinha, nos últimos anos, passando por dificuldades. Em julho de 2022, o prédio da instituição – a única da Vila Mariante, no interior do município – foi interditado. Em abril do ano seguinte, após a substituição completa das instalações elétricas, os estudantes voltaram a ter aulas lá.
A alegria durou pouco: a primeira enchente atingiu o colégio em setembro de 2023, e a segunda inundação de maio foi a pá de cal. No térreo, o que sobrou foi uma grossa crosta de lama, móveis deteriorados e arquivos com documentos inutilizáveis.
Com isso, o número de matriculados caiu quase pela metade, de 170 para 90, que estão sendo atendidos na Escola Estadual de Ensino Médio Adelina Isabela Konzen, localizada a 13 quilômetros de distância da Mariante. Diante de uma Vila Mariante esvaziada, na qual muito do que sobrou foram carcaças das moradias, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) avalia não reabrir a antiga instituição.
Na área urbana de Venâncio Aires, a Escola Municipal de Educação Infantil Frederico Closs já convivia com episódios de enchente, mas nada perto do que aconteceu em maio. O laudo da prefeitura apontou que a estrutura está condenada. Para retornar, seria necessário construir um prédio novo.
Desde setembro, as cerca de cem crianças matriculadas são atendidas em um local provisório próximo à rodoviária, onde antes funcionava um ateliê de roupas, a 2 quilômetros de distância do lugar anterior.
— Não está tão perto, né? Eu já andava 16 quilômetros até a outra escola e, agora, eu ando 18. Mas a gente tem que se adaptar — conclui Júlia Portes, professora da Frederico Closs.
O berçário não foi disponibilizado no novo endereço, devido à falta de espaço, e não há pátio para os pequenos brincarem.
O representante comercial Ricardo Halmenschlager, pai de um aluno da Frederico Closs, diz que foi difícil o período em que o filho ficou sem creche, mas que a mudança para o novo endereço foi positiva.
— Agora, com essa nova creche, temos um deslocamento um pouco maior, em função de estarmos em outra área, mas, pelo menos, temos uma creche novamente para deixar nossas crianças aqui sem problemas com enchente, porque naquela área não tem mais como — avalia Halmenschlager.
A diretora Anelise Heinen Böhm lembra bem do dia a dia na escola antiga quando chovia:
— A água chegar na porta da escola era rotineiro para nós. Tinha, às vezes, quatro dias por semana que, de tardezinha, quando fechávamos a escola, a gente levantava tudo, armário, geladeira, aí a água não entrava. No outro dia de manhã, às 6h30min, abre a escola, aí nós baixávamos tudo de novo. Era uma rotina.
O prédio novo fica em uma região mais elevada da cidade. Por isso, a comunidade sente uma tranquilidade maior, por não ter que pensar em possíveis estragos quando chove.
Mofo que brota
Em volta da Escola Estadual de Ensino Fundamental Aurélio Porto, em Montenegro, no Vale do Caí, ainda há muita destruição causada pela enchente. Dentro da instituição, porém, os sinais são sutis: portas ainda não trocadas, cantinhos do rejunte escurecidos e a centenas de documentos com históricos de alunos dos 67 anos de existência da escola.
A boa apresentação se deve ao trabalho intenso capitaneado pela diretora, Andreia Kerber, de limpeza do prédio e arrecadação de doações. Mesmo assim, as lembranças brotam da parede.
— As primeiras salas que eu pintei, em junho, estão mofadas. As que eu pintei depois das férias de inverno, estão ok. Diz que tem que secar a parede antes, para não vir umidade para fora, então, o certo seria esperar o verão. Mas todo mundo pinta para voltar, ninguém vai ficar esperando. O problema é que a parede fica toda manchada, e o cheiro é horrível — comenta a diretora.
Andreia dirige a Aurélio Porto há nove anos. Sempre que há risco de enchente, leva o computador e a impressora para a sua casa. Com isso, evitou a perda de muitos documentos digitais dos alunos.
A instituição iniciou o ano com 113 estudantes e, no pior momento pós-enchente, chegou a ter esse número reduzido para 80, o que representa queda de quase 30%. Agora, algumas crianças retornaram e outras novas se matricularam. Na memória dos pequenos, ainda estão frescas histórias de resgate e de perdas materiais.
— Foi bem ruim. Perdi muitas coisas, vários brinquedos, várias pelúcias, várias roupas. Perdi mesas, cadeiras — resume Isabella Flores, 10 anos.
Da escola, Liara Borchardt da Silva, oito anos, perdeu o caderno, a mochila, o estojo, os lápis. Na volta às aulas, sentiu dificuldade para se concentrar:
— Demorou bastante para eu lembrar tudo de novo (dos conteúdos que aprendeu), porque eu fiquei traumatizada. Às vezes eu ficava me lembrando e ia pro quarto ouvir música de chorar, ou tentava me distrair, desenhar, andar de bicicleta.
Gisele Antunes Flores, mãe de Isabella, afirma que a filha tem sofrido consequências em sua saúde mental, desde que a enchente aconteceu e a família precisou ser resgatada de casa.
— A Bella ficou acho que até mais nervosa do que o normal dela. Qualquer coisa, ela já fica desesperada. Então, agora, ela não quer mais ficar sozinha em casa. Também tenho um pequeno, de quatro anos, que acho que ficou traumatizado. Começa a chover, ele já pergunta: “Vai dar enchente?”.
Jamile da Silva de Vargas, nove anos, teve mais sorte do que as colegas: ainda que tenha atingido o térreo de sua casa, a água não alcançou o segundo piso. Mesmo assim, perdeu material escolar e se esforçou para relembrar o que já havia aprendido:
— Eu esqueci de umas coisas e, às vezes, eu ficava brincando de escolinha em casa pra tentar aprender de novo.
Para auxiliar os filhos, de três, 10 e 15 anos, a lidar com o trauma da enchente, a agente educacional Aretusa Ramos procurou incluir os mais velhos no processo de limpeza da casa.
— Todos os dias, desde o primeiro dia que a gente tentou lavar a casa, a gente lavou a casa juntos. Eu pegava e mostrava para eles: “Vem, ajuda a mãe, que vai dar tudo certo”. E eles pegaram junto — recorda Aretusa.
* A pauta desta reportagem foi selecionada pelo 6º Edital de Jornalismo de Educação, da Jeduca e da Fundação Itaú