Arquivos com documentos de alunos, computadores com informações como telefones e endereços das famílias e a existência das próprias casas e celulares de estudantes: em algumas comunidades de Porto Alegre e Região Metropolitana, tudo isso foi por água abaixo. Para descobrir onde os jovens estavam após a enchente, diretoras e professores tiveram que improvisar.
— Todo dia eu vinha a Canoas, de Porto Alegre. Levava cinco horas para vir, cinco horas para voltar. Mas eu tinha que estar ali, sabe? Na ponta do viaduto, cuidando. Aí, as professoras e nós, durante a noite toda, ficávamos tentando localizar as crianças, as famílias. Nos dias seguintes, o pessoal começou a ir para o abrigo. E aí, começaram a dizer “ah, encontrei fulano”, “encontrei sicrano”. A gente ia para mapear como estava a situação das crianças — lembra Vanice Costa, diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Thiago Würth, a maior de Canoas.
Meses depois, o dia a dia da instituição, localizada no bairro Mathias Velho – um dos mais atingidos pela enchente –, ainda não voltou ao normal. Em outubro, ainda havia obras no colégio e marcas da água em algumas paredes. Nos assentos, faltavam crianças: a infrequência tem chegado a 400 dos 1,2 mil matriculados, em especial em dias de chuva, e 60 alunos estão em situação de busca ativa, termo utilizado quando o estudante deixa de frequentar as aulas e não é localizado.
— Tem alguns que a gente nem sabe onde estão. Outros, vêm e voltam. E tem alguns que ainda estão meio confusos, traumatizados, tanto que, em dias de chuva, muitos não vêm. Acho que as crianças ficam com medo.
Com relação aos que ainda não localizou, Vanice não sabe se não estão frequentando nenhuma instituição ou se fizeram matrícula em outra rede de ensino. Sua esperança é de que o período de rematrícula, que começa em novembro, faça com que esses alunos procurem a Thiago Würth, em busca de sua documentação escolar.
Sensibilidade
A Thiago Würth tem se mostrado sensível às adversidades passadas pela comunidade, que, em muitos casos, sequer pôde voltar para casa ou enfrenta questões de saúde mental. Com uma estudante está sendo feito um trabalho domiciliar, pois ela ainda não consegue sair de casa. Outra mãe relata que, devido à distância, só consegue levar o filho, que tem autismo, uma vez por semana à escola.
Maior instituição de Porto Alegre, a Escola Técnica Estadual Parobé, no Centro, é referência no ensino profissionalizante e recebe alunos de diferentes municípios. Aqueles que dependem da Trensurb têm passado dificuldade para frequentar as aulas, mas a direção e as coordenações dos cursos têm analisado todos os casos.
— Quando um aluno vem aqui me procurar, para dizer que está com dificuldade para vir, eu digo “Ah, tu vem numa semana, na outra tu pede para o professor te dar um trabalho, para justificar essa falta”. Esse é o meu papel como gestora: incentivar o aluno a não desistir — avalia a diretora, Iraci Milnickel.
Os laboratórios do Parobé foram lavados pela água, impossibilitando a realização de atividades práticas. Por esse motivo, o currículo dos cursos foi reorganizado, de modo a oferecer as aulas teóricas antes, enquanto esses espaços são recuperados.
Apesar dos esforços, houve desistência de alguns, em especial daqueles que se mudaram. De 2,6 mil matriculados, cerca de 200 saíram. Outros, quando ocorreu o aumento dos horários de ônibus e a expansão do trem até a Estação Farrapos, puderam retornar.
Quando a enchente veio, a Escola Municipal de Educação Básica Doutor Liberato Salzano Vieira da Cunha, a maior da rede municipal de Porto Alegre, no bairro Sarandi, se preparava para comemorar seu aniversário de 70 anos com um jantar. No lugar da festa, os insumos das refeições foram distribuídos para a comunidade, uma das mais atingidas da Capital. A doação ajudou a mapear parte dos alunos.
— Quando fizemos essa primeira doação dos insumos do baile, as famílias já foram avisando umas para as outras. Nós íamos até a família, colegas diziam “ah, meu endereço é esse, vem buscar na minha casa”. Eles iam e já avisavam: “tem o amiguinho que está lá”, “o vizinho está lá, precisando”. Foi uma corrente. Nesse momento, a gente sabia exatamente onde eles estavam — conta a diretora, Rochele Soares Pedreira.
Lucas Eduardo Subtil Leiria, 13 anos, não chegou a ter a sua casa atingida pela água, mas, devido à falta de luz e água no Sarandi e os boatos de que o dique da região havia rompido, a família optou por passar um tempo no bairro Hípica, na zona sul da Capital.
Quando eu voltei pra escola, não sabia nem fazer mais conta de divisão.
LUCAS EDUARDO SUBTIL LEIRIA
13 anos
— Fiquei uns três, quatro meses fora. Quando eu voltei pra escola, não sabia nem fazer mais conta de divisão. Fiquei enfraquecido, né, com esse tempo sem fazer nada — recorda o adolescente.
Nesse período, diz que não teve praticamente nenhum contato com a instituição. Quando soube que as aulas voltariam, ainda que em um espaço improvisado, já estava morando no Sarandi novamente. Em um primeiro momento, o foco era em acolher e conversar com os estudantes.
O colega Mauricio Barbosa Lorenzoni, 14 anos, foi mais longe: passou quatro meses morando em Tramandaí, enquanto os pais cuidavam da limpeza e reforma da casa, atingida pela cheia.
— Meus pais optaram por não me deixar ficar na reforma, porque era muita coisa. Tinha que limpar, tirar as coisas. Já que não ia ter muito espaço pra gente se mover, era melhor dois do que quatro, já que eu tenho uma irmã — comenta o estudante.
Com medo de que professores e alunos fossem transferidos para outras instituições, assim que pôde, a diretora foi atrás de espaços temporários para a Liberato funcionar. Conseguiu dois: a sede do Clube Comercial Sarandi e a Casa Paroquial da Igreja São José. Da Educação Infantil até o 3º ano do Fundamental, as turmas têm aulas no clube, e, do 4º ano em diante, na igreja.
Séries que tinham mais de uma turma precisaram ser aglutinadas, e as aulas têm três horas de duração e acontecem três vezes por semana, mas está sendo possível atender a todos.
— Agora a gente tá tendo o ensino um pouco mais enfraquecido, mas está dando pra gente vivenciar o que é a escola. É diferente do normal, mas a gente tá aproveitando, conseguindo estudar bem. Foi uma proposta muito boa da escola. Mesmo com um espaço que não é nosso mesmo — reflete Lucas Vaz Scaranti, 13 anos.
Enquanto isso, as empresas Ambev e Gerdau se responsabilizaram pela reforma do colégio. A previsão é de que o espaço possa voltar a ser utilizado no ano letivo que vem.
À espera de vaga
Se a enchente segue viva na memória daqueles que conseguiram voltar para casa, ela ainda é a realidade de quem vive em abrigos. No dia 30 de outubro, havia 1.791 pessoas vivendo em alojamentos provisórios e em centros humanitários de acolhimento. Quase metade estava abrigada em Canoas (499) e em Porto Alegre (377).
Na Capital, o abrigo funciona no Centro Humanitário de Acolhimento (CHA) Vida, no bairro Costa e Silva, administrado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM). Hoje, é o único alojamento da cidade.
Das 377 pessoas que vivem lá atualmente, em torno de cem são crianças e adolescentes. Há várias situações: crianças que cruzam a cidade para frequentar escolas de seus bairros de origem, aquelas cujas famílias têm dificuldade de fazer esse trajeto e nem sempre vão à aula, outras que fazem apenas atividades remotas e há as que aguardam vaga em instituição próxima.
Elizabeth Gonzalez, 22 anos, tem um filho de três anos, e estava há cinco meses no abrigo quando a reportagem a conheceu. Antes da enchente, morava no Sarandi. Com a casa muito danificada pela água, agora traça um plano para encontrar novo espaço para habitar no mesmo bairro. Um dos desafios é encontrar vaga para o filho:
— Eu tenho que ir lá no Centro fazer uma inscrição, aí esperar ter uma vaga em alguma escola do Sarandi para eu inscrever. Ele já vai completar quatro anos e eu ainda não consegui.
No CHA Vida, muitos dos abrigados vieram de outros alojamentos que foram fechados. Os relatos das crianças são de que frequentavam escolas próximas desses antigos abrigos, e ainda não encontraram vaga próxima ao novo endereço. Para estudar, muitos adolescentes vão ao fraldário do local, que é mais silencioso. Com tanta gente morando lá, eles dizem que nem sempre é fácil encontrar condições adequadas para fazer as atividades.
Perguntada sobre se vai à escola, uma menina de quatro anos diz:
— Não, tem que arrumar vaga.
Antes da enchente, a pequena conta que ia a um colégio perto de casa, no Sarandi, que alagou. Sobre sua vida pregressa, diz ainda que tinha um cachorro e uma galinha com pintinhos. Todos “alagaram”. Quando sair do abrigo, já sabe o que vai querer:
— Quero uma casa bem nova e com um quarto bem rosa. E eu queria que tivesse escada, mas eu tenho medo. Tem que ser uma escada pequena.
Em nota, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) de Porto Alegre informou que indicou às famílias abrigadas a busca pela Central de Vagas. No caso das já matriculadas em escolas distantes do abrigo temporário, a pasta relata que priorizou as que buscavam transferências e indicou o programa Vou à Escola, que oferece gratuidade no transporte público para estudantes. As crianças abrigadas que estudam na Escola Municipal João Goulart, no Sarandi, são transportadas diariamente em ônibus fretado.
Juntos na BR
Em Eldorado do Sul, a maior escola do município, La Hire Guerra, começou o ano com 879 alunos matriculados. Depois da enchente, em torno de cem não retornaram. E não foi por falta de esforço da direção – os profissionais da instituição viveram esse drama junto com pais e estudantes desde o início.
A gente passou fome, a gente passou frio, e os nossos alunos estavam conosco.
ANA PAULA GONZALEZ
Supervisora educacional
— A gente saiu fugido e foi parar na BR (estrada). Lá, a gente passou todo tipo de necessidade: a gente passou fome, a gente passou frio, e os nossos alunos estavam conosco. Então, a gente teve que ser firme, eu e a diretora, principalmente, porque a gente estava lá com as crianças, com as famílias — lembra a supervisora educacional Ana Paula Gonzalez.
Nos cinco dias em que ficaram acampadas na rodovia, e após o resgate, Ana Paula e a diretora, Luciane Lentino, se empenharam em ligar para os pais de quem tinham contato, para saber onde estavam. Sobre outras crianças, souberam ao peregrinar por filas de doações.
A prioridade de Luciane foi reconstruir a escola, que também recebeu o apoio de doadores da região. Hoje, a La Hire Guerra exibe paredes pintadas, portas e janelas novas, mobiliário renovado e até mochilas novinhas para as crianças. Já a casa de Luciane ainda não está pronta para moradia.
— Nós tínhamos que fazer o que precisávamos para as crianças aqui do bairro, para a nossa comunidade escolar, porque todos estavam precisando, e a escola, naquele momento, era a ajuda que todos teriam no momento em que ela estivesse funcionando. Foi muito importante ter esse recomeço para ajudar as nossas crianças e as famílias, porque todos que moram aqui perderam tudo — descreve a diretora.
Quem permaneceu em Eldorado do Sul, segundo Ana Paula, retornou para a escola – o que há são estudantes que, com as suas casas destruídas, se mudaram para outros municípios.
* A pauta desta reportagem foi selecionada pelo 6º Edital de Jornalismo de Educação, da Jeduca e da Fundação Itaú