Evelise Pereira, 53 anos, ainda estava abrigada no apartamento de familiares, na Capital, quando voltou a dar aulas de Ciências na Escola Municipal de Ensino Fundamental Prefeito Edgar Fontoura, em Canoas. Havia se passado um mês desde que a água invadira sua casa no bairro Rio Branco, no município da Região Metropolitana. A professora deixou a residência na noite de 3 de maio, após ser resgatada de barco, apenas com a roupa do corpo e uma bolsa — com objetos pessoais e o único livro que lhe restou.
— Saímos com a expectativa de voltar no domingo. Estava preocupada com o trabalho, porque segunda-feira teria que dar aula e precisava dos materiais. Mas só voltamos para casa 150 dias depois. A água passou da altura das portas, encheu e ficou assim umas três semanas. Sobrou pouquíssima coisa. Minha casa tinha muitos livros, quase todos se desmancharam na água. Sobrou um que estava dentro da minha bolsa e um que meu filho pegou. Foi devastador, impressionante — relata.
Em alusão ao Dia do Professor, celebrado nesta terça-feira (15), Zero Hora conversou com dois docentes — um da rede pública de ensino e, outro, da privada — para entender por que escolheram a profissão, quais os pontos positivos e os desafios enfrentados.
A escola onde a professora trabalha desde 2015 não foi diretamente atingida pela enchente, mas serviu como abrigo para as pessoas afetadas. Evelise ficou afastada por um mês. Nesse período, mesmo muito abalada, buscou ter notícias dos alunos por meio das redes sociais. Quando a instituição reabriu, fez questão de retornar, apesar da dificuldade de locomoção entre uma cidade e outra.
— Aqui (na escola) era um ponto de normalidade dentro daquele caos todo. Eu não podia voltar para minha casa, não podia usar minhas roupas, mas a minha sala estava aqui. Cheguei e ela estava como eu havia deixado quando as aulas foram suspensas. Aqui, eu falava sobre outras coisas, coisas mais normais, mais comuns. Então, dava um respiro. Foi bom ter podido voltar para a minha escola — destaca.
Formada em Biologia, Evelise dá aulas há mais de três décadas e, neste mês, concluiu seu doutorado. Sem familiares formados no Ensino Superior, se inspirou na única profissão com a qual tinha contato durante a infância, por meio da escola. Assim, garante que nunca pensou em fazer outra coisa: sempre quis ser professora.
Evelise fez Magistério, faculdade de Biologia e mestrado. Após o nascimento dos filhos, decidiu tentar outra função, que lhe oferecesse um salário maior. Foi bancária por um tempo, mas logo retornou às salas de aula:
— A coisa que eu mais gosto e sei fazer melhor é lecionar. É algo que me dá muita satisfação. Acho que o melhor lugar para se estar é em uma escola. Tem muitos problemas, mas ainda acho que é o melhor lugar para trabalhar, porque trabalhamos com vida o tempo inteiro. Vemos transformação na vida dos estudantes, vemos perspectivas de mudanças.
Apesar dos desafios, Evelise afirma que a profissão ainda ocupa uma parte importante de sua vida e que há três pilares que mantêm sua alegria: seus filhos, seu time - Internacional - e seus alunos.
— É um local bom de trabalhar, a rede é boa, eu sempre acho que poderia ganhar mais, porque eu mereço, mas não é um sofrimento vir para o trabalho. Continua sendo algo que me realiza, mas é claro que eu quero me aposentar — brinca, acrescentando que a filha de 21 anos deve seguir seus passos:
— Pelo menos, não fui um exemplo ruim.
“Falar sobre ser professor é falar da minha história familiar”
Assim como Evelise, Jonas Camargo, 40 anos, sempre soube que seria professor. A diferença entre os dois é que, para o docente, a maior inspiração veio da família. Nascido em Lajeado, no Vale do Taquari, ele é neto, filho e sobrinho de alfabetizadoras — o que significa que cresceu ouvindo histórias sobre alunos e rotinas em sala de aula.
— Para mim, falar sobre ser professor é falar da minha história familiar. Durante a minha infância, era muito comum ter momentos em que ouvíamos as histórias de sala de aula e isso era muito encantador. Então, ter na família professores inspiradores me fez escolher a profissão — resume.
De acordo com Jonas, também era comum encontrar ex-alunos das familiares, que sempre paravam para cumprimentá-las e contar as novidades. Um encontro específico lhe marcou profundamente e é lembrado com carinho: certa vez, estava com a mãe quando foram abordados por um homem adulto, que se apresentou e disse que havia batizado o filho em homenagem a sua ex-professora.
— Ele disse: “Dei para meu filho o nome de Jonas, porque fiquei sabendo que minha professora teve um filho, batizou de Jonas e ele era muito inteligente e estudioso”. Eu já tinha escolhido a profissão, mas isso tornou mais palpável uma coisa que eu já sabia: não há outra profissão com o mesmo nível de envolvimento que tem nessa relação entre professor e aluno. É muito profundo — ressalta.
Formado em História, Jonas começou a trabalhar oficialmente como professor há 16 anos, mas sua primeira experiência com alunos ocorreu ainda na adolescência, quando auxiliava a mãe em suas aulas no Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova), em Canoas. Atualmente, é docente de Ciências Humanas no Colégio Israelita, em Porto Alegre.
O professor garante que é muito feliz em sala de aula e que a docência lhe traz muitos ganhos, não apenas no âmbito profissional. Além de considerar sua função inspiradora e divertida, Jonas destaca que os alunos são uma espécie de “fonte da juventude” e que a troca no ambiente escolar é também uma experiência de afeto, que desperta novas curiosidades.
— Acho que tem a ver com como estabelecemos esses vínculos nos encontros, com o respeito e com se encontrar na profissão. Para mim, ser professor oferece um sentido para a vida. E eu não escolhi só ensinar coisas, escolhi ensinar História. Escolhi dizer para as pessoas que o passado, a memória, a nossa experiência humana nesse planeta deixam marcas e que nós somos responsáveis pelas marcas que ficam — comenta.
No futuro, Jonas espera poder olhar para sua trajetória e ver que conseguiu inspirar e apoiar muitos alunos, assim como seus ex-professores fizeram. Ele afirma que uma parte muito legal da profissão é encontrar ex-alunos, que referenciam o afeto que receberam e como se sentiam valorizados. Além disso, fica muito feliz quando algum jovem diz que quer seguir seus passos.
— Esses ganhos são os mais importantes. Eu fiz uma escolha porque aquilo me dava sentido, mas eu permaneço escolhendo ser professor porque o dia a dia é um manancial de sentido para mim. Eu encontro muito sentido para seguir vivendo porque eu tenho alunos, colegas professores, trabalho em uma escola e penso na educação — finaliza o professor.