– Estudei até a terceira série, mas eu era criança, já esqueci tudo. Conheço todas as letras, mas não sei juntar elas. Eu trabalhava de cozinheira, sabia tudo de cabeça. Decorava as receitas para poder preparar. Tenho dificuldade para usar celular, pegar ônibus, ver o preço das coisas no mercado.
O relato de Maria de Lourdes Cardoso, 65 anos, representa a realidade de pelo menos 256 mil pessoas no Rio Grande do Sul. Erradicar o analfabetismo até 2024 era um dos objetivos do Plano Nacional de Educação, lançado há 10 anos, mas o país ainda está distante dessa meta.
Embora o problema esteja concentrado sobretudo no Nordeste, com 11,2% de analfabetismo em 2023, o RS tem uma taxa de 2,7%, considerando a população acima dos 15 anos. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua 2023, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em 2022, a taxa era de 2,5% no Estado. Em 2019, 2,4%. O cenário é considerado de estabilidade, levando em consideração a margem de erro. Cerca de 62,5% dos 256 mil analfabetos do Estado são brancos – há cerca de 160 mil pessoas brancas nessa condição. No entanto, proporcionalmente, a população negra é a mais afetada, já que há menos pessoas pretas e pardas do que brancas no RS.
No Brasil, são cerca de 9,3 milhões de pessoas que não sabem ler nem escrever, conforme o IBGE. Mas especialistas acreditam que o problema possa ser mais grave. Na pesquisa, os entrevistados respondem se conseguem escrever um bilhete simples. Quem diz que “não” é considerado analfabeto.
– A situação é geralmente pior do que a Pnad mostra, porque a pesquisa é autodeclaratória. Ou seja, o constrangimento das pessoas pode interferir – analisa a professora Patrícia Camini, da Faculdade de Educação da UFRGS. – Não ter um desenvolvimento pleno da alfabetização é algo que afeta a vida da pessoa como um todo. Assim, vai se criando um estigma social por não dominar a escrita e a leitura.
É o que normalmente acontece com as pessoas mais velhas que são analfabetas, que enfrentam dificuldades ao longo da vida e acabam ficando constrangidas e desmotivadas. No Brasil, o problema do analfabetismo segue concentrado entre idosos, e no RS não é diferente. Considerando a faixa etária acima dos 60 anos, a taxa saltou de 6,8% para 7,4% entre 2022 e 2023 no Estado, conforme a Pnad.
Mas nada impediu Maria de Lourdes de ir atrás do sonho de ter autonomia para ler e escrever. Quase seis décadas depois de abandonar os estudos pela necessidade de trabalhar, a dona de casa decidiu se matricular na Educação de Jovens e Adultos (EJA) para completar o Ensino Fundamental. Desde fevereiro, ela estuda na Emef Max Adolfo Oderich, em Canoas.
– Eu sempre quis voltar a estudar. Pensava nisso, mas tinha medo. Eu tinha aqueles celulares pequenos, de botão, sabe, porque tinha medo de comprar os grandes e não saber mexer. Aí minha sobrinha disse: “Tia, tu não é burra, só tem que aprender a mexer”. Aí, decidi começar aqui, do zero. Eu tinha medo de vir sozinha para a escola, não tinha companhia. Mas um vizinho começou a vir e agora a gente vem junto. Comprei uma bicicleta só para vir – conta.
Nesse curto período, ela já aprendeu muita coisa. Começou a entender melhor os nomes das linhas de ônibus e percebeu que sempre deixava passar um coletivo que poderia estar utilizando, porque não conseguia ler o letreiro e ver o destino. Ela pretende cursar até o final, o módulo 4, que equivale ao 9º ano do Ensino Fundamental.
Maria Regina Alexandre de Almeida, 56 anos, aprendeu a ler e escrever na mesma escola de Canoas. Ela está no último semestre do curso, e a previsão é se formar em julho. Ingressou na EJA em 2020 para fazer um curso de cuidadora de idosos. Já atua na área informalmente, mas quer se qualificar e conseguir oportunidades melhores, e acredita que o diploma será uma porta de entrada. Conta que as amizades feitas no caminho a incentivaram.
– Fiz muitos amigos, eu e a Jane estamos sempre juntas. Uma incentiva a outra – afirma.
A colega Jane Margarete Rodrigues Duarte, 56, também está quase se formando e começou do zero, na turma de alfabetização. Ela diz que sempre trabalhou como faxineira e sente que os estudos faziam falta. Jane tem três filhas no Ensino Superior. Afirma que elas serviram como exemplo:
– Eu sempre disse para elas que valorizem os estudos, é o que vai ser o futuro de vocês. Daí elas foram pra frente, só eu que não pude ir. Tinha que trabalhar e cuidar delas. Mas não desisti. Vejo o esforço das minhas gurias e me espelho nelas.
Para a professora alfabetizadora Patrícia Rodrigues Guterer, que atua em Canoas, a socialização é importante para fomentar a aprendizagem nessa idade. De acordo com ela, os estudantes ganham muito com a convivência.
– Temos muitas pessoas que pararam de estudar há muito tempo, seja por trabalho, por ter que cuidar dos irmãos, por terem casado. Eles sempre chegam muito inseguros. Então, fazemos esse trabalho de levantar a autoestima. Quando eles veem outras pessoas mais velhas, que também têm suas dificuldades, isso faz com que eles queiram ajudar os colegas e se soltem mais – afirma.
Impacto social e econômico
Conforme o gerente de articulação e advocacy do Movimento pela Base, João Paulo Derocy Cêpa, não ser alfabetizado na idade certa tem diversos efeitos negativos.
– Garantir a alfabetização cedo é garantir que os estudantes desenvolvam as habilidades necessárias para poder seguir aprendendo em uma trajetória regular. Quem não consegue ler, escrever e compreender textos dificilmente vai aprender plenamente Matemática, História e Geografia, componentes curriculares que demandam interpretação de texto e análise crítica – explica o especialista.
A alfabetização é fundamental para o desenvolvimento social, linguístico e cognitivo do sujeito, segundo Patrícia Camini. Para ela, o atraso nessa formação fundamental provoca falta de autoconfiança. A longo prazo, isso pode contribuir com o aumento da evasão escolar.
– Se a pessoa não aprende na idade certa, vai faltando autoconfiança nas suas habilidades de comunicação. Em uma sala de aula do ensino regular, alguns vão se alfabetizando e outros percebem que estão com o desenvolvimento mais lento. Com isso, essas pessoas começam a desinvestir na sua aprendizagem, sentindo-se menos valorizados pelo professor – afirma.
A pesquisadora é coordenadora do Laboratório de Alfabetização da UFRGS e foi formadora do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa pela mesma instituição. Para ela, além do impacto na aprendizagem, o analfabetismo também acarreta consequências no exercício da cidadania.
– Vamos percebendo uma limitação de oportunidades profissionais, porque você não teve o desenvolvimento esperado do seu próprio capital humano, do que você poderia reverter para a sociedade em trabalho. É um prejuízo na formação integral, visto que todas as outras capacidades passam, de algum modo, pela comunicação – diz.
Para além da esfera individual, o analfabetismo tem efeitos coletivos. A longo prazo, o contingente de pessoas analfabetas pode gerar prejuízos para a própria democracia, porque as pessoas que não sabem ler e escrever têm mais dificuldade em identificar a desinformação.
– Só um leitor crítico vai conseguir fazer esse movimento de identificar e avaliar as informações. Alguém com analfabetismo funcional, por exemplo, consegue ler as palavras, mas não é capaz de fazer uma leitura crítica – afirma Patrícia.
Conforme os dados mais recentes do Indicador da Alfabetismo Funcional (Inaf), de 2018, esse problema continua em um patamar elevado. A pesquisa aponta que um em cada quatro trabalhadores que têm entre 15 e 64 anos são considerados analfabetos funcionais – ou seja, não conseguem ler ou escrever muito além de um bilhete simples e fazem somente cálculos matemáticos muito básicos. Além de universalizar a alfabetização, a meta 9 do Plano Nacional de Educação previa reduzir o analfabetismo funcional a 13,5% em 2024.
O analfabetismo torna os indivíduos mais vulneráveis e suscetíveis à manipulação das informações e à exploração econômica. Além disso, contribui para perpetuar a manutenção da pobreza, uma vez que a pessoa continua sempre com as mesmas possibilidades limitadas e não consegue estudar por conta própria para abrir os horizontes – algo que uma pessoa que domina a leitura e a escrita tende a fazer.
Somado a isso está o impacto econômico desse problema, que já está demonstrando seus reflexos no país. É o que diz a economista da educação e professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV), Tássia Cruz. Segundo ela, o capital humano tem impacto direto no Produto Interno Bruto (PIB), e carências na educação podem afetar a economia.
– Não só a alfabetização, mas o aumento na própria quantidade de anos educacionais, a escolaridade média e a qualidade da educação afetam a produtividade dos trabalhadores. Quanto mais capital humano, maior a produtividade e os resultados – destaca.
O capital humano é um conceito que representa tudo aquilo que um colaborador pode agregar à organização, em termos de conhecimento, competências e habilidades. André Gambier Campos, técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vai pelo mesmo caminho:
– Todas essas pessoas (analfabetas) tiveram menos renda ao longo de suas vidas e poderiam ter contribuído mais com a economia do país. Agora, a luta é garantir que esse processo não aconteça com as gerações mais jovens. Precisamos qualificar o ensino regular – diz o pesquisador.
Em uma perspectiva histórica, é inegável que a educação brasileira vem apresentando melhorias, pouco a pouco. Em 1940, por exemplo, o Censo identificou que 56% da população com 15 anos ou mais era analfabeta. Já estamos longe dessa realidade. Mas ainda há muito a fazer para eliminar o analfabetismo absoluto e o funcional, especialmente nas áreas rurais, distantes dos centros urbanos e com menos estrutura, onde o problema está concentrado.
A desigualdade étnico-racial também é um desafio. Em relação ao nível de analfabetismo por grupo étnico-racial no RS, em todas as faixas etárias, a taxa de analfabetismo é maior entre a população negra. No caso das pessoas de 15 anos ou mais, os brancos apresentam taxa de 2,2%, enquanto as pessoas pretas e pardas representam 4,5%. Já em relação às pessoas acima dos 60 anos, a taxa de analfabetismo é de 5,8% para os brancos e de 15,3% para os negros.
A pandemia de covid-19 evidenciou esses problemas. As crianças que passaram pela etapa de alfabetização durante esse período, tiveram um atraso na formação, em muitos casos, e esse problema pode gerar consequências no decorrer dos anos escolares. É o que diz João Paulo, do Movimento pela Base. Segundo ele, todas as escolas precisam urgentemente implementar processos e atividades de recomposição de aprendizagem, para não abandonar esses conhecimentos perdidos – não somente na pandemia, mas em casos de atrasos na trajetória escolar, como um todo.
– Antes da pandemia, muitos alunos já saíam da escola sem os conhecimentos adequados, como vinha mostrando o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica). Já existia uma distorção de aprendizagem, que se acentuou com a crise sanitária. Quando falamos de estudantes que tiveram a alfabetização prejudicada nesse período, muitos deles estão agora nos anos finais do Ensino Fundamental. Se isso não foi corrigido o quanto antes, eles vão acumulando essa defasagem, e isso se reflete em outras disciplinas – argumenta.