O corpo é frágil. Um passo de cada vez para subir ou descer as escadas, e sempre segurando firme no corrimão, a fim de prevenir quedas. Cabelo chanel, com a franja presa com dois tic-tacs. Na face e nas mãos, rugas de quem carregou mais fardos nessa vida do que pensava ser capaz. Por trás dos óculos de aros grossos e transparentes, um olhar curioso, dócil e ágil, atento às lições que a professora passa no quadro. Em sala de aula, a caxiense Loirena Maria Casagrande, apesar dos 68 anos, se comporta como uma menina, ávida por escrever uma nova história. Esse é mais um enredo feliz para ser celebrado nesta sexta-feira (28), no Dia da Educação.
Faz um ano que ela voltou a estudar. Atualmente, é aluna da T4 do programa Educação de Jovens e Adultos (EJA), no turno da noite, na Escola Estadual Presidente Vargas, no centro de Caxias do Sul. Sua turma é equivalente ao sétimo ano do Ensino Fundamental. Essa nova história a que Loirena tem se dedicado a escrever, parte de um momento de dor que tem sido sublimado na escola.
— Então, foi assim. No ano passado, minha mãe faleceu em janeiro, o pai das minhas quatro filhas, meu ex-marido, morreu em fevereiro e o meu companheiro, com quem eu vivi nove anos, morreu em março. Tudo numa paulada só. Então me encorajei a voltar pra escola, porque dentro de casa eu não conseguia mais ficar — revela Loirena.
A aluna sexagenária é exemplo de superação, não apenas para os colegas, bem como para os professores que convivem diariamente com ela.
— Ela não falta nunca. Pode faltar um professor, mas ela não, ela está sempre em sala de aula — diz Marta Conceição Gubiane, professora da EJA na Escola Presidente Vargas.
E complementa:
— A dona Loirena foi a minha aluna, no ano passado, é a mais estudiosa da escola. Eu olho pra ela e não me imagino, com a idade dela, em sala de aula.
Não bastassem os três lutos em três meses, ela ainda foi diagnosticada com Parkinson, uma doença neurológica que causa tremores, lentidão de movimentos, rigidez muscular, desequilíbrio, além de alterações na fala e na escrita.
— Tem dias como hoje que estou bem e tranquila. Não fico tremendo muito.
Na rotina escolar, revela sua preferência pelo mundo dos números, apesar de que, neste ano, está preocupada com seu desempenho.
— Matemática seria o meu forte, mas acontece que esse ano tá meio difícil. Não estou conseguindo pegar muito bem ainda, mas vou chegar lá! — brinca ela.
Inquieta, durante a entrevista concedida na sala da diretora, enquanto seu colegas se exercitavam na quadra esportiva, compartilhou com satisfação o resultado de uma atividade da aula de História.
— O professor incentivou a gente a escrever uma carta para o futuro. E sabe que minha carta serviu de exemplo e corria nas outras turmas? Agora tenho ela em casa, porque corrigi ela e passei a limpo.
— E o que dizia essa sua carta?
— Dizia que eu estava me sentindo bem aqui no colégio. Eu escrevi assim: “Gurizada, estudem!”. Eu escrevi bem assim, com exclamação, sabe. “Estudem porque é bom pra vocês e nunca é demais. Eu estou com sessenta e poucos anos e não estou a fim de desistir”.
— Então, a senhora pretende terminar o Ensino Fundamental, né?
— Não quero desistir. Só se for por algum motivo de força maior. Mas estou muito bem e feliz aqui. Eu estava jogando basquete antes e fiz 10 cestas!
— Quando que a senhora imaginaria, talvez nem nos seus melhores sonhos, que voltaria para a escola e até frequentaria as aulas de educação física?
— A vida reserva surpresas pra gente — responde Loirena, com a maturidade de quem subtrai as dores e multiplica a esperança.
Da vida para a lousa
O papel do professor em sala de aula é mais do que ensinar, da mesma forma que o do aluno é mais do que aprender. Essa equação, elevada à potência do ensino praticado na EJA, resulta em conteúdos que não cabem nas disciplinas da grade curricular, como Português e Matemática. Porque, se com as crianças, os professores partem do microcosmo de uma letra do alfabeto, para aglutinar em sílabas, depois frases, e mais tarde em narrativas e discursos. Em uma sala da EJA, os professores partem do macro, das vivências e experiências de vida de seus alunos para costurá-los aos conteúdos descritos em uma lousa.
Marta Conceição Gubiane e Ronaldo Henker são professores do turno noturno da EJA, na Escola Estadual Presidente Vargas. Segundo eles, a única da rede estadual a oferecer essa modalidade de ensino. Suas turmas são a T1 e T2, respectivamente. A T1 equivale aos conteúdos ministrados nos primeiros três anos do Ensino Fundamental, enquanto que a T2, se refere aos 4º e 5º anos.
— Nas nossas turmas se encontra bem o perfil das pessoas que não puderam estudar na idade certa. O pessoal trabalhava na colônia, ou morava longe, ou porque trabalhava o dia todo e não conseguia continuar a estudar. E a faixa etária, na maioria, de 40 e 50 anos pra cima. Muitos têm família, continuam a trabalhar, e alguns até são avós. Estão na escola para, como eles mesmo dizem, realizar um sonho — pontua Ronaldo Henker, formado no Magistério, com 10 anos de sala de aula, graduado em Economia e cursando Sociologia.
Por sua vez, Marta Conceição atua há 27 anos na rede estadual e nove na municipal. Formada em Magistério e cursando Pedagogia, pela manhã dá aula às crianças da rede municipal e, à noite, para adultos na EJA do Presidente Vargas. Ela explica que, apesar de trabalhar com o mesmo enfoque, utiliza propostas distintas de alfabetização diante das turmas dos pequenos e dos adultos.
— A gente tem de trabalhar as aulas da EJA mais voltadas à realidade deles e às necessidades deles. Não podemos infantilizar o ensino para eles. Porque não tem nada a ver com a alfabetização das crianças, que quanto mais lúdico melhor. Para os adultos, porém, não funciona.
Ronaldo, complementa:
— Nem tudo é conteúdo, nem tudo a gente consegue relacionar com a aula, porque, às vezes, eles trazem situações que estão deixando eles meio pra baixo, ansiosos ou preocupados. Então, por serem adultos, a gente consegue conversar no mesmo nível. E é gratificante, porque, em outra modalidade de ensino, dificilmente tu consegue trabalhar assim.
Marta e Ronaldo dizem que se sentem valorizados como professores, nem sempre reconhecidos pelas políticas públicas, mas a atuação em sala de aula, principalmente no convívio com os alunos da EJA, amplificam a sua forma de enxergar a vida.
— Claro que a gente conversa com os colegas e desanima, muito por causa da questão salarial. Mas eu discordo quando as pessoas falam que a sociedade não valoriza o professor. Eu acho que não. Muitas vezes quem não valoriza é o governo. Mas a figura do professor, na sociedade, é importante, ainda hoje e sempre vai ser. Todo mundo, em alguma fase da vida, lembra de algum professor e sempre representa algo importante para a vida dessas pessoas.
Resgatar memórias
Em uma entrevista, importa não apenas o que o entrevistado diz ou quais palavras enfatiza, mas, também, o gestual e tudo mais que se revela pelo olhar. Em pouco mais de 45 minutos de conversa, a professora e pesquisadora, licenciada em Língua Portuguesa e pós-doutoranda em Educação, Carla Sasset, deixou pistas suficientes para que ela seja reconhecida como alguém que enxerga o aluno para além das pilhas de conteúdo que precisa ministrar.
Professora da rede pública municipal há 25 anos, é em sala de aula que ela busca inspiração e subsídio para os seus mergulhos acadêmicos. Mesmo pandemia adentro, naquele átimo de tempo marcado na história da humanidade, ela encontrou uma forma de, como ela mesma diz, "resgatar memórias" e "mostrar horizontes".
— Vamos falar do ideal, do que se espera de um professor, especialmente na educação de jovens e adultos. Primeiro, sensibilidade para entender esse aluno, que está retornando de um momento de sua vida, nem sempre feliz, mas que teve experiências e vivências diferentes de uma criança ou até mesmo de um adolescente. Segundo, é preciso sensibilidade para enxergar esse adulto, além das questões de sala de aula, e tentar entrar no mundo dele, nas questões da vida e da memória — defende Carla.
A partir do fio da sensibilidade, a professora ainda discorre:
— A sensibilidade envolve resgatar memórias desse aluno. Porque a aula que tu planeja para um adulto, não é a mesma planejada para uma outra turma. Não é só dar uma aula. É construir juntos. Porque eles têm uma característica fundamental, que é o desejo de aprender. Sabe por que muitos professores querem trabalhar na EJA hoje? Porque os alunos são motivados, eles desejam estar ali.
Durante a pandemia, Carla teve uma dupla experiência de satisfação.
— Não é só o conhecimento formal que importa na EJA. Isso é importante dizer. A EJA traz à todos, alunos e professores, não importa, as trocas e as interações sociais. Eles diziam que não queriam faltar aula pra não perder o contato com os amigos. É lindo sabe. Eu, como professora, merecia esse presente de estar com eles.
E a segunda experiência, lembra Carla, foi ver sua mãe voltar a estudar:
— Minha mãe (Marili Teresa Calloni Sasset) me via dando aula virtual para a EJA então quis participar. Então, eu matriculei a minha mãe e quando voltou a ser ensino presencial, ela foi a primeira a optar pelo presencial. Ela pegava carona com os colegas e dizia pra mim que iria até de cavalo se fosse preciso. “Eu não falto mais, não vou perder a chance que a vida me deu”, ela dizia. Aí entra toda a questão da autoestima, de se sentir valorizada e que é capaz.
Mais do que o resgate de um tempo escolar, voltar à sala de aula na fase adulta, entende Carla, é uma forma de escrever uma nova história.
— É uma busca, pegar alguém que não tem mais esperança, que nem pensava em estar de volta em uma sala de aula, e tu dizer a ela: “Aqui também é o teu lugar, tu também pertence a esse mundo”. É lindo!
Além dos muros da escola
Dias antes da entrevista presencial com o professor, escritor e ex-patrono da Feira do Livro de Caxias, Delcio Agliardi, agradeceu, por telefone, o convite para participar dessa reportagem sobre os caminhos e processos da alfabetização. Mas, ao mesmo tempo, chamou a atenção para um dado alarmante:
— O país tem 11 milhões de analfabetos.
Cercado de livros, entre prosa e verso, literatura estrangeira e brasileira, há pilhas de obras que abordam a educação. Em cada resposta, Agliardi puxa um livro, cita um autor. Não se tratar de exibir sua intelectualidade. E, sim, de endossar seu pensamento com o trabalho de pesquisadores determinados a suplantar os obstáculos da educação, sobretudo em um país abissalmente desigual como o Brasil.
— O professor da Unicamp, Carlos Rodrigues Brandão, diz uma coisa: “Da educação ninguém escapa”. Ele está se referindo ao fato de que a educação é um processo largo, aberto, ao longo da vida, e não tem a ver só com a escola. E está garantido na Constituição.
Aliás, Agliardi se utiliza da Constituição, promulgada em 1988, para balizar o país, em termos educacionais, antes e depois da carta magna.
— O que é que acontece com os países pobres e em desenvolvimento como o Brasil? Eles sofrem um processo de escolarização tardio. É incrível, mas até 1988, a educação não era obrigatória no país. Quem não enviasse os filhos para a escola, juridicamente falando, não acontecia nada. Hoje acontece, porque há resguardo legal.
E prossegue, em sua argumentação:
— Nós passamos um longo período, do Brasil Colônia, do Brasil Império e um pedaço do Brasil República que não tinha escola para a população. A escola não era obrigatória, não era gratuita. A partir da Constituição é que vem essa ideia de uma escola para todos, laica, gratuita, pública. Porque para a escola ser obrigatória ela tem de ser gratuita.
É a partir desse momento histórico, que, segundo Agliardi a EJA passa a fazer parte da educação básica. E mais do que isso, a EJA passa a ser uma poderosa ferramenta nessa guerra colossal pela erradicação do analfabetismo no Brasil.
— Porque o Plano Nacional de Educação tem como primeira diretriz erradicar o analfabetismo? Porque nós temos 11 milhões de analfabetos. E aí, pasme, desses 11 milhões, a grande maioria é gente adulta e idosa. Porque vem desse ciclo não obrigatório da escola. Esse é o resultado. E a segunda questão é que dos 2 milhões de alunos matriculados atualmente na EJA, isso é senso escolar 2022, 50% têm menos de 30 anos. É gente que não teve sucesso na educação no seu tempo de escola, e agora tem de ir pra EJA.
O abismo educacional, exposto por Agliardi, se revela também como um problema social com reflexos também na economia. Para ele, a salvaguarda está na ampliação das políticas públicas e na formação de professores.
— Se não formar professores com essa visão, não temos futuro. Primeiro, pra distinguir que a alfabetização de crianças é regular e próprio do mundo infantil, e a alfabetização de adultos e idosos, não é o caminho regular.
Agliardi finaliza com a leitura de um texto que ele utiliza com frequência em suas aulas. A mágica das letras foi escrito por Chameli, aos 38 anos de idade. Nascida em uma região rural e muito pobre do Nepal, ela nunca havia frequentado a escola e era analfabeta absoluta até os 21 anos, quando começou a participar de um programa de alfabetização de jovens e adultos, onde aprendeu a ler e a escrever. Segue um trecho da carta de Chameli, lida por Delcio:
“Eu acredito no alfabeto, porque ele tem o poder de mudar a vida. Eu percebi o poder escondido no alfabeto no primeiro dia que eu entrei na sala de alfabetização de adultos. Nesse dia fui, pela primeira vez, apresentada para as letras que estavam no meu nome.
Ao descobrir o alfabeto Nepoli, eu descobri que eu era Cha-me-li e não Cha-mi-li, como todos costumavam me chamar. Parecia mágica. Uma pequena troca de “e” para “i” mudou meu nome! Se essa letra poderia mudar meu nome, o quanto seria capaz de transformar a minha vida se eu entendesse todas as letras?”.