Em abril de 2019, o jornal Pioneiro publicou uma entrevista com o educador português José Pacheco, um crítico do sistema tradicional de ensino, idealizador da Escola da Ponte, em Portugal, que não se esquivou de pisar em sala de aula, até mesmo na educação primária, para colocar em prática sua utopia. De uma forma bastante sucinta, ele resumiu o sistema educacional por três séculos em uma sentença: "Em suma: temos alunos do século 21, professores do século 20, a trabalhar como no século 19. Introduzir paliativos num modelo falido nada resolve. Urge conceber uma nova construção social de educação".
Acelerando o curso do tempo, na última terça-feira (6), por volta das 13h20min, adentrava pelos corredores da Livraria Do Arco da Velha, em Caxias do Sul, um tanto esbaforido por conta do calor extenuante que tomou conta da Serra nesta semana, o professor de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Renato Janine Ribeiro. Entre seus livros mais recentes estão Maquiavel, a democracia e o Brasil (2022), Duas ideias filosóficas e a pandemia (2021) e A boa política - Ensaios sobre a democracia na Era da Internet (2017).
Na pauta, Ribeiro revelou em uma espécie de déjà vu (ou no bom e simples português "já te vi") a ideia central do discurso de Pacheco, a partir de uma nova construção social da educação, sobretudo em como estabelecer pontes entre o que se pensa, planeja, discute e pesquisa na academia e em como levar isso tudo para a realidade do cotidiano da população em um país que nem sempre aborda a educação como prioridade e pilar para conduzir a nação para um futuro com melhores perspectivas.
O ponto de partida da conversa, que durou 38 minutos, foi um trecho extraído da obra A boa política. Para o autor a experiência política, sobretudo na educação, não deve reduzir seu caráter filosófico, mas, sobretudo, enfatiza que "é a educação que mais pode formar as pessoas na direção de maior liberdade e responsabilidade".
Confira a entrevista a seguir:
Uma das questões, a partir da observação do seu trabalho, de que maneira a academia ou as políticas públicas podem e devem estabelecer um diálogo mais próximo com a realidade em que as pessoas vivem?
A academia tem de tudo, nós temos de estudar os filósofos gregos, a Mesopotâmia, tem de haver expedições pra desenterrar arqueologia do Rio Tigre e Eufrates, e também arqueologia é muito importante pra conhecer a história antiga do Brasil, antes de ser Brasil. E, veja bem, estou começando justamente por áreas que parecem não ter nenhum interesse na realidade. A arqueologia tem nos permitido descobrir que a Floresta Amazônica não é uma dádiva da natureza, mas ela foi manejada pelos indígenas. Da mesma forma, se formos para os Andes, você vai ser como foi a domesticação do milho. Porque de toda a quantidade de espécies de milho, nem 10% são comestíveis. E, ao que tudo indica, as que são comestíveis são produto humano, os antigos indígenas da América do Sul e, talvez Central, tornaram comestível o milho. Então, mesmo que pareça mais distante da realidade, tem impacto. Então, quando você vai estudar, por exemplo, os poetas gregos, você descobre coisas básicas em como se constrói a humanidade. E em assuntos mais próximos, é muito importante o Brasil estudar a sua biodiversidade. O Brasil é um dos países com a maior biodiversidade do mundo. Nós temos seis biomas, sendo que o da Amazônia merece realce.
Em relação ao ensino em sala de aula, que é outra ponte que se estabelece com as mais diversas realidades, quais são os entraves?
Nós temos no Brasil uma ideia de que a universidade deve reunir pesquisa e ensino. É melhor ter um professor que sabe da descoberta de novos resultados, que tem condições de perceber o que é o fazer científico para ensinar as pessoas e formá-las ainda melhor. Por exemplo, supomos que você esteja na área da Engenharia e suponha que vê está pesquisando em termos de Engenharia de Pesca. Faz uma certa diferença ter aulas com um professor que só vai te formar para fazer um trabalho técnico e um professor que vai te fazer despertar suas dúvidas, hipóteses e etc.
Pode nos dar um exemplo disso?
Há pouco tempo me contaram uma história muito boa de cientistas que queriam estabelecer como se faz criação de peixe-boi em cativeiro. E pensaram muitas coisas até que um sujeito muito simples, que estava lá, disse: "Vocês não sabem que o peixe-boi só transa de pé?". Quer dizer, eles não estavam sabendo que, o principal ponto, era fazer um tanque com uma certa profundidade. Você tem de coletar conhecimento que é também popular. Tem muito erro no conhecimento popular, mas tem coisas importantes também. Então, se você tem o hábito da curiosidade, ou você pode ser um cientista ou pelo menos fazer perguntas. Hoje uma coisa muito importante é formar as pessoas na universidade pra que elas saibam onde buscar as respostas às dúvidas delas. Mas, se você souber, em qualquer curso universitário, os sites que têm informação nova já é muito importante.
O pressuposto da Filosofia é fazer perguntas, mas o senhor não acredita que há uma espécie de preconceito quanto à isso, por conta de que tudo deve servir imediatamente para algo?
A educação no Brasil nunca foi muito valorizada. A gente pega, por exemplo, o Dom Pedro II. Ele dizia que se não fosse Imperador ele queria ser mestre em escola. Mas o que ele fez pela educação no Brasil? Ele criou universidades? Não. Criou escolas? Que eu saiba, não. Desenvolveu a escolaridade? Que eu saiba, também não. Ele foi ao colégio que tinha o nome dele, Pedro II, e argumentou o que achava das aulas. Ele era um homem curioso e bem-intencionado, mas era um homem que realizou muito pouco. E isso, de certa forma, marca o Brasil. A primeira Constituição Brasileira que diz quais são os anos de escolaridade obrigatória é de 1946 e diz que tinha de ir à escola dos sete aos 10 anos. E isso ficou letra morta por muito tempo. Em 1967, ampliou-se de quatro para oito anos o tempo obrigatório. E, em 2009, para 14 anos. Atualmente temos 14 anos de escolaridade obrigatória, mas nem todo mundo cumpre os 14 anos. Antes do Fundamental 1, entre quatro e seis anos, e depois do Fundamental 2, entre 15 e 17 anos, você tem cerca de 75%, em cada um dos casos, fazendo a escola respectiva. Isso tudo ainda indica uma sociedade que dá menos importância a educação do que dá para a saúde. Toda campanha eleitoral você pode notar que os candidatos se apresentam, muitas vezes diante de postos de saúde, mostrando a importância da saúde, mas diante de escolas, é muito raro.
E por que a educação não é priorizada se até mesmo diferentes grupos sociais, incluindo aí a classe empresarial, estão sempre batendo nesta tecla?
Primeiro temos de fazer com que a opinião pública acredite, realmente acredite, na importância da educação. Segundo, o poder público tem que estar muito convicto da importância da educação. Temos um poder público que não tem valorizado a educação e parte da população que não acha isso importante.
E nessa discussão muitos valorizam os exemplos de outros países...
Quanto aos modelos internacionais, a Coreia foi muito celebrada no Brasil e hoje nós estamos passando pelo elogio da Finlândia. São dois modelos completamente diferentes. O modelo asiático é muito obediente, ligado a Confúcio (552 a.C. e 489 a.C., pensador e filósofo chinês), de achar que a disciplina e a obediência e até mesmo a decoreba são importantes. O modelo que a Finlândia está propondo é mais interdisciplinar, mais vinculado à liberdade do indivíduo e a formação dele. E tem muito mais a ver conosco.
E qual o modelo ideal para o Brasil? É o que prioriza o universo regional, no entorno da escola onde estuda o aluno?
Cada um de nós nasceu no eu chamo de "seu mundo particular", numa determinada classe social, numa determinada religião ou falta de religião, com uma quantidade de dinheiro e num conjunto de valores. O importante da escola, e da educação de uma maneira em geral, é mostrar que existem outras coisas além desse mundo particular. Então, a escola sim, tem de partir da sua realidade, mas tem que abrir outras realidades, tem de mostrar para a pessoa, em uma terra que a cultura da cana é muito importante, que existem outras coisas além da agricultura, com outras perspectivas. Você tem de fazer a pessoa entender o mundo em que ela vive, ser capaz inclusive de criticar esse mundo, entender que existem outros e se abrir para isso.
O senhor sistematizou um curso baseado na série Merlí, que aborda um professor de Filosofia do Ensino Médio. Qual foi seu propósito com essa iniciativa?
Eu gostei muito da série então tive a ideia de fazer esse curso que ministrei na Casa do Saber, em São Paulo, e também na Unifesp, ambos disponíveis online. Eu pretendia, com esse curso, abordar um professor de Filosofia que lida com jovens e procura fazer as questões que estão ligadas a ele. Um dos capítulos mais impressionantes é quando uma pessoa se suicida perto da escola e ele traz aos alunos a questão do que é o suicídio, questões a respeito da alma, da existência ou não de Deus, e é muito interessante, porque o próprio professor se diz cético e ateu. É uma série que não se preocupa com nenhuma doutrinação. O que a série faz é contar a importância da liberdade, a liberdade de escolha. Liberdade não é ter a possibilidade de xingar as outras pessoas e, sim, a liberdade é de saber que são plurais os caminhos.
O senhor lançou em 2021 o livro Duas ideias filosóficas e a pandemia. No campo da educação, que feridas a pandemia deixou?
Desde que a pandemia começou apareceu muito a discussão sobre a perda dos conteúdos a serem ensinados. E desde o começo eu avisei que o maior problema não é o conteúdo, mas é psíquico. Você tem crianças, adolescente e até adultos privados por muito tempo do convívio com outras pessoas e isso é muito grave. E entendia que as pessoas tinham que elaborar isso de alguma forma quando voltassem ao convívio presencial. E não houve isso. Minha ideia era, no dia em que você voltasse ao presencial, reunir a classe toda, chamando o professor, o funcionário da limpeza, o pessoal do escritório e colocar todo mundo pra falar como é que viveu, quais foram os traumas, os dramas, os medos, as perdas que sofreram e, eventualmente, o que foi bom, pois pra algumas pessoas pode ter havido. Tem gente que se saiu bem no virtual. Mas esse ponto, praticamente não foi levado em conta.
De um modo geral, que sugestões o senhor daria para que os professores ministrassem aulas mais criativas e mais cativantes?
Penso que é preciso abrir janelas e mostrar caminhos novos. Vou dar um exemplo na Química, em uma área que não é a minha, mas que me interessou muito porque é um dos ensinos mais difíceis no Ensino Médio. A Química é mais complicada de fazer o aluno entender do que Matemática, História ou até mesmo Física. Eu faria a Química ligada à gastronomia, porque todo o trabalho de cozinhar e preparar alimentos você tem de juntar diferentes elementos, então poderia ser feito um curso que ensinasse aos jovens a química da cozinha. No caso das línguas, eu enfatizaria muito a Literatura e não só de Língua Portuguesa, do Brasil ou de Portugal. Por exemplo, quem está no Ensino Médio, está com 15 anos, e é a fase em que os adolescentes se apaixonam. Então seria interessante as pessoas lerem importantes obras que tratam do amor. Você tem romances, poesias, letras da Música Popular Brasileira, e acho que esse é um aprendizado que falta. Um terceiro ponto é o contrato. Com 16 anos você começa a votar, com 18 anos, pode assinar um contrato, como locador ou locatário, por exemplo. Você pode comprar alguma coisa, se tiver dinheiro, claro, e pode se casar. Todos esses são contratos. Só que não existe um ensino do contrato e da reciprocidade de obrigação, e isso tem a ver também com o amor. Em um casamento, a gente espera que seja o culminar de uma relação amorosa e elas firmam um compromisso de estarem juntas. Dizendo em outras palavras, a educação não deve ser utilitária, deve ser útil.
Dicas de leitura, por Renato Janine Ribeiro
"Duas ideias filosóficas e a pandemia", ensaios de Renato Janine Ribeiro
Nesse livro, eu discuto como que a pandemia pode ser enfrentada com êxito devido a importância da ciência e a importância da compaixão.
"Cantiga de Esponsais", conto de Machado de Assis
História de um compositor que perdeu a mulher e a vida toda ele quis fazer uma música que fosse muito bonita, mostrando seu amor por aquela mulher e ele nunca conseguiu. Já idoso, ele ouve uma mulher recém casada cantarolar uma música e essa era a música que ele sempre quis fazer e nunca conseguiu".
"O Vermelho e o Negro", romance de Stendhal
É um grande romance de amor que mostra um jovem que se apaixona por duas mulheres. A primeira, realmente o ama e, a segunda, vive em um mundo de fantasia. Eu acho que é muito importante contrastar esses dois tipos de amor.
"A hora e vez de Augusto Matraga", conto de João Guimarães Rosa
Esse conto mostra um homem prepotente, agressivo e que de repente perde todo o poder, sendo humilhado. Aos poucos ele se reconstrói então ele tem a oportunidade de voltar a ser prepotente ou de ser uma pessoa diferente. É muito bom para as pessoas pensarem em escolhas.