Era para ter sido tão e simplesmente uma apresentação oficial da inserção da Universidade de Caxias do Sul no Programa Cátedras Unitwin/Unesco, conectando a entidade a uma rede que envolve 850 instituições em 117 países, que pretende ajustar o foco para dois temas pontuais, que se fundem e se complementam, a Educação para a Cidadania Global e a Justiça Socioambiental. A ideia era sensibilizar os professores da universidade ao que o reitor Gelson Leonardo Rech entende ser “motivo de orgulho termos uma Cátedra da Unesco, a primeira em 56 anos de história da UCS”.
Assim como esperam da gente, como nação, esperam de Caxias, esperam da UCS esse compromisso com essa causa da sustentabilidade, que não é para Caxias, não é para o Brasil, não é para a América Latina, é uma contribuição para ao mundo.
MOACIR GADOTTI
doutor em Ciências da Educação e presidente de honra do Instituto Paulo Freire
A palestra, na última quarta-feira (22), contudo, além de cumprir com este papel, resultou em diálogos que podem iluminar o incerto futuro nem tão distante assim, que impõe novos desafios diante de novos contextos sociais, culturais, ambientais, bélicos e, por aí vai. Além da palestra do doutor em Ciências da Educação e presidente de honra do Instituto Paulo Freire, o professor Moacir Gadotti, dialogaram com ele a diretora da Área do Conhecimento de Humanidades (UCS), Terciane Ângela Luchese, a vice-coordenadora da Cátedra Unesco, Maria Julieta Abba (Unisinos), o coordenador da Cátedra na UCS, Danilo Romeu Streck, além do já citado reitor.
— A Cátedra é um espaço aberto de produção de conhecimento, de disseminação do conhecimento, vamos fazer pesquisa, vamos fazer trabalho nas comunidades, vamos fazer pesquisa nas escolas... A Cátedra, eu comparo assim, é tipo uma plataforma, sabe, onde as pessoas que estão interessadas nessa temática, e acho que interessa pra muita gente, a proposta é que se encontrem para “botar a mão na massa”. A Cátedra não vem para substituir nenhum programa, nenhum projeto de pesquisa. Ela vem de fato para somar e pela Cátedra haverão vinculações nacionais e internacionais — explica o professor Danilo Romeu Streck.
Para o reitor Gelson Rech, hospedar a Cátedra é não apenas acolher e promover diálogos e ações ancoradas na Cidadania Global e na Justiça Socioambiental. É também o reforço de uma cultura, que na sua visão, é o eixo estruturante na formação de novos profissionais e professores na UCS.
– Essa Cátedra, em particular, que fala de educação, fala de cidadania, em justiça socioambiental, ela vem reforçar a ideia de uma cultura interna nossa. Se trabalhamos com educação e formação, essa Cátedra vai ficar nos cutucando, nos chamando a atenção, para aqueles professores e profissionais que estamos formando, que o aspecto técnico que eles recebem aqui é uma pequena parte. Eles têm de levar na bagagem a cultura que aqui disseminamos, da justiça socioambiental, da sustentabilidade ambiental, senão não vamos fazer educação de fato.
Antes da palestra, o professor Moacir Gadotti, 81 anos, sendo 60 deles em sala de aula, concedeu a entrevista a seguir, com exclusividade, ao Pioneiro:
Qual a importância, dado o atual contexto mundial, destes temas que o senhor aborda em sua palestra?
Acompanhei o surgimento da Cátedra e, desde o começo, eu vi a atualidade e a necessidade dessa proposta. Atualidade, porque o tema da Justiça Socioambiental está na ordem do dia, inclusive o discurso de posse da Marina Silva (ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima) foi sobre isso. E também a Educação para a Cidadania Global é atual, porque nós perdemos a paz. Estamos vivendo em guerra hoje e não é só da Ucrânia e da Rússia. Vivemos uma guerra de concepção de mundo. Fora as guerras que não são declaradas e estão acontecendo nos organismos internacionais. Num momento em que a globalização se esfacela e de um momento em que precisamos de mais união. Então, a Cátedra surge dessa necessidade na área de educação. Porque não basta ser atual, tem de ser necessário também. E responde a uma necessidade hoje da construção de uma educação cada vez mais integrada e feita sob diferentes olhares.
Quais olhares seriam esses?
Um dos olhares é simplesmente o das relações econômicas, como a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) coloca muito isso. Um outro olhar é das relações humanas, quer dizer, que ser humano nós estamos querendo construir e se há um lugar onde esta pergunta é fundamental é na universidade. Como consciência crítica da sociedade, a escola também, mas a universidade tem o dever de se questionar sobre que futuros nós queremos construir. E a Unesco tem um documento que embasa isso e foi publicado no ano passado, cujo título é Reimaginar Nossos Futuros Juntos: Por um Novo Contrato Social para a Educação.
Essas questões têm voltado com força por que, de certa forma, como sociedade deixamos de compreender o propósito, o sentido e o valor da educação?
Essa construção do que aconteceu desde que Theodor Adorno (filósofo alemão / 1903-1969) pergunta: “O que vamos fazer depois de Auschwitz?” (rede de campos de concentração localizados no sul da Polônia operados pelo governo nazista). Essa é ainda a pergunta e qual resposta nós vamos dar na educação e a resposta veio, na época, inicialmente, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), mas essa não pode ser seguida como documento básico. O que aconteceu foi que cresceu na América Latina toda a educação popular, inspirada pelo Paulo Freire (1921-1977). Na África, toda a reafricanização preconizada pelo Amilcar Cabral (1924-1973), um grande pedagogo, um grande professor, que foi assassinado. Tudo isso vinha ao encontro de uma educação humanista, cada vez mais centrada nas pessoas. O Papa Francisco disse a pouco sobre isso, em cartas, ele fala na necessidade de um novo pacto educativo global. O sentido desses movimentos todos é criar um novo consenso.
Consenso para que caminho, professor?
Eu acho que nós fomos perdendo as raízes humanistas na educação a partir do momento que a OCDE, por exemplo, que é um modelo dominante, coloca a questão do mercado acima das pessoas. Quer dizer, eles dizem que primeiro têm de atender a profissionalização dentro da inovação, tocar o desenvolvimento econômico e é pra isso que serve a educação. E depois se faz um ranking disso, criando sistemas de avaliação que separam vencidos de vencedores e todo o humanismo vai por terra com essa meritocracia toda. Recentemente, foi publicado um livro, nos Estados Unidos, sobre a meritocracia que se chama A Tirania do Mérito: O que Aconteceu com o Bem Comum? (escrito pelo filósofo norte-americano Michael J. Sandel). O livro mostra claramente que o sistema norte-americano faliu. Há sinais evidentes da necessidade da busca por um novo modelo de educação.
O senhor acha que pessoas compreendam a importância de um novo modelo de educação?
Eu li duas vezes o projeto da Cátedra que o Danilo (Romeu Streck, coordenador da Cátedra na UCS) fez. O plano é excelente. E uma das coisas é a questão da inserção com a escola pública, através dos municípios. Creio que o grande desafio da Justiça Socioambiental não é o conceito, é a prática. Traduzir isso nas disciplinas. Uma das tarefas da Cátedra é traduzir isso, converter esse conceito na operacionalização necessária do currículo. E não precisa da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). É só pegar o currículo que está na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Eu ouvi o José Saramago, no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, falar que não precisava de declaração de partidos, nem de sindicatos, é só pegar a Declaração Universal dos Direitos Humanos e, aí, sim, dá pra fazer uma nova educação possível.
Como traduzir essas questões no dia a dia?
A educação para a cidadania global é uma educação planetária. As palavras global e a planetária estão juntas. Eu acho que esse conceito está nas crianças. Nascemos com uma vontade de agarrar as coisas, de tentar cheirar, comer, esse vínculo amoroso com a terra vem desde o nascimento. E, muitas vezes, a educação distancia o ser humano desse vínculo amoroso com a terra. A gente sabe que o ambiental e o social são indissociáveis, então, se você degrada o meio ambiente, você degrada também a sociedade. Por isso, esse tema é tão fantástico: Justiça Socioambiental e não só ambiental, nem só social.
Qual o papel do Brasil nesse processo?
Eles esperam muito do Brasil, porque somos uma grande referência na área ambiental. Nos últimos seis anos, digamos, a voz do Brasil, deixou de ser ouvida, porque se distanciou dessas temáticas e, a nível internacional. Por isso, me chama a atenção, uma das coisas que justifica essa Cátedra é que vocês têm algo especial.
O senhor se refere a Caxias?
Gente, esse verde, esses vales, esses rios, se há um lugar ideal para que se estabeleça uma Cátedra sobre sustentabilidade é Caxias do Sul. A mãe natureza foi muito generosa com vocês. Então, usufruam e cuidem dessa natureza. Não sei se estou sendo romântico demais, mas dar visibilidade também à riqueza natural desse município e dessa região. Há poucos lugares que têm essa generosidade, visto de cima, é de uma beleza. E assim como esperam da gente, como nação, esperam de Caxias, esperam da UCS esse compromisso com essa causa da sustentabilidade, que não é para Caxias, não é para o Brasil, não é para a América Latina, é uma contribuição para ao mundo.
Cátedra da UCS/Unesco
As cátedras Unesco têm a função de construir pontes entre a academia, e a sociedade civil e informar decisões em políticas sobre o tema a que se destinam, na UCS, a educação para a cidadania e sustentabilidade.