"Catastrófico", "desastroso" e " irreversível" são alguns dos adjetivos usados por diferentes membros do meio acadêmico gaúcho ao analisar um cenário de possível suspensão do pagamento de bolsas de estudo de mais de 443 mil estudantes de cursos de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado em todo o Brasil.
A hipótese foi ventilada em carta pública do presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Abilio Neves, ao ministro da Educação, Rossieli Soares da Silva, caso o orçamento da instituição fosse reduzido em relação aos R$ 3,8 bilhões de 2018. Embora o valor para 2019 não esteja fechado, a Capes trabalha com informações de que sofreria um corte de 15%. No final da tarde de sexta-feira, o ministério afirmou que não haverá suspensão do pagamento das bolsas da Capes.
Ainda assim, o alerta serviu para que a comunidade acadêmica se manifestasse sobre o impacto mais sério do cancelamento das bolsas: o risco de tirar a ciência brasileira do rumo.
— Desde meados da década passada, a pesquisa do Brasil vinha crescendo a ponto de se tornar um membro respeitável do jogo internacional. Só que não é algo que se possa interromper. É uma corrida de 100 metros. Se você leva um tombo, não consegue levantar a tempo de retomar a corrida. Um trabalho anterior de anos se perde completamente —compara Marcia Barbosa, professora do Instituto de Física da UFRGS e diretora da Academia Brasileira de Ciências.
Segundo Marcia, o cancelamento das bolsas afetaria o que a pesquisa tem de mais precioso: a quantidade de pesquisadores.
— A sociedade tem dificuldade de dimensionar o impacto da ciência no dia a dia dela. Veem o pesquisador como um sujeito que estuda algo que não vai servir para nada. Se não houvesse acontecido aqui uma pesquisa acadêmica para adaptar a soja ao solo do Rio Grande do Sul, o Estado não conseguiria cultivá-la. Hoje, é o terceiro maior produtor do Brasil — lembra Márcia.
Pesquisas têm impacto na sociedade
Professora da Escola de Ciências da PUCRS e coordenadora do Laboratório de Genética Forense, Clarice Alho também alerta para a quantidade de pesquisas de impacto direto nos interesses da sociedade gaúcha. Só para citar duas, frutos de uma parceria entre a PUCRS e a Polícia Federal: um estudo do genoma da maconha que torna possível rastrear a origem da droga apreendida e, assim, decifrar rotas de tráfico; e a possibilidade de realizar retratos falados de suspeitos por meio de amostras de DNA.
— E nesta pesquisa fica clara a necessidade de se fazer pesquisa aqui. Uma pessoa loira na Noruega não tem no DNA as mesmas características que fazem dela loira no Brasil, um país muito mais miscigenado. Para esse trabalho, precisamos dos nossos próprios bancos de DNA. Não se trata de uma tecnologia que possa ser importada e adaptada – esclarece a pesquisadora.
Salvo Clarice e uma funcionária, todo o restante de uma equipe de mais de 20 pessoas é formada por bolsistas da Capes, de Ensino Médio a pós-doutorados.
— É simplesmente impossível manter o trabalho sem esse pessoal — afirma Clarice.
No front das pesquisas, estudantes relatam apreensão sobre o eventual corte de bolsas em um quadro financeiro que já é complicado como está. Mestrandos de dedicação exclusiva, o que significa que não podem ter um emprego de carteira assinada, recebem R$ 1,5 mil — apenas R$ 546 acima do salário mínimo —, e doutorandos ganham R$ 2,2 mil. Os valores foram reajustados pela última vez em 2013 e não incluem contribuições para a previdência.
— No atual cenário, em que as pesquisas acontecem em cidades grandes, e portanto de custo de vida caro, a ciência já atrai pessoas que podem contar com algum suporte de familiares. Sem esse recurso, será praticamente impossível retê-las — opina Bernardo Sfredo Miorando, doutorando em Educação da UFRGS, bolsista Capes e membro de um fórum de pós- graduandos que emitiu nota de repúdio ao hipotético corte de verbas.
"É rasgar dinheiro já investido"
Doutoranda em Cardiologia e Ciências Cardiovasculares pela UFRGS, Lucineia Orsolin Pfeifer ressalta o desperdício de dinheiro que é interromper bolsas de pesquisas em andamento.
— Eu pesquiso o impacto de exercícios físicos na saúde de idosos diabéticos. Não tenho condições de bancar o doutorado sem bolsa. Com ela, já é difícil. Como ficaria um estudo como esse, impossível de ser retomado? É rasgar o dinheiro já investido — declara a estudante.
Por fim, o risco do cancelamento das bolsas é agravamento imediato de um problema já presente no meio acadêmico brasileiro. É o que o diretor de pós-graduação da PUCRS, Christian Kristensen, chama de "diáspora de cérebros" para o Exterior:
— Na PUCRS, são mais de 2 mil alunos de pós-graduação. Com que incentivo vamos manter um pesquisador aqui quando uma universidade do Exterior acenar para ele? Depois de formarmos ele, vai fazer seu trabalho lá fora e não retornará mais.
Marcia, da UFRGS, faz coro:
— Se as bolsas forem canceladas, a primeira coisa que vou fazer é passar a mão no telefone e oferecer as pessoas boas que temos aqui para amigos professores de universidades do Exterior.