Um jurista gaúcho nascido em Santiago e com boa parte de sua formação acadêmica feita em Santa Maria e Porto Alegre é atualmente um dos principais responsáveis pela proteção dos direitos dos consumidores no Brasil.
Vitor Hugo do Amaral Ferreira, graduado em Direito pela Universidade Franciscana (UNF), com mestrado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), entre outras qualificações, é, há cerca de um ano, diretor do Departamento de Defesa e Proteção do Consumidor (DPDC). O órgão é vinculado à Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), que fica dentro do guarda-chuva do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Em entrevista a Zero Hora, Vitor Hugo detalhou a estrutura de proteção aos direitos do consumidor no Brasil, aponta os principais desafios que enfrenta em seu cargo, como as demandas contra gigantes da tecnologia, e comenta a atuação do órgão onde trabalha em casos concretos que recentemente chamaram a atenção do público. Confira:
Como foi seu ingresso e como é a sua atuação no Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor?
Eu já tinha recebido outros convites para vir para a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), que naqueles momentos não foram adiante, ou porque eu tinha uma situação pessoal na minha vida, ou porque não era a hora certa ainda. Aí novamente eu recebi o convite da atual gestão para fazer parte aqui do time da Senacon e dessa vez aceitei. Assumi como diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), e a gente tem encarado aqui uma diversidade de temas e assuntos.
Hoje, eu costumo dizer que a gente começa o dia falando de rotulagem de alimentos, passa por passagens aéreas, planos de saúde, e encerra o dia falando de regulação de plataformas digitais. A pauta da defesa do consumidor é muito ampla.
Como é essa estrutura da Senacon, vinculada ao Ministério da Justiça, e da proteção aos direitos do consumidor no Brasil?
A Senacon, entre as suas atribuições, é a coordenadora da política nacional das relações de consumo, coordenando também o sistema nacional de defesa do consumidor. Então, é o órgão que apresenta, implementa e executa políticas públicas de defesa do consumidor no Brasil.
Dentro do guarda-chuva do sistema nacional de defesa do consumidor estão também os Ministérios Públicos atuando em defesa do consumidor, as delegacias de defesa do consumidor, as associações de defesa do consumidor, os Procons, todas as entidades que de alguma forma vão trabalhar com a proteção e com o direito dos consumidores.
É uma articulação nacional, nós temos reuniões periódicas com os representantes desse sistema nacional e tiramos as pautas que são mais essenciais para se trabalhar no contexto do Brasil, em uma perspectiva mais macro.
Hoje, por exemplo, atuamos em pautas como a prevenção e o tratamento do superendividamento, já que uma grande parcela da população brasileira sofre com essa questão, com as altas taxas de juros, com a ausência de renegociação. De forma agravada isso se estabeleceu no Rio Grande do Sul depois das enchentes. Nós já vínhamos acompanhando essa situação de endividamento e o Rio Grande do Sul tem um agravamento após o período de maio.
Tem também uma parceria, inclusive, com a professora Cláudia Lima Marques e com a UFRGS em relação a isso, certo?
Sim, e importante destacar que a professora Cláudia Lima Marques, atual diretora da Faculdade de Direito da UFRGS, é a maior referência em Direito do Consumidor no Brasil, e uma das maiores referências do mundo. Dentro do cenário de atuação que eu estava comentando, a Senacon coordena a implementação dos NAS, Núcleos de Atendimento aos Superendividados, organizando também mutirões de renegociação dessas dívidas.
Nós estabelecemos um mutirão no ano passado, e vamos repetir esse ano, chamado Renegocia. Então, após as eleições municipais, nós vamos fazer uma nova edição, em novembro ou dezembro, onde todos os Procons, em acordo com as instituições financeiras, com aquelas principais entidades que os consumidores devem, um grande período de negociação.
Nós vamos fazer uma negociação específica, pontual, no RS, com apoio da Faculdade de Direito da Ufrgs, que a gente está chamando de renegociação especial Rio Grande do Sul, atendendo essas pessoas que são vítimas ou foram vítimas da enchente e contraíram ou agravaram endividamentos por essa razão.
VITOR HUGO DO AMARAL FERREIRA
Diretor do Departamento de Defesa e Proteção do Consumidor
Como vocês lidam na Senacon com as operações digitais, que têm crescido cada vez mais nos últimos anos?
É um desafio muito grande que se coloca para o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, atender todas essas questões oriundas das novas tecnologias. Há o avanço da inteligência artificial, da internet das coisas, o debate sobre a regulação de plataformas digitais, as questões que envolvem desinformação direcionada ao consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor é muito claro quando diz que a informação precisa ser clara, precisa e ostensiva. E hoje, diante dessa seara de desinformação e fake news no âmbito digital, a gente tem que reforçar que a informação tem que ser clara, precisa, ostensiva e verdadeira.
Então, o nosso departamento tem feito essas ações, medidas cautelares, abordando essas questões. Tem uma específica no Rio Grande do Sul contra o Facebook, em que nós constatamos uma série de anúncios com desinformação e tentativas de fraudes no período da enchente. Então, ingressamos com uma cautelar contra o Facebook determinando a retirada do ar desses anúncios. Existe a responsabilidade da plataforma de retirar do ar esse tipo de conteúdo na medida em que se identifica que é uma fraude, e também há responsabilidade de repassar dados e informações para que a gente possa apurar de fato quem é o responsável.
Ainda sobre as plataformas digitais, vocês também têm uma ação em âmbito nacional contra a Meta por uso de dados de usuários brasileiros em relação à inteligência artificial. Como é acompanhar questões relacionadas a esses avanços tecnológicos na prática, e como é o desafio de demandar contra grandes grupos internacionais?
A questão de demandar contra esses grupos, para nós, é muito tranquila. Quando se fala em plataformas digitais, não dá para se dizer que não existe legislação no Brasil. Toda e qualquer plataforma que for operar, e se entendendo que esse usuário da plataforma é um consumidor, essa plataforma está sujeita ao Código de Defesa do Consumidor. Por estar sujeita ao código, passa a estar sujeita às questões de direito básico à informação, como eu dizia, uma informação clara, precisa, ostensiva e verdadeira, e nós temos aí uma situação muito precisa, que é a proteção do consumidor contra a publicidade enganosa, publicidade abusiva.
Nós temos previsto um rol de práticas abusivas, de cláusulas abusivas, então toda e qualquer empresa que vem operar no Brasil, seja ela de grande ou de pequeno porte, está sujeita ao cumprimento do Código de Defesa do Consumidor.
VITOR HUGO DO AMARAL FERREIRA
Diretor do Departamento de Defesa e Proteção do Consumidor
Fazer esse tipo de ação é mais um cumprimento do que é ordinário para a Secretaria Nacional do Consumidor, é o cumprimento da nossa competência, da nossa legitimidade. O desafio maior é estabelecer um grau de confiabilidade, um programa amplo de comunicação para os consumidores, para que entendam que, mesmo que tenham aceitado um termo de uso, aquele termo de uso não é absoluto, não pode ser contrário ao que a legislação determina.
E aí nós temos uma diversidade de ações que envolvem plataformas digitais, essa específica que você citou é uma denúncia que nós recebemos do Idec, o Instituto de Defesa do Consumidor, do uso de dados de usuários para treinamento de inteligência artificial. Nós fizemos uma notificação pedindo informações, a empresa retirou o uso de dados para esse treinamento de inteligência artificial, recuou.
E falando da Meta, de forma específica, a nossa tratativa com eles é muito tranquila. A gente tem um canal de comunicação aberto com a empresa, temos, a partir disso, também derrubado vários anúncios que são fraudulentos, indícios de fake news.
A Senacon tem instrumentos para atuar judicialmente, mas o código prega a harmonização das relações de consumo, e harmonizar as relações de consumo é atender aos interesses daqueles que estão nessa relação. Nesse caso, especificamente, atender a proteção dos consumidores e dialogar para que isso aconteça. Quando não se constata boa-fé, disponibilidade de diálogo, aí tem que agir com as medidas que nós temos.
Você mencionou também a questão da regulação das plataformas digitais, um tema debatido com muita força no Brasil nos últimos anos. Como você avalia essa discussão e essa necessidade aqui no país?
Quando a gente fala de plataformas digitais, o ponto-chave é a transparência. E a transparência vem de um princípio que norteia qualquer relação, seja ela relação contratual, de consumo ou não, que é a possibilidade de se dar clareza, transparência e informação, que vão efetivar o princípio da confiança, o princípio da boa-fé. Quando nós falamos de plataforma digital ou qualquer outro serviço, nós temos que assegurar ao consumidor informação, nós temos que assegurar ao consumidor segurança no exercício dessa relação de consumo. E quando se fala de segurança, se fala de segurança em relação à sua saúde, em relação à proteção dos seus dados, em relação à sua liberdade de escolha, à sua participação na relação de consumo.
Quando a gente fala de relação de consumo, pressupõe a vulnerabilidade do consumidor, pois é o sujeito mais frágil nessa relação. Nas plataformas digitais, a gente reconhece uma vulnerabilidade que é tecnológica, digital, é um modelo de negócio novo que atrai uma diversidade de outros modos de operar a relação de consumo, que até pouco tempo atrás se baseava em o consumidor ir presencialmente até um estabelecimento fazer a compra de um produto ou serviço. Hoje, a gente tem ferramentas digitais que facilitam essa aquisição de produtos e de serviços, mas elas trazem também uma série de questões que exigem uma nova roupagem de segurança para esse consumidor. Nós temos que fomentar o avanço da tecnologia, o desenvolvimento econômico, mas de forma equilibrada à proteção do consumidor. E o Código de Defesa do Consumidor é muito claro, só precisa ser efetivado.
Nós temos uma das melhores legislações de defesa do consumidor do mundo, mas o Brasil tem o hábito de construir excelentes legislações, mas não cumpri-las com excelência.
VITOR HUGO DO AMARAL FERREIRA
Diretor do Departamento de Defesa e Proteção do Consumidor
Quando falamos de regulação de plataformas digitais, o mundo todo está discutindo isso, mas quando se fala que as plataformas digitais no Brasil estão em um limbo de legislação, eu discordo. Nós não temos uma legislação específica que trate da regulação das plataformas digitais, mas quando a plataforma digital atua nas relações de consumo, elas estão sujeitas ao Código de Defesa do Consumidor, com responsabilidade pelo serviço ofertado, pelo vício desse serviço, pelos efeitos desse serviço. Questões que já estão no código contemplam, sim, a atuação das plataformas digitais, tanto é que elas percebem isso e que muitas das determinações que a Senacom fez para as plataformas digitais foram cumpridas.
Nós podemos avançar em um debate sobre uma legislação específica de regulação das plataformas digitais, mas nós não podemos dizer que não há legislação competente à sua atuação no Brasil. Há uma legislação forte, importante, para operar nas plataformas digitais e qualquer outra relação de consumo que seja estabelecida, e os legisladores, o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário precisam reconhecer o Código de Defesa do Consumidor como ferramenta de enfrentamento às plataformas digitais.
Nessa esteira, como você avalia a implementação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais no Brasil e sua relação com as relações de consumo?
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) trouxe um avanço significativo, sem sombra de dúvidas, ao ordenamento jurídico brasileiro. É uma legislação específica sobre a proteção dos dados no ambiente digital, e que dialoga com o Código de Defesa do Consumidor, o que é fundamental.
Neste ambiente digital, cada vez mais utilizado pelos consumidores, todos nós deixamos rastros e trilhas com as nossas ações nas redes, que geram dados que podem ser usados de forma irregular para uma série de questões, como direcionamento de publicidades e serviços, por exemplo. Por isso, por mais que ainda se verifique, de certa forma, alguma confusão em relação à sua aplicação, a LGPD representa um grande avanço no Brasil, pois busca justamente um aperfeiçoamento da proteção de dados, e, consequentemente, da relação de consumo, reforçando a defesa do consumidor nesse processo.
Abordando agora um outro caso concreto, da URB, conhecida como Hotel Urbano, que vende pacotes de Turismo. A gente já teve no Brasil outros casos problemáticos aos consumidores nesse setor, como da 123 Milhas. Vocês detectam essa área como especialmente sensível?
É sim uma das áreas ou temas mais sensíveis hoje que nós temos na nossa atuação. Nós temos dois grandes cases no país hoje, justamente esse da URB e o da 123 Milhas. Na 123 Milhas nós fizemos uma série de ações, processos administrativos, medidas cautelares, mas hoje a questão é tratada dentro da recuperação judicial da empresa. Já no caso da URB não existe uma recuperação judicial, então nós avançamos.
Nós estamos prestes a lançar, junto com a companhia, uma plataforma digital que vai buscar uma composição a todos os consumidores que tenham sofrido danos, que tenham sido lesados no Hotel Urbano.
VITOR HUGO DO AMARAL FERREIRA
Diretor do Departamento de Defesa e Proteção do Consumidor
Nós temos um processo administrativo que tem uma medida cautelar e a URB pediu recentemente para a Senacon a assinatura de um termo de ajustamento de conduta, que nada mais é do que um acordo com a empresa, para que ela cumpra algumas determinações da Senacom em troca desses processos serem suspensos. Nós avançamos com esse termo de ajustamento de conduta, que está prestes a ser assinado, e entre as questões que nós exigimos da URB é que ela prestasse aos consumidores uma forma de composição desses conflitos.
Vamos lançar um amplo plano de chamada desses consumidores que vão se cadastrar nessa plataforma e lá vão ter a opção de escolher essa compensação, que contemple a passagem aérea, todo o custo que esse consumidor teve, e que tenha ainda algo a mais.
Na prática, quais eram os problemas verificados na operação do Hotel Urbano?
O que aconteceu na URB era a venda de um pacote que eles chamavam de pacote flexível, que não tinha data exata, o cliente poderia viajar em até 12 meses, e isso gerava uma série de não cumprimentos da oferta, porque quando o consumidor ia executar o seu pacote não conseguia viajar ou tinha que fazer complementação de valores. Hoje tem uma determinação da Senacon que proíbe a URB de vender pacotes flexíveis nessa margem de 12 meses. Era um pacote flexível, mas de tão flexível o consumidor não tinha informações claras de como executaria a viagem.
Novamente, esse é o grande norte da defesa do consumidor, nós precisamos fortalecer a importância da informação clara, precisa e ostensiva, acrescentando a questão dessa informação também ser verdadeira. As novas tecnologias trouxeram várias outras ferramentas que facilitam a defesa do consumidor, que facilitam a relação de consumo, mas que também trazem fraudes e práticas abusivas. O que nós temos que fazer é utilizar essas ferramentas de forma positiva, para defender o consumidor.
O mesmo consumidor que corre o risco de cair em um golpe digital, pode utilizar a própria internet para fazer pesquisas sobre aquela empresa, verificar se tem reclamações sobre aquela empresa.
VITOR HUGO DO AMARAL FERREIRA
Diretor do Departamento de Defesa e Proteção do Consumidor
Isso só vai acontecer quando esse consumidor tiver uma educação para o consumo, quando a gente puder, de alguma forma, minimizar essa vulnerabilidade digital e fortalecer esse consumidor.
Chamou a atenção recentemente também a atuação da Senacon após a queda do voo da Voepass. Como foi a atuação na prática de vocês nesse caso, o que vocês cobraram em relação à empresa e como vocês estão preparados para atuar nesse tipo de tragédia com tanta celeridade?
Algo que tem me orgulhado muito aqui no Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor é que a gente tem dado uma resposta muito rápida a diversas ações. A gente tem atuado de forma não só forte, mas também de forma rápida.
Quando se fala do acidente da Voepass, a gente teve a queda do avião e prontamente, no dia seguinte nós já notificamos a empresa. Assim que nós tivemos o conhecimento da tragédia com a queda do avião, nós fizemos, via a nossa coordenação-geral de monitoramento de mercado, a notificação da empresa para que ela nos prestasse informações sobre o ocorrido, para que nos diga o que aconteceu, quais eram os indícios do que ocorreu.
Além disso, nós tínhamos como objetivo verificar como estavam sendo atendidos os familiares das vítimas do voo, como estava esse canal de comunicação, se estavam dando suporte para deslocamentos, funeral, e aí fizemos essa solicitação, para que a empresa nos demonstrasse que estava de fato prestando atendimento efetivo aos familiares desses consumidores.
Recentemente você fez comentários sobre uma questão que tem trazido muita preocupação, que é a quantidade de veículos circulando no Brasil com airbags defeituosos, podendo gerar graves acidentes. Quais são os direitos do consumidor nesses casos?
Nessas situações, o chamado recall é um dever do fornecedor, que ao constatar potencial de risco, perigo ou nocividade, deve comunicar as entidades públicas e organizar o chamamento dos consumidores para conserto, substituição e/ou reposição de peças e equipamentos. Assim, o consumidor tem o direito de ter o reparo, para evitar acidente de consumo, sem qualquer custo.
O problema deve ser constatado pela empresa, após disponibilizar o produto no mercado de consumo. Em regra, o fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança. Quando, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários. A informação publicitária deverá ser veiculada na imprensa e sempre que tiverem conhecimento de periculosidade de produtos ou serviços à saúde ou segurança dos consumidores, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão informá-los a respeito.