Em O País dos Privilégios, Bruno Carazza se propõe a dissecar os mecanismos por meio dos quais determinados setores da sociedade brasileira extraem benefícios privados do Estado.
Quando o foco é a elite do serviço público, tema do primeiro volume da série, que saiu este ano pela Companhia das Letras, a atenção se volta para os padrões remuneratórios de algumas poucas categorias - judiciais, fiscais, militares e políticas, entre outras. Além, é claro, das vantagens em série que turbinam os ganhos de um grupo restrito de carreiras com poder de influência e que se apoiam na omissão dos órgãos de controle externo e no corporativismo das associações de classe.
Carazza fala com propriedade. Além de mestre em Economia pela Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ele é servidor público de carreira licenciado - trabalhou no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e no Ministério da Fazenda. Também é professor universitário e assina colunas em veículos de imprensa nacionais.
Ao todo, O País dos Privilégios terá três volumes.
Os próximos, previstos para sair em 2025 e 2026, vão abordar os privilégios no âmbito do setor privado e dos super-ricos, respectivamente.
Muitas vezes, a crítica à cultura dos privilégios é generalizada ao serviço público, mas o livro mostra que o problema está em uma parcela pequena de servidores.
Sempre se afirmou que temos um serviço público inchado no Brasil, mas isso não é verdade. Somando militares e civis, tanto federais, quanto estaduais e municipais, temos 12% da nossa força de trabalho empregada no setor público. Nos Estados Unidos, apontado como um país liberal, o índice é 15%. O problema é que a folha de pagamento dos servidores é muito pesada. Não temos tantos servidores, mas eles custam muito. E a discrepância está nas carreiras do topo. Se você compara os ganhos de um professor de escola pública com um equivalente no setor privado, o da escola pública ganha até menos. Mas principalmente nas carreiras jurídicas, fiscais e financeiras, há uma diferença grande.
Alguns argumentam que a preocupação deveria estar com quem ganha pouco e não com quem ganha bem. Como o senhor responde?
É preciso deslocar a discussão não para a natureza da carreira mas para a contribuição que o servidor dá para a sociedade. Quando se discute simplesmente pela natureza do trabalho, normalmente tendemos a achar que todos devem ser valorizados. É importante que tenhamos um Judiciário independente e que julgue com celeridade, então é preciso sim prestigiar a carreira, assim como os analistas do Banco Central, os fiscais do Ibama, os servidores do SUS, os professores, enfim, todos exercem funções nobres.
Mas a avaliação que nunca se faz é a contribuição que cada servidor dá para a sociedade. Por exemplo, as carreiras do Judiciário e do Ministério Público têm salários muito expressivos. No livro, eu mostro que mais de 90% dos juízes e membros do MP ganharam em 2023 acima do teto do funcionalismo, que é de R$ 44 mil. Mesmo assim, observamos ano a ano os processos na Justiça se acumulando, alguns chegam a levar dezenas de anos para ter um fim. Deveríamos deslocar a discussão da importância da atividade, porque todas são importantes, para uma ótica de se remunerar de acordo com a contribuição, inclusive individualmente.
O privilégio surge quando há uma distância entre a remuneração e a entrega.
O senhor cita no livro alguns casos, como o de um procurador de Minas Gerais que afirmou publicamente que seria impossível viver com salário líquido de R$ 24 mil por mês. Como chegamos a esse nível de descolamento da realidade?
Uma vez instituído esse estado de coisas, em que algumas carreiras têm rendimentos muito descolados do restante do funcionalismo e da sociedade, gera essas situações que são até distópicas. Integrantes dessas carreiras se habituam a esses pagamentos que turbinam seus ganhos, em muitos casos sem recolher Imposto de Renda. Isso acaba gerando uma situação de anestesia em relação a uma realidade de pobreza e miséria que temos no país.
Muitos desses pagamentos são respaldados em lei. Mas qual é o prejuízo dessa cultura de acúmulo de benefícios à sociedade?
Essas poucas carreiras, que são muito bem articuladas com a cúpula dos três poderes, conseguem, através de lobby e pressão, aprovar legislações que lhes garantem tratamento diferenciado em relação ao restante da sociedade. Esses benefícios são fundamentados em um aparato jurídico que, na maior parte das vezes, nascem de canetadas de um ministro do Supremo ou do procurador-geral da República. Há um manto de legalidade mas, ao fim, essas decisões criam despesas em favor de um grupo restrito de servidores que têm poder de influência. A cada ano vemos uma transferência de dezenas de bilhões de reais em recursos públicos, que são escassos e coletados por meio de uma carga tributária alta, para beneficiar grupos muito específicos.
O teto do funcionalismo, como o senhor disse, virou uma ficção. Como corrigir isso?
Na teoria, é fácil de resolver. Já temos o dispositivo na Constituição, bastaria o Supremo estabelecer que esse teto se aplica a todos em qualquer situação. Na maioria das vezes, os benefícios são criados como verbas indenizatórias, que não estão sujeitas nem ao teto nem ao pagamento de Imposto de Renda. Então, essa é a saída que as carreiras encontraram para furar o teto.
Se o Supremo declarasse que o teto do funcionalismo tem valor absoluto sobre as folhas de pagamento, sem nenhuma exceção, a fábrica de penduricalhos seria contida.
O livro também aponta omissão por parte dos órgãos de controle externo.
É preciso repensar tanto a composição quanto a competência de órgãos como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) de decidir sobre remuneração. Os componentes desses órgãos, em sua maioria, são membros da própria Justiça e do MP, que legislam em causa própria. O ideal é que a maior parte dos integrantes sejam pessoas de fora para que haja realmente um controle externo, e que não possam deliberar sobre questões remuneratórias.
É preciso repensar também o cálculo da divisão da arrecadação entre os poderes?
Tanto o Judiciário, quanto o MP e o Legislativo recebem, sob argumento da autonomia financeira, percentuais fixos da arrecadação. Se a arrecadação sobe, eles recebem mais. Então, não há um estímulo para que esses órgãos sejam mais ciosos em relação aos recursos públicos, eles ficam a salvo de todas as discussões sobre ajuste fiscal e muitas vezes utilizam esses recursos para criar mais benefícios. Precisamos repensar essa ótica fiscal.
Qual deve ser o norte de uma reforma administrativa?
Precisamos de uma estrutura com salários de entrada mais baixos e vários níveis até chegar ao topo da carreira. E que os servidores progridam na carreira não simplesmente com o passar do tempo, mas submetidos a avaliações de desempenho e com a obrigação de se capacitarem. É algo urgente, até para separar o bom servidor, que merece ser prestigiado e bem remunerado, do servidor que não é comprometido. Hoje, temos uma situação que é o oposto disso: salários de entrada altos, poucos níveis e sem avaliação de desempenho séria.
Todas essas medidas dependem dos próprios órgãos, ou seja, a mudança precisa partir de dentro. É possível esperar que isso aconteça, de forma realista?
Tenho consciência das dificuldades, mas acredito que sim. Cito o exemplo da reforma tributária, que muitos imaginavam que era impossível de fazer. Como conseguimos? Uma das lições é que partiu primeiro da sociedade. A discussão se iniciou entre acadêmicos, economistas, tributaristas, contadores, que começaram a preparar uma minuta de projeto, e só depois de madura, foi apresentada ao Congresso. Além disso, houve um grande trabalho de conscientização da sociedade. Acho que a reforma administrativa pode seguir o mesmo caminho.
Acho que há um entendimento na sociedade de que precisamos de um serviço público que entregue mais e que coíba essas distorções salariais.
A reforma tributária foi aprovada, mas a pressão de categorias por tratamento diferenciado comprometeu o resultado final. E há muita dificuldade em, por exemplo, rever subsídios a setores econômicos.
Essa estrutura de privilégios também é muito forte no setor privado. Temos grupos que se beneficiam de isenções, regulações, proteções contra concorrência estrangeira, reservas de mercado, créditos subsidiados. O caso da reforma tributária espelha muito isso. Todo mundo quer um sistema tributário simples e eficiente e uma carga baixa, mas usam do lobby e de conexões políticas para criar exceções.
As emendas parlamentares vêm ocupando parcelas cada vez maiores do orçamento federal. Isso é problemático ou não?
Além da falta de transparência e de critérios para aplicação dos recursos públicos, as emendas desequilibram o jogo político. Esses recursos são aplicados, na maior parte dos casos, com fins eleitorais e aumentam muito as chances de os parlamentares serem reeleitos. É algo que privilegia quem está no poder e faz com que tenhamos um sistema eleitoral menos competitivo.
Mas o problema está no volume de recursos ou na natureza das emendas? Um dos argumentos é que os parlamentares estão mais próximos dos eleitores.
Tem uma questão de volume e de transparência, mas esse argumento não faz tanto sentido. Os parlamentares no Brasil não são eleitos por regiões e, sim, por Estados. Podemos ter regiões com vários parlamentares e que, a rigor, receberão muitos recursos, e outras sem nenhum parlamentar e que correm o risco de não receber nada. Além disso, o sistema não traz garantia de que o parlamentar será penalizado caso não aplique os recursos no que a população mais necessita, pois não será votado apenas pela população que recebeu a emenda. Se tivéssemos um sistema distrital, faria mais sentido.