Prioridade dos presidentes da Câmara e do Senado em 2024, a reforma administrativa irá antagonizar o governo e o comando do Congresso após a retomada das atividades legislativas em Brasília, em fevereiro. Pronto para ser votado pelos deputados, o texto enviado pelo então presidente Jair Bolsonaro em 2020 amplia terceirização dos serviços públicos, permite redução salarial e impõe avaliação periódica dos servidores. Para evitar ser atropelado em plenário, o Planalto trabalha numa proposta alternativa.
O governo tem consciência do ímpeto dos parlamentares, sobretudo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O deputado quer encerrar sua passagem pelo comando da Casa com imagem de reformista ao aprovar o último grande pacote estruturante em tramitação, após as mudanças nas regras tributárias, trabalhistas e previdenciárias.
Embora considere o tema urgente, ele salienta que o texto ainda pode ser alterado em plenário e que as mudanças nas carreiras só afetariam servidores que entrarem no serviço público após a sanção das novas regras. Para angariar aderência, Lira e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sustentam a defesa da reforma na necessidade de corte do gasto público.
— Além de uma discussão pura e simplesmente de uma reforma administrativa, em relação aos servidores faremos uma discussão muito ampla sobre gasto público, quais são as nossas prioridades — disse Pacheco na semana passada, no Fórum Econômico Mundial, em Davos.
Apesar da investida da cúpula do Congresso, não há um movimento coordenado do governo para evitar que o tema seja colocado em votação. As bancadas de esquerda já foram derrotadas quando a reforma, estruturada na Proposta de Emenda Constitucional (PEC 32), passou sem dificuldade pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e pela comissão especial, em 2021.
Embora agora esses partidos estejam no poder, ministros com assento no Palácio do Planalto têm alertado o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a necessidade de mobilização. Há consenso de que o discurso de corte de gastos com pessoal tem forte apelo no Congresso e que o governo precisa mostrar disposição em pelo menos modernizar o modelo de gestão em troca de mudanças mais radicais, como a flexibilização da estabilidade funcional.
— Precisamos de um serviço público mais ágil e eficiente. Estabilidade tem de ser só para carreiras típicas de Estado, com poder de polícia — defende o deputado Darci de Matos (PSD-SC), que foi relator da reforma na CCJ.
Para evitar que discursos semelhantes ecoem pelo plenário, ministros têm pressionado a ministra da Gestão, Esther Dweck, a propor alternativas ao texto da Câmara. Embora divirjam do conteúdo da PEC, a Fazenda, a Casa Civil e a Secretaria de Relações Institucionais consideram importante levar a cabo uma reforma que reduza despesas.
Esther ficou de apresentar as medidas em fevereiro e acena com a fixação de metas de produtividade, freio nos supersalários e uma progressão mais lenta nas carreiras. As mudanças são consideradas tímidas pelo núcleo duro do governo, para quem a pasta abriga uma federação de sindicatos com forte influência sobre a bancada petista.
— Temos uma preocupação permanente com essa pauta porque ela enfraquece o serviço público. Precisamos reconstruir o Estado brasileiro e não esvaziá-lo ainda mais. Vamos lutar contra a reforma — diz o deputado Bohn Gass (PT-RS).
Seja quais forem as mudanças, há dois complicadores para a aprovação da reforma em 2024: o quórum qualificado e as eleições municipais. Como o texto mexe na Constituição, são necessários 308 votos a favor na Câmara e 49 no Senado, sempre em dois turnos. O calendário apertado, com a dispersão dos parlamentares no segundo semestre para a campanha eleitoral nos Estados, amplia a dificuldade de mobilização.
Muitos deputados e senadores também temem o desgaste de votar em ano eleitoral a retirada de direitos de categorias com forte poder de persuasão, como os servidores públicos. Para fazer valer uma proposta mais palatável ao Congresso e aos sindicatos, o governo acena com mudanças por projetos de lei, o que torna a aprovação mais fácil por exigir maioria simples em plenário.
— É muito difícil conseguir os 308 votos. O governo tem a máquina, é muito forte, então talvez o resultado seja uma reforma desidratada — admite Darci de Matos.
Veja algumas mudanças em discussão
Proposta do Congresso
- Estabilidade: a estabilidade é garantida após três anos de estágio probatório, mas pode haver demissão por desempenho insuficiente, em análises periódicas. Também pode haver demissão por extinção do cargo.
- Redução de salário: durante crise fiscal, servidores poderão ter redução de 25% na jornada, com igual diminuição nos salários. A duração da redução e a proporção da crise precisam ser definidas em lei complementar.
- Terceirização: permite terceirização dos serviços públicos em praticamente todas as áreas, incluindo saúde e educação, com compartilhamento da estrutura física.
- Contratos temporários: servidores em contrato emergencial passarão por processo seletivo simplificado, à exceção dos casos de extrema urgência. Os contratos terão duração máxima de 10 anos.
Proposta do governo
- Metas de produtividade: o governo quer aumentar a produtividade dos servidores, abrindo mão do controle de jornada por meio do registro do ponto. Em troca, o servidor terá metas de entregas periódicas.
- Concurso unificado: lançado há duas semanas, é o novo modelo de seleção de servidores. Previsto para maio, terá 6.640 vagas para 21 órgãos públicos e permite inscrição para mais de um cargo, desde que no mesmo setor.
- Progressão lenta e salário menor: para reduzir despesas, o governo pretende reduzir a velocidade de avanço nas carreiras públicas, dificultando o alcance do teto, e diminuir o salário de entrada dos recém-nomeados.
- Fim dos supersalários: aprovada em 2021, a regulamentação do teto do funcionalismo está parada no Senado. O governo quer aprovar o texto para acabar com penduricalhos que formam salários de seis dígitos.
Como é o serviço público em outros países
Portugal
Reforma em 2008, extinguiu quase mil carreiras. Houve redução de pessoal, com uma vaga reposta a cada dois servidores que se aposentam. Não há mais promoções automáticas e a progressão de carreira depende de avaliação periódica.
Estados Unidos
Servidores podem ser contratados para diferentes estágios da carreira, inclusive direto para cargo de chefia. Uma tabela unificada, com variação regional, fixa o salário. Concursos são fiscalizados por órgãos independentes e servidor tem estabilidade.
Chile
Seleção para cargos de baixo e médio escalão é por concurso, mas para chefia há recrutamento, com análise de currículo, competências e entrevista. Escolha é por lista tríplice ou quíntupla. Após dois anos, há estabilidade, com avaliação periódica.
França
Há concurso para todos os cargos, sendo as chefias restritas a servidores de carreira. Em 2019, a tradicional Escola Nacional de Administração, berço do serviço público moderno, foi substituída pelo Instituto Nacional do Serviço Público. A reforma que previu contratação temporária e mobilidade entre órgãos.