Com uma longa trajetória acadêmica, Rosani de Fátima Fernandes representa um marco no Ensino Superior gaúcho. Ela é a primeira mulher indígena a lecionar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em seus 90 anos de história, juntamente do professor Bruno Ferreira Kaingang. Nomeados este ano, ambos fazem parte da área de Educação das Relações Étnico-Raciais na Faced.
Desde a década de 1990, ela dedica a vida aos estudos sobre Educação Básica, buscando ampliar a oferta de educação indígena no Brasil e promover o acesso dos povos indígenas a um ensino de qualidade. Pertencente à etnia kaingang, a especialista tem Mestrado em Direitos Humanos e Doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Rosani faz Pós-Doutorado na Clínica de Direitos Humanos da Amazônia, da UFPA.
Seus estudos são focados em currículo intercultural, diversidade étnica e relações étnico-raciais. Natural de Santa Catarina, a pesquisadora morou por 20 anos em Belém, no Pará, e mudou-se para Porto Alegre neste ano para lecionar na Faculdade de Educação da UFRGS.
Qual é o sentimento de ocupar esse lugar de docência na UFRGS e quais são suas expectativas?
O sentimento é de conquista. Estamos muito felizes por ocupar esse espaço, que historicamente não foi pensado para os povos indígenas. É uma conquista coletiva, resultado do esforço do movimento indígena, que buscou ações afirmativas, que tem qualificado os debates e produzido uma intelectualidade fundamentada no chão das comunidades, nas lutas históricas. Por outro lado, é um sentimento de tristeza, justamente por sermos os primeiros nesse espaço, eu e o Bruno. É uma conquista que revela um processo de exclusão. São quase 90 anos de história da universidade, em um território com uma forte presença indígena desde muito antes da constituição do Rio Grande do Sul como Estado. E só agora temos a possibilidade de ocupar duas cadeiras na docência da UFRGS. Estar aqui também abre a possibilidade de estabelecer diálogos a partir de outras matrizes epistemológicas. Esse é um marco importante para nós começarmos a enegrecer e a indianizar as universidades públicas no Brasil. Espero que sejamos os primeiros, mas não os últimos.
O RS é um Estado majoritariamente branco, com 78% de sua população branca e apenas 0,3% indígena, conforme o Censo de 2022. Quais são os obstáculos, ao romper essa barreira em um local com baixa representatividade?
Eu nasci numa aldeia indígena em conflito territorial em Santa Catarina. Depois, vivi por 20 anos no Pará. Talvez o racismo seja mais velado lá, como existe uma presença indígena muito significativa em termos numéricos, enquanto aqui no RS temos somente quatro etnias (kaingang, guarani, charrua e xokleng). No Pará, temos 50 etnias. Mas não significa que exista menos racismo na Amazônia. Temos que entender o papel da educação na desconstrução dessa base estrutural racista. Eu brinco que nós não estamos mais em 1.500, mas as pessoas insistem em nos ver como em 1.500. E se espantam ao ver que nós não correspondemos àquela imagem estereotipada, descontextualizada. Hoje, mais de 60% dos indígenas vivem em contextos urbanos. Isso não significa que nós achamos que a cidade seja melhor. Significa que as cidades chegaram às comunidades. Estar na cidade e dominar os códigos de outras sociedades, especialmente a ocidental não indígena, é uma questão de sobrevivência. A gente conta nos dedos o número de docentes indígenas nas universidades brasileiras. Isso demonstra que o acesso à pós-graduação é ainda muito restrito. Nem 1% dos pós-graduandos nas universidades públicas são indígenas, e menos de 3% são negros. E é um espaço que privilegia pessoas brancas. Temos que repensar as linhas de pesquisa e as ações afirmativas na pós-graduação. Transformar a universidade em um espaço menos excludente e mais plural é um desafio de todas e todos nós, para que sejamos mais vozes destoando dessa tradição universitária eurocêntrica.
E quais serão os desafios dentro da universidade, nesse espaço de disputa de poder?
O que vai prevalecer agora é essa ideia do ineditismo, do exotismo. Pessoas que talvez estejam mais curiosas do que querendo aprender conosco. Ou quem sabe questionando a nossa própria identidade, pelo fato de falarmos português, de não reproduzirmos estereótipos, de não virmos “fantasiados de índio” para dar aula. Assim como em toda mudança de cultura, haverá um certo estranhamento. Mas o nosso maior desafio é promover um espaço de diálogo intercultural respeitoso. Ou seja, incluir as epistemologias indígenas não só nos currículos, mas produzir rupturas na estrutura ocidentalizada da universidade. Fazer com que mais docentes compreendam que é importante ler filósofos indígenas e as obras que intelectuais indígenas produzem. Questionar por que priorizamos os filósofos gregos e a ciência europeia, quando tínhamos na África tecnologias sofisticadas, e ainda temos. Mais do que romper o espaço físico, da representatividade, temos que romper o casulo das epistemologias eurocentradas. Os colegas docentes, os alunos e a própria gestão da universidade precisam entender que a presença indígena é necessária e que precisa ser ampliada, assim como a presença de pessoas negras na instituição. A universidade, assim como outros espaços de poder, é um espaço de disputa. Por isso, em nenhum momento eu romantizo essa conquista. Eu, como mulher, sou atravessada por uma série de preconceitos. Como indígena também, de outras formas. Essas identidades que se interseccionam, e a própria presença do nosso corpo nesse espaço provoca tensões, resistências e ataques também. Mas eu tenho uma boa expectativa, justamente por trabalhar com a formação de educadores. Eu não vejo outro caminho, estou onde eu queria estar.
E para os alunos indígenas, quais são as barreiras que ainda dificultam o acesso e permanência no Ensino Superior?
Enquanto outras universidades ofertam vagas para pessoas indígenas em todos os cursos, a UFRGS tem uma política tímida. Precisamos ampliar as políticas afirmativas de acesso em todas as instituições de ensino. E essas políticas precisam abranger não só pessoas indígenas, mas também quilombolas. O RS tem um número significativo de quilombos. Também tem a dimensão estrutural, de permanência. Temos que pensar onde essas pessoas vão morar, como vão comprar materiais acadêmicos, que estrutura psicoafetiva terão, como serão acolhidas em termos de saúde mental. Os números mostram que muitos dos estudantes indígenas desistem porque estão adoecendo no espaço universitário. O afastamento da comunidade, da família, e a quebra de cotidiano são rupturas complexas. Tem que haver acolhimento e acompanhamento pedagógico, e tudo isso requer recursos.
Como você enxerga a proposta de criação de uma universidade indígena no Brasil?
Essa é uma demanda de longa data do movimento indígena, e pela primeira vez essa proposta é levada a sério. Cada povo indígena é um universo de conhecimento. Seria uma oportunidade de romper muitas barreiras na produção intelectual e nas práticas de formação de professores, com a criação de um espaço de referência. Temos experiências importantes na Colômbia e na Bolívia, por exemplo, com uma produção científica ameríndia expressiva. As duas coisas são importantes: ocupar espaço nas universidades públicas brasileiras, e provocar mudanças a partir da nossa presença, mas também criar um espaço específico indígena. Esse local seria um espaço de valorização dos nossos conhecimentos tradicionais e de diálogo intercultural. Mas, para isso, precisamos de investimentos e de pessoas indígenas compondo esses quadros.
Que lacunas nós temos na oferta da educação escolar indígena no RS?
Os dados do censo escolar dos últimos 10 anos mostram que a gente tem ampliado o número de escolas indígenas no país, mas a formação dos professores não tem acompanhado esse ritmo. Outro gargalo é a estrutura. No Brasil todo, e no RS não é diferente, temos muitos espaços improvisados ainda funcionando como escola nas comunidades, o que demonstra descaso do poder público. Muitas comunidades fazem educação escolar nas suas aldeias ou nas suas retomadas, ou nos contextos urbanos, por força e vontade da própria comunidade. É aula na casa do professor, no espaço da comunidade, numa casa improvisada. Precisamos avançar em políticas públicas que atendam a esse descaso histórico. Nos últimos anos, a situação se agravou, porque os recursos não têm chegado às comunidades. Precisamos garantir, por exemplo, que seja respeitada nos currículos a diversidade linguística, que as línguas indígenas sejam ensinadas como componentes curriculares. E existe uma lacuna no RS que é a segunda etapa da educação básica, os anos finais do Ensino Fundamental e o Ensino Médio. A maioria dos estudantes indígenas vão até o 5º ano, o número reduz muito depois disso. Uma porcentagem muito pequena dos estudantes indígenas estão no Ensino Médio, essa etapa não é ofertada nas comunidades. Assim, os estudantes são obrigados a saírem das suas comunidades de origem para frequentar a escola em contextos urbanos. Muitos professores não têm o letramento étnico-racial necessário para compreender a diversidade linguística e cultural desses povos. Essa dificuldade de adaptação gera evasão escolar, gera uma ruptura com a continuidade dos estudos. E vai afunilando, isso dificulta o acesso à etapa do Ensino Superior.
Quais são as possíveis soluções para esses problemas? Que políticas públicas devemos criar?
Assim como temos o Sistema de Saúde Indígena, precisamos ter um Sistema Nacional de Educação Escolar Indígena, para que os sistemas locais comportem essa diversidade. Agora, a principal política que está sendo pensada são os territórios etnoeducacionais, mas precisamos avançar. Eu participo de uma consultoria do Ministério da Educação para a formação dos territórios etnoeducacionais, em que analisamos esses dados e ouvimos as comunidades em todo o país. Essa política foi aprovada na 1ª Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, em 2009, e começou a ser implementada, mas passou por momentos de ruptura. Essa é uma forma de gestão que extrapola os limites territoriais, municipais ou estaduais. A educação passa a ser gerida por meio de territórios, que têm uma comissão gestora envolvendo entidades, as secretarias de educação, o MEC e a própria Funai. Assim como na saúde indígena, em que temos distritos sanitários especiais de saúde, a educação funcionaria da mesma forma. Já temos diversos etnoterritórios no Brasil, mas faltam recursos para ampliar essa política.