Em 10 anos, a taxa de aprovação dos estudantes indígenas no Rio Grande do Sul permaneceu pelo menos 10 pontos percentuais abaixo da média nacional. Em 2019, último ano da pesquisa, a diferença era de quase 19 pontos percentuais, considerando Ensino Médio. Enquanto os indígenas tinham 79,2% de aprovação no Brasil, no mesmo ano, os alunos indígenas do RS tiveram 60,3% de aprovação nessa etapa de ensino. É o que mostram dados do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra).
O levantamento realizado pela reportagem de GZH abrange os anos de 2010 a 2019. Em relação à desigualdade entre estudantes indígenas e brancos, o contraste é ainda maior. No Estado, foi registrada taxa de aprovação de 81% dos alunos brancos em 2019 no Ensino Médio, contra 60,3% dos indígenas no mesmo período – 21 pontos percentuais de diferença.
Em relação à evasão escolar, os dados também são preocupantes. Cerca de 11% dos indígenas abandonaram o Ensino Médio em 2019 no RS, enquanto a taxa do abandono dos alunos brancos foi de 4,8%.
— Os indígenas do Rio Grande do Sul estão muito atrás, no Ensino Médio, em relação aos alunos brancos, e em relação ao cenário nacional. Embora a taxa de aprovação de brancos e indígenas tenha aumentado, a dos brancos aumentou muito mais, é um contraste muito grande. Temos que entender quantos desses estudantes estão, efetivamente, se qualificando a partir da educação básica, onde estão tendo sucesso e onde estão as lacunas — explica Marcelo Tragtenberg, que integra o Conselho Deliberativo do Cedra e é professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
No Brasil, o problema é menos acentuado, mas também há um grande atraso. Cerca de 89,4% dos alunos brancos foram aprovados em 2019 no país (Ensino Médio), enquanto 79,2% dos indígenas tiveram aprovação naquele ano. Quanto ao Ensino Fundamental, as taxas de desempenho dos estudantes no RS são semelhantes à média nacional, ainda que mais baixas. Em 2019, 81,7% dos alunos indígenas no Estado tiveram aprovação nessa etapa de ensino. No país, naquele ano, a taxa de aprovação foi de 84,7%.
Mas a desigualdade étnico-racial também é uma realidade nessa fase da trajetória escolar. A taxa de aprovação dos alunos brancos em 2019 no RS foi de 91% no Ensino Fundamental, e a dos indígenas foi de 81,7%. De acordo com especialistas ouvidos por GZH, o estudo evidencia que, apesar das conquistas dos últimos anos, ainda há um longo caminho a ser percorrido para garantir uma educação escolar indígena de qualidade.
Precarização e falta de estrutura
A negação do direito à educação escolar indígena é um dos principais problemas apontados pela antropóloga e pedagoga Rosani de Fátima Fernandes. A pesquisadora da Faculdade de Educação (Faced) é a primeira professora indígena a lecionar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da etnia Kaingang. Segundo ela, a educação não chega a todas as comunidades e, quando chega, tem lacunas. A professora defende a retomada da política dos territórios etnoeducacionais como alternativa para qualificar o ensino de crianças e jovens.
— Precisamos ter um modelo de educação escolar indígena distribuído em territórios, tomando como base a organização territorial dos povos, que muitas vezes extrapola os limites dos municípios. Os territórios etnoeducacionais começaram a ser implantados em 2009, mas houve uma paralisação dessas políticas a partir de 2016. Isso precisa ser retomado para garantir o acesso das comunidades aos recursos destinados a elas — argumenta Rosani.
Precisamos ter um modelo de educação escolar indígena distribuído em territórios, tomando como base a organização territorial dos povos, que muitas vezes extrapola os limites dos municípios.
ROSANI DE FÁTIMA FERNANDES
Antropóloga e pedagoga
De acordo com o Censo Indígena 2022, o Brasil tem, atualmente, 178,3 mil escolas de educação básica. Cerca de 1,9% ficam localizadas em terras indígenas, e 2% oferecem educação indígena por meio das redes de ensino – ou seja, cerca de 7 mil instituições. A precarização na estrutura das escolas reflete a falta de recursos. Segundo Rosani, outro fator que prejudica o desempenho escolar é a precariedade das escolas. Muitas dessas instituições funcionam como anexos de escolas não indígenas, com unidades mais enxutas. Ou passam anos sem manutenção, no caso daquelas localizadas em território indígena.
É o caso da Escola Estadual Indígena Fág Nhin, que fica em Viamão, inserida em uma aldeia Kaingang homônima, onde vivem cerca de 300 pessoas. Desde 2006, quando foi inaugura, a escola nunca havia passado por reforma, mas após um vendaval em 2017, a instituição teve seu telhado arrancado e ficou sem teto. No ano passado, a comunidade se mobilizou para exigir uma reforma – famílias, lideranças e professores se reuniram na Secretaria da Educação (Seduc) para reivindicar a obra.
Com isso, foi assinado o contrato e realizada a reforma na construção, com investimento de R$ 362,2 mil por meio do Programa Lição de Casa. Desde abril, os 65 alunos de pré-escola e Ensino Fundamental atendidos pela instituição estudam no novo espaço, com telhado refeito, salas de aula, banheiros e rede elétrica reformados. Nos anos anteriores, as atividades foram mantidas em um galpão de madeira na aldeia, que não tinha divisórias para salas de aula, nem banheiros e proteção térmica. O espaço funcionava como centro cultural comunitário.
A nova escola também recebeu três mesas de refeitório, um fogão industrial, armários de ferro para dispensa e para salas de aula, freezer, mesas e cadeiras para o setor administrativo, além de kits de material pedagógico. Com tudo isso, foi possível duplicar a capacidade de alunos. Até o ano passado, eram somente 34 matrículas. Com o novo espaço, foram abertas turmas de pré-escola e Educação de Jovens e Adultos (EJA).
— Passamos por essa luta de dar aula num pavilhão. A nova escola é muito valiosa para as crianças, os pais e as lideranças. Dentro de uma sala de aula as crianças vão aprender muito, elas precisam disso, de uma educação diferenciada, e ter um espaço digno para poder dar aula é essencial. E é um meio de mostrar para os pais e mães que esse espaço não é só da direção, dos professores. É da comunidade e de todas as crianças que vivem aqui — diz o professor Nelson Jotá Bento, do 5º ano.
A escola fica em uma área de 3,7 hectares, na altura da Parada 25 da Lomba do Pinheiro. Para a aluna Rhanna Crespo da Silva, 10 anos, ir à escola é uma das partes mais divertidas do dia.
— Eu acordo, aí pelas 8h venho pra escola. Eu gosto muito de estudar, gosto de estudar as línguas. Depois eu saio da escola, cuido dos meus animais, vou tomar banho e durmo. Eu quero fazer curso de veterinária, gosto muito dos animais — conta a aluna do 5º ano. Já Vitória Cândido, 9 anos, relata que adora estudar Matemática e que sua atividade favorita na escola é correr e jogar bola. A aluna está no 4º ano.
Segundo o diretor, João Maurício Farias, a escola conta com quatro professores indígenas e outros quatro não indígenas. De acordo com ele, todos os docentes Kaingang estão cursando ensino superior, buscando a qualificação do ensino.
Conforme dados de 2023 da Secretaria da Educação do RS (Seduc), há 102 escolas indígenas na rede estadual do RS, em sua maioria kaingang (60 delas) e outras 41 guarani, além de uma unidade do povo xokleng. No total, 6,4 mil estudantes frequentam as instituições, que contam com aproximadamente 396 professores. No Estado, a população indígena é de 36,1 mil pessoas, que pertencem a estas três etnias, segundo o Censo Demográfico 2022.
Escola como guardiã dos conhecimentos ancestrais
Segundo o pesquisador Isael da Silva Pinheiro, que foi o primeiro doutor Guarani da Faculdade de Educação da UFRGS, outra preocupação é com os currículos. Ele explica que, para ter qualidade, a educação indígena precisa estar alinhada à cultura e aos valores dos povos, respeitando conhecimentos ancestrais dessas comunidades e suas línguas maternas.
— A maioria dos professores não indígenas que atuam nas escolas foram capacitados para transmitir o conhecimento ocidental tradicional, com metodologias que não têm sintonia com a cultura indígena. Tem a educação do campo, a educação inclusiva, e a educação escolar indígena acaba ficando escanteada, atrai menos pessoas. Cabe aos professores indígenas essa busca. Falta aprofundamento nessa modalidade, que é complexa, mas de suma importância — destaca Isael.
A maioria dos professores não indígenas que atuam nas escolas foram capacitados para transmitir o conhecimento ocidental tradicional, com metodologias que não têm sintonia com a cultura indígena.
ISAEL DA SILVA PINHEIRO
Pesquisador
Ele traz como uma vitória a chegada de dois professores indígenas na Faced (UFRGS), no último mês de abril, que deve contribuir para a qualificação e formação de docentes para atuar na educação básica. Para Isael, é fundamental que haja, nas escolas, processos de aprendizagem e metodologias idealizadas especificamente para esses povos, bem como materiais didáticos que abordem a realidade e as práticas de cada comunidade.
— Essa educação diferencial dentro da aldeia traz toda essa vivência, essa coletividade. Junto da família eles ficam protegidos. Eles aprendem a plantar uma semente, cuidar daquela semente — ressalta a cacica Gãh Té, ou Iracema, no seu nome em português, que foi visitar a aldeia Fág Nhin.
Conforme Katyucha Amaral Fagundes, diretora do Departamento de Modalidades e Atendimento Especializado da Seduc, estão sendo padronizadas as matrizes curriculares de cada povo indígena do território gaúcho, de modo a atender às especificidades e a língua materna de cada etnia. Ao longo de 2023, foram elaboradas matrizes pedagógicas para o Ensino Médio. Foram adotadas duas: uma para o povo Guarani e outra para os Kaingang.
Neste ano, estão sendo trabalhadas novas matrizes para o Ensino Fundamental, contemplando também o povo Xokleng, que não tem escola de Ensino Médio na rede.
— No ano passado criamos duas matrizes distintas para cada povo. Antes, cada escola tinha uma matriz. Essa padronização busca respeitar as línguas maternas, cumprindo a carga horária obrigatória, mas também contemplando as necessidades deles. Na rede, as escolas indígenas têm o calendário diferenciado. Eles podem concluir o ano letivo em um tempo diferente, como tem a questão da caça, das migrações. A padronização também é uma forma de garantir que os estudantes concluam os componentes, mesmo que a comunidade migre para outra região — explica Katyucha.
Conforme o professor Lucas Skolaude, que dá aulas de Educação Física no colégio Fág Nhin e na Escola Estadual Indígena de Ensino Médio Anhetenguá, ao avaliar indicadores de educação, também seria importante levar em consideração as práticas e métodos de transmissão de conhecimento indígena.
— Temos dois aspectos. Tem o processo histórico de descaso do poder público com os povos indígenas, mas também temos que entender que esses índices que avaliam a educação são do mundo branco, do mundo ocidental. Aqui nós temos outra realidade, outra relação com a natureza e com o mundo. O povo Kaingang tem uma outra relação com a escola, diferente desses padrões aos quais estamos acostumados — afirma.
*Colaborou Beatriz Coan