Quando o caingangue Bruno Ferreira ingressou em uma escola mista, composta por estudantes indígenas e não indígenas, nenhum professor falava sua língua. Para aprender português, aos oito anos, o morador do território Guarita, no noroeste do Rio Grande do Sul, diz ter sofrido. Na alfabetização, passou três anos na primeira série.
— Foram muitos castigos para aprender o idioma português — resume o historiador, mestre, e, a partir desta sexta-feira (4) doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Quarenta e seis anos depois da primeira experiência em sala de aula, ele chega ao auge da carreira acadêmica até aqui: às 9h, o aluno de doutorado do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da UFRGS (Faced) defenderá sua tese – a primeira de um indígena na universidade –, um debate sobre o papel da escola nas comunidades de sua etnia.
Em síntese do próprio autor, UN SI AG TU P? KI V?NH KAJRÃNRÃN FÃ (na língua nativa caingangue) aponta que as instituições de ensino voltadas às crianças indígenas seguem um currículo europeu, com pouca ou nenhuma ênfase na cultura e nas crenças de cada território. No Estado, são 55 colégios desse tipo, segundo sua pesquisa, composta por 188 páginas.
— Os livros didáticos, por exemplo, são os mesmos de outra escola. O que diferencia é a presença do professor indígena, que é importante, mas o conteúdo trabalhado continua sendo o conteúdo europeu, com a ideia de tornar todos iguais — aponta.
A banca de defesa, em formato virtual, poderá ser acompanhada pela internet. O grupo contará com quatro avaliadores, todos doutores – dois, também indígenas, formados em outros Estados.
Orientadora da pesquisa, a professora Maria Aparecida Bergamaschi também leciona na Faced e no programa de pós-graduação. A docente classifica a qualificação do indígena, no rol de doutores, como uma conquista coletiva:
— Saber que estamos formando um doutor, que poderá ser um professor universitário, é uma grande honra. E eu tenho aprendido muito com ele. O que sinto é gratidão pelo povo indígena, que confia na gente e ao mesmo tempo traz seus conhecimentos.
Ferreira é formado em História pela Unijuí, curso concluído em 1999. Durante o período de seu mestrado, entre 2012 e 2016, e do doutorado, até 2019, o historiador frequentou aulas presenciais no campus da UFRGS de Porto Alegre. O trajeto, de ônibus desde o norte do Estado, levava em média 10 horas, e era realizado quinzenalmente. A conclusão foi a distância, devido à pandemia de coronavírus.
A maior dificuldade, contudo, nada tem a ver com as viagens ou com a extensa bibliografia. Foi o preconceito – mesmo em um momento em que o número de indígenas passou a crescer na instituição, segundo percepção própria e de sua orientadora.
— O preconceito é disfarçado, não é declarado. A gente sofre com frases do tipo: "Ah, você também está aqui?". Como se a gente não pudesse estar lá, não tivesse condição. Ou "os índios ganham tudo", um desconhecimento de nossas lutas por reconhecimento de direitos — lamenta.
Programa de Ações Afirmativas
Os indígenas têm direito a 10 vagas na graduação da UFRGS todos os anos. Conforme a Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas da UFRGS, o ingresso é feito por um processo específico, e as vagas ofertadas não influenciam nas disputadas pelo concurso vestibular, concorrência que oferece metade das matrículas a cotistas e outra metade a não cotistas. A documentação comprobatória da condição de pessoa indígena exigida, com certificação da etnia, é a mesma em ambas as seleções. Com matrícula ativa, há 69 estudantes no ano letivo vigente.
— Ser indígena no Brasil não é uma coisa fácil. Por 520 anos foi negado nosso direito como ser humano, do acesso a nossa língua, nossas crenças, nossa cultura. Por isso, quero que as escolas ensinem nossa história a todos. Repito, minha conquista é coletiva — defende.
Atualmente com 53 anos, Ferreira leciona três dias por semana no Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, na terra indígena Inhacorá, em São Valério do Sul, no Noroeste. O colégio fica a 170 quilômetros de Iraí, município onde reside. Migrar de sua área de origem teve um motivo específico – e importante, pela alegria demonstrada na entrevista: se apaixonou e casou com uma não indígena, que se tornou caingangue a partir da união.
— Estou muito feliz. Agora quero descansar um pouco dos estudos. E talvez em 2022, quem sabe, um pós-doutorado. Quero ser o primeiro professor indígena da UFRGS. Nós cobramos mudanças e precisamos fazer parte da mudança — vislumbra.