Criado em 1966, para dar garantias aos funcionários demitidos sem justa causa, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) passou por flexibilizações durante mais de cinco décadas. É o caso, por exemplo, da permissão de acesso ao dinheiro em razão de doenças graves, aposentadorias e desastres naturais.
A partir de 2017, a comporta para a rescisão de contratos empregatícios por comum acordo entre as partes foi aberta. Em 2019 e 2020, vieram os saques- aniversário e emergencial, o último motivado por tentativa de complementar a renda familiar durante a pandemia.
Entre os reflexos, até 2021, as liberações de recursos do fundo para o financiamento de projetos habitacionais e de infraestrutura diminuíram em 10,5% no país (de R$ 57,1 bilhões para R$ 51,1 bilhões) e em 25% no Rio Grande do Sul (de R$ 3,9 bilhões para R$ 2,9 bilhões). Esses valores são autorizados no orçamento anual do fundo, pelo Conselho Curador do FGTS, e constituem a principal fonte para subsidiar programas de moradia para a baixa renda.
— O saque-aniversário é um veneno. Abriu a torneira e faz com que as pessoas o utilizem como se fosse um 14º salário, quando a ideia é que se fizesse uma poupança para certas situações, sobretudo para as demissões. E isso ocorre no momento em que o nível de endividamento já passa de 70% no país. Os bancos não têm riscos e argumentam que esse dinheiro movimenta a economia. Na verdade, isso já acontece quando há a distribuição de lucros do FGTS. Não podemos perder essa fonte de capitalização para projetos com muito apelo social, pois em algum momento o fundo pode ficar comprometido — alerta Mário Avelino do Instituto Fundo de Garantia do Trabalhador.
Esses recursos são a principal fonte de financiamento para programas habitacionais no país. Isso inclui, inclusive, alguns subsídios concedidos aos núcleos populacionais de mais baixa renda, hoje inseridos no Programa Bolsa Família.
O presidente do Sindicato da Construção Civil no Estado (Sinduscon-RS), Claudio Teitelbaum é enfático ao dizer que o FGTS foi criado para “preservar o patrimônio” do trabalhador. Afirma que a entidade é contra o saque-aniversário e favorável ao uso na demissão sem justa causa, pois a flexibilização do acesso aos recursos em 12 meses já significa perda de capitalização no segmento habitacional, sobretudo, naqueles de valor geral de venda (VGV) menos elevado, isto é, os imóveis de faixas populares.
— Por menor que seja há, sim, um impacto. Percebemos com preocupação a perda gradual desses recursos, pois a taxa de juros não cairá tão rapidamente e, em curto prazo, não há previsão de estabilidade para esse caixa. Isso sem contar a perda do poder de compra do consumidor, por causa da inflação — argumenta.
Ele lembra que o setor, intensivo em contratação de mão de obra, registra oito trimestres de divulgações de Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) com saldo positivo na criação de novas vagas. De acordo com o portal de transparência do Fundo Garantidor, apenas no Rio Grande do Sul, as contratações de obras via orçamento do FGTS abriram o equivalente a 100,6 mil vagas em 2022. Até maio deste ano, foram 39,4 mil.
Rendimento dos saldos é alvo de críticas do mercado
O problema, afirmou a economista Dirlene Silva, em evento promovido no ano passado para pela Serasa Experian é que, como esses recursos são pagos pelo empregador por meio de contas vinculadas, quando retidos, rendem somente 3% ao ano, mais a Taxa Referencial (TR). Atualmente, comentou ela, remuneram menos do que a caderneta de poupança e outros investimentos conservadores.
Na ocasião, a consultoria de crédito apresentou um estudo que identificava o desejo dos trabalhadores em aproveitar o dinheiro do Fundo de Garantia para outros finalidades. É o caso das viagens ao exterior ou dos tratamentos de saúde.
— Deixá-lo parado não é um bom investimento. Até a metade de 2021, quando a taxa Selic estava baixa, sim, rendia um pouco mais. Hoje estamos falando de um juro mais alto (13,75%), ante 3%, ao ano, do FGTS. As pessoas poderiam muito bem sacar para colocar no Tesouro Selic, que é conservador e renderia mais. Ou seja, trabalhar com a mágica dos juros a seu favor — resumiu a economista.
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) argumenta que tem mantido diálogo com o Ministério do Trabalho em encontros técnicos para apresentar dados de uso do saque-aniversário do FGTS como instrumento de garantia para concessão de crédito consignado. Em nota enviada à GZH, a entidade considera que “o saque-aniversário, além de ser uma importante fonte de renda para milhares de trabalhadores, também oferece a oportunidade de reinserção no consumo para parte destes beneficiários que hoje se encontram com restrições ao crédito. Esse mecanismo, portanto, é uma importante opção para os tomadores de crédito, tem caráter voluntário, é seguro e apresenta taxas mais acessíveis”.
De acordo com o texto, a eventual extinção da modalidade poderia reduzir as opções que parte dos trabalhadores brasileiros tem para acessar recursos no mercado de crédito, o que sujeitaria esse público a taxas de juro mais elevadas. Segundo a entidade, a medida afetaria cerca de 70% dos usuários dessa linha, que estão negativados e não têm acesso a outra fonte de empréstimo.
Mais de 300 propostas para flexibilizar uso de recursos do FGTS tramitam no Congresso
Em razão do baixo rendimento dos recursos e do alto volume de ativos nas contas vinculadas do FGTS – R$ 618 bilhões no fechamento de 2022 – não são poucas as propostas para flexibilizar o acesso dos trabalhadores aos seus saldos. A mais recente é da indústria automotiva que tem, hoje, nada menos do que oito fábricas paralisadas no país e espicha os olhos em direção a eventual medida que libere saques para a compra de carros zero quilômetro.
O que querem, nesse momento, as montadoras nacionais não é novidade. É que, além das 23 hipóteses de saque permitidas pela lei federal 8.036/1990, existiam, em agosto de 2022, 373 projetos de lei em diferentes etapas de tramitação no Congresso: 90, no Senado, 275, na Câmara e oito em ambas as casas.
Há de tudo um pouco e as proposições incluem temas como: permissões para despesas com educação, compra de bicicletas, pagamento de planos de saúde, quitação de dívidas, garantia em aluguel residencial, abertura de empresas, para nascimento e adoção de filhos, pedidos de demissão de empregos, violência doméstica e até para o custeio de casamentos e inseminação artificial.
Sem entrar no mérito, a Caixa considerou, em audiência pública sobre o tema no ano passado, que, caso todas fossem aprovadas, o impacto seria de R$ 5,09 trilhões. A cifra supera em nove vezes o valor total dos ativos do Fundo de Garantia (R$ 618 bilhões).