Refém da maior crise hídrica dos últimos 91 anos, o país corre o risco, mais uma vez, de enfrentar racionamento de energia e apagões elétricos. Mesmo distante dos reservatórios ressequidos das principais hidrelétricas brasileiras, o Rio Grande do Sul não está livre da ameaça, que paira sobre todo o sistema e preocupa analistas e autoridades.
Desde o fim de maio, quando o governo federal emitiu alerta de emergência hidrológica para cinco Estados (Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul), as atenções estão voltadas aos mananciais do Sudeste e do Centro-Oeste. Nessas regiões, situam-se as represas responsáveis por 70% da capacidade de armazenamento d'água para geração de energia no país.
Na última semana, segundo dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), as barragens mantinham, em média, apenas 30,26% do nível previsto, com alguns locais em condições piores — entre eles, o dique da usina de Marimbondo, na divisa de São Paulo e Minas Gerais, onde o volume útil não passava de 8,18%.
Como a estação úmida só começa no final do ano nesses locais, a situação, até lá, tende a se complicar.
— Vamos viver fortes emoções no segundo semestre. Podemos ter déficit de potência, que levaria a cortes de carga, algo como duas ou três horas por dia, e, mais à frente, possível déficit de energia, que é o racionamento em si. Esse risco é menor, mas existe. E tudo isso é reflexo de falta de planejamento. Há 20 anos, o país vive de sobressaltos no setor, com um adicional: desta vez, o governo demorou um pouco mais para reagir — avalia Adriano Pires, fundador e diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), referência na área.
Até o momento, a gestão de Jair Bolsonaro vem repetindo a cartilha adotada na última crise, entre 2014 e 2015, sob o comando de Dilma Rousseff. As ações incluem controle da vazão nas represas, importação de energia do Uruguai e da Argentina e, principalmente, acionamento de todas as termelétricas disponíveis.
Essas usinas independem de condições climáticas para operar, ao contrário das demais opções, que precisam de água, vento ou sol. Apesar disso, as estruturas que queimam combustível (biomassa, resíduos, gás, óleo ou carvão) impõem maiores custos, que acabam recaindo sobre a população.
— O impacto da condição hidrológica desfavorável já está sendo sentido na tarifa e não há dúvidas de que terá reflexo nos reajustes tarifários de 2022 e 2023 — projeta Gustavo Carvalho, gerente de Preços e Estudos de Mercado da Thymos Energia.
O salto nas contas de luz, seis anos atrás, rendeu críticas e desgaste político a Dilma, mas o esquema funcionou. Agora, não há tanta certeza de que as térmicas darão conta da demanda e ainda há a perspectiva de novos problemas em 2022, com prognósticos apontando o retorno do fenômeno La Niña, sinônimo de mais seca.
Nos bastidores, o governo trabalha na elaboração de uma medida provisória que, entre outras ações, deve preparar terreno para o que vem sendo chamado de "programa de racionalização compulsória".
O racionamento está no radar e, caso se confirme, atingirá todo o país, diferentemente do que ocorreu em 2001, quando o Sul ficou de fora. Na ocasião, o governo de Fernando Henrique Cardoso teve de impor redução de 20% no consumo, sob pena de multa, para evitar o colapso. Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina só foram poupados devido a deficiências de conexão entre as redes de transmissão.
— Hoje, o sistema é robusto, totalmente interligado. Se houver restrições, certamente todos faremos parte. A situação realmente preocupa. Estamos no sétimo ano com chuvas abaixo da média e isso vem dificultando a recarga dos reservatórios. O Brasil ainda é muito dependente da água para a produção de energia — diz Eberson Silveira, diretor do Departamento de Energia da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema).
Caso o cenário de escassez não seja revertido, a tão esperada retomada da economia tende a ser prejudicada. Em relatório recente, a corretora XP Investimentos concluiu que o novo regime de chuva “pode ser um limitador ao crescimento potencial do Brasil” e que a situação “é claramente um risco para a inflação”.
No médio e longo prazos, a esperança é de que os obstáculos se transformem em oportunidades. É consenso, entre especialistas, que o país precisa redesenhar suas bases energéticas. Em 2001, cerca de 90% do potencial instalado vinha dos rios e lagos. Hoje, esse percentual é de 60,5% — menor, mas ainda assim alto.
— Qual é o dever de casa? Construir uma matriz mais equilibrada e mais diversificada. Isso é imperativo — resume Pires.
Na avaliação do empresário Edilson Deitos, coordenador do Grupo Temático de Energia e Telecomunicações da Federação das Indústrias do Estado (Fiergs), o Rio Grande do Sul tem tudo para tirar proveito disso.
— A crise certamente vai abrir portas. Temos muitos projetos de geração de energia em andamento. Pode ser a chance para destravá-los — projeta Deitos.
“A situação é mais grave do que em 2001”
Especialista em Planejamento Energético com longa carreira na área — 30 anos de atuação em Furnas, uma das gigantes do setor elétrico brasileiro —, o engenheiro Renato Queiroz alerta para o que considera “risco real” de racionamento e de apagões no país no segundo semestre. Pesquisador do Grupo de Economia da Energia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e consultor do Instituto Ilumina, Queiroz diz que as medidas em andamento podem não ser suficientes para evitar o problema.
Como avalia a atual crise energética? Há risco real de racionamento?
A situação é extremamente preocupante e o risco é muito grande. É bom lembrar que existem diferentes tipos de racionamento. O que mais preocupa é aquele que deixa a sociedade no escuro, quando as famílias não podem consumir energia na hora em que desejam, e essa possibilidade existe no segundo semestre. Mas há um outro tipo, que já está ocorrendo, que envolve a indústria. Nesse caso, desloca-se o horário de produção para reduzir a demanda por energia nos horários de ponta.
Pode haver apagões?
Certamente. Há duas possibilidades de apagões. Uma delas decorre da falta de suprimento, quando há algum imprevisto na operação do sistema. Sempre que operamos no limite, qualquer falha pode gerar um apagão técnico, uma interrupção no fornecimento. A outra possibilidade, nem sempre explicitada, se dá quando a distribuidora começa a fazer cortes seletivos, em um bairro, uma região. Ambas são ruins, e o risco cresce justamente quando temos perspectiva de recuperação da economia.
Que exige mais energia...
Sim, é uma sinuca de bico. Precisamos acelerar a vacinação por questões sanitárias e econômicas. Ao mesmo tempo, isso vai aumentar a demanda por energia e vamos ter de rezar para chover mais nos locais certos, no Sudeste e no Centro-Oeste, para evitar o racionamento. Mas sabemos que, lá, o regime de chuva começa apenas no fim do ano. Ou seja: teremos um problema muito sério entre agosto e novembro. A situação é mais grave do que em 2001.
Por quê?
A abertura do setor elétrico para o modelo de mercado criou muitos agentes, ampliou o número de atores envolvidos, o que dificulta o controle. Além disso, vivemos uma pandemia, um momento de grandes incertezas, de ordem sanitária, política e econômica. Há, ainda, a perspectiva de restrição de suprimento de energia em 2022 (devido à volta do fenômeno La Niña no final de 2021, com chuvas abaixo da média) e um elemento extra de instabilidade no setor: a forma como está sendo conduzida a privatização da Eletrobras, de maneira açodada, totalmente inadequada.
As medidas previstas pelo governo para evitar o racionamento são suficientes?
Não sei. Essa é a minha preocupação. O sistema de reservatórios do Sudeste e do Centro-Oeste corresponde a 70% da capacidade de armazenamento do país e, hoje, não tem mais do que 30%. Não se pode operar com menos de 10%. Temos, então, 20% para consumir até o final do ano, quando retornam as chuvas. Já usamos muitas térmicas para cobrir a demanda, mas será que o menu de térmicas segura isso no segundo semestre? Será preciso consumir menos e ir em cima das indústrias para deixarem de produzir na ponta (no horário de pico). É complicado. E mais: a gente já deve ter pago de R$ 8 bilhões a 9 bilhões pela energia das térmicas. O impacto é na tarifa. Vamos perder de sete a um da Alemanha de novo.
O que precisa acontecer para que crises como essa não voltem a se repetir?
É necessário repensar o setor elétrico como um todo. Não é uma questão de voltar atrás e tornar tudo estatal outra vez, mas é fundamental analisar melhor a operação, discutir políticas públicas com visão de longo prazo. Além disso, precisamos conter o desmatamento da Amazônica, que é uma das razões da falta de chuvas e tem relação direta com os problemas nos reservatórios. Temos de acabar com isso.