Sem as mínimas condições para sobreviver, retirando água de poço sem qualquer tipo de tratamento, dormindo em meio a maquinário, animais e agrotóxicos. Mãe, filho, idoso e trabalhadores em geral com jornadas superiores a 15 horas diárias. Muitas vezes sem pagamento e vítimas não só de acidentes no local onde estavam atuando, mas também de uma situação análoga à escravidão.
Esse foi o quadro encontrado em todo o país no final de janeiro por uma força-tarefa liderada pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério da Economia e em parceria com outros órgãos, como o Ministério Público do Trabalho (MPT).
Do total de 137 pessoas resgatadas, sete estavam no Estado — no Norte e no Vale do Rio Pardo — produzindo carvão, cultivando fumo e extraindo eucaliptos. Depois dessa ação, houve pelo menos mais dois casos registrados no Rio Grande do Sul, com mais 27 pessoas localizadas nessas situações irregulares.
Em Venâncio Aires, no Vale do Rio Pardo, quatro homens foram resgatados da condição irregular que estavam na produção de carvão e na extração de eucalipto em um local onde funcionava uma antiga olaria. Tudo começa pelo aliciamento de pessoas em situação de vulnerabilidade, principalmente na área rural: desempregados com baixa escolaridade. Como os locais são afastados e as vítimas, segundo autoridades, acabam se sujeitando às situações precárias, os empregadores se aproveitam dessa fragilidade para obter cada vez mais lucro, sem garantir os direitos reservados aos trabalhadores pela Constituição.
— Às 6h estávamos ali, virava meio-dia, comia o que tinha e trabalhava até a boca da noite. Não tinha horário para largar. Sem higiene, sem banheiro, era tudo no mato e no brejo. Te vira, eles diziam. E não estava entrando nada, só alimento daqui e dali — diz trabalhador de 49 anos resgatado pela força-tarefa.
A pedido das autoridades, o trabalhador não está sendo identificado. Ele ainda relata outras situações consideras abusivas e degradantes para um ser humano.
— Não tinha como procurar ajuda, e nós estávamos na expectativa de receber um dinheiro, mas não recebia nada, só ilusão. A falta de serviço fez a gente ir para lá, o desemprego. Eu tenho família e achei que era uma oportunidade de serviço. É uma situação drástica que passamos, superamos. Espero que nunca mais me aconteça. É triste, tomara que ninguém passe — ressalta.
Idoso
Na chegada da força-tarefa, o homem de 49 anos também informou que um dos outros três trabalhadores resgatados junto com ele era um idoso. Segundo ele, que não ficou muito tempo trabalhando em Venâncio Aires, o trabalhador mais velho era considerado o mais antigo no local.
— Tinha um senhor com mais de 60 anos e ele ficou muito tempo, muito. Merecia um troféu por aguentar o tempo que aguentou — enfatiza o trabalhador.
Os quatro trabalhavam na carvoaria, dentro de uma antiga olaria, em tempos de atuação diferentes, variando de 15 a 70 dias, e mal receberam por isso, quando havia algum valor. Mas sempre em condições desumanas, como moradia sem energia elétrica, banheiro e água potável. Não tiveram qualquer tipo de treinamento, nem proteção de segurança e para a saúde.
— A gente dormia tudo no chão, atirado que nem bicho, colchão velho. Almoço em fogo de chão, fumaceira, e chovia dentro. O pessoal que nos resgatou viu isso — detalha o trabalhador.
Fontoura Xavier
Em Fontoura Xavier, no norte gaúcho, a força-tarefa regatou três pessoas que atuavam na cultura de fumo, milho e criação de gado. Elas estavam há muito mais tempo em situação análoga ao trabalho escravo. Mãe e filho, de 52 e 19 anos, além de um homem com cerca de 30 anos, não tinham remuneração.
As condições de moradia eram degradantes, sem água potável e banheiro, além de ausência de cuidados nas áreas de saúde e segurança. O MPT diz que mãe e filho têm problemas mentais, sem condições de avaliar a situação que estavam.
Eles dormiam em meio a maquinários e agrotóxicos. A mulher, inclusive, havia se ferido no rosto durante as atividades diárias e o filho havia se intoxicado durante a colheita de folhas verdes de fumo ao absorver, pela pele, a nicotina contida no vegetal. As condições eram tão desumanas que um deles passou mal e teve náuseas durante o resgate.
Em Rio Pardo, onde também a força-tarefa foi verificar local com cultivo de fumo, não foram localizadas vítimas.
Sanções e acolhimento
O procurador Thiago Castro, responsável pelo MPT na força-tarefa composta por cinco instituições no país, diz que os estabelecimentos no Estado foram autuados e colocados em um cadastro de empregadores flagrados utilizando mão de obra em condições análogas à escravidão. Em Venâncio Aires, o alojamento em que as pessoas resgatadas estavam foi interditado e todos os responsáveis tiveram de pagar indenizações.
— Denúncias sobre casos assim podem ser feitas no site do Ministério Público do Trabalho, que tem um canal exclusivo para situações análogas à escravidão, e ainda no Ministério da Economia. E denúncias podem ser feitas também nas unidades do Ministério Público do Trabalho, nas procuradorias regionais e agências regionais, bem como nas gerências de cada Estado — diz Castro.
O procurador, que é de Minas Gerais, atuou no caso de uma empregada daquele Estado que ficou 38 anos sem remuneração na casa de uma família, conforme o programa Fantástico, da TV Globo, no ano passado.
Já a auditora-fiscal do Trabalho Lucilene Pacini, que coordenou os resgates no Rio Grande do Sul, destaca que a situação atípica desta força-tarefa foi justamente o caso da mãe e filho com deficiência mental em Fontoura Xavier. Assim como eles, todos foram abrigados inicialmente e tiveram apoio psicológico, para depois serem reinseridos na sociedade em meio a familiares ou responsáveis, bem como para outro tipo de encaminhamento conforme a necessidade de cada um. Além disso, foram assinados termos de ajuste de conduta (TACs) para equiparar danos morais e individuais, bem como para coibir a reincidência desta prática por parte dos empregadores.
— Estas pessoas estão em situação de vulnerabilidade, têm baixa instrução, sem acesso ao mercado de trabalho e envolvidas em situação de desigualdade social, miséria e pobreza. São migrantes e imigrantes. Ocorrem aliciamentos, principalmente na área rural. Mas tem ainda na área urbana e em capitais. Tem casos de trabalhadores domésticos e na indústria têxtil - ressalta Lucilene.
A fiscalização sobre casos de trabalhos análogos à escravidão continua. Se os empregadores flagrados voltarem a contratar pessoas nessas situações precárias, haverá pagamento de multa, além das indenizações.
Força-tarefa
A força-tarefa que atuou no início deste ano reuniu Polícia Federal (PF), Ministério Público do Trabalho (MPT), Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério da Economia, Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU). Além das 137 pessoas resgatadas entre 18 e 28 de janeiro, em alusão à Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, em todo o ano passado houve 942 resgates. Apesar do número, o procurador Castro destaca que ainda está aquém de outros anos, principalmente devido à pandemia e à limitação de recursos. Em 2019, por exemplo, 1.054 pessoas nessas condições foram resgatadas durante a fiscalização em 267 estabelecimentos.
A PF ainda tem em andamento 393 inquéritos que investigam denúncias de trabalho escravo e 116 inquéritos sobre tráfico de pessoas para exploração laboral. Ainda segundo dados do MPT desde 1995, quando houve o início da política pública sobre a questão de trabalho similiar à escravidão, 55 mil trabalhadores foram resgatados desde então, uma média de pouco mais de 2 mil por ano.
Novos casos
Na última semana de fevereiro, novamente em uma plantação de fumo em Venâncio Aires, duas famílias foram resgatadas em situação análoga ao trabalho escravo. Um casal com quatro filhos e outro com três filhos, todos crianças e adolescentes. Eles eram submetidos a condições degradantes em razão da ausência de renda mínima para a subsistência, da precariedade das moradias e das condições do meio ambiente laboral.
A empresa responsável foi notificada em audiência realizada no dia 25 de fevereiro a pagar mais de R$ 82 mil de verbas rescisórias devido às violações aos direitos humanos. A mesma empresa, por exemplo, já havia assinado TACs junto ao MPT devido a situações denunciadas anteriormente.
No dia 11 de fevereiro, o MPT e a Brigada Militar foram até Bento Gonçalves, na Serra, investigar denúncia de trabalhadores sem condições mínimas em uma plantação de uvas na zona rural. Não houve flagrante, mas foi localizado um alojamento que supostamente poderia estar sendo usado para os trabalhadores. Um local também sem higiene e conforto.
Em março, 18 pessoas submetidas a trabalho análogo à escravidão foram resgatadas de uma propriedade em Campestre da Serra. Elas são moradores de Curitibanos (SC) que foram aliciados para trabalhar na colheita e beneficiamento do alho em municípios da região dos Campos de Cima da Serra. Somente neste ano, incluindo a força-tarefa, 34 pessoas foram resgatadas em situação análoga à escravidão.