Assim como um peixe só descobre que vive na água ao ser retirado dela, os moradores mais antigos do Mato Grande talvez soubessem responder se é boa ou ruim a vida na comunidade, a qual se conhece por Matão, caso um dia a tivessem deixado. Porém, a realidade da maioria dos habitantes da vila mais humilde de Muitos Capões começa e se encerra na região dos Campos de Cima da Serra, nos limites de Vacaria, Monte Alegre dos Campos, Bom Jesus e São José dos Ausentes. É nessa região que estão as fazendas onde cresceram fazendo o mesmo serviço braçal dos antepassados, servindo a patrões bons ou ruins e desfrutando da relativa liberdade dos que têm pouco.
Às margens da BR-285, Matão é a única Comunidade Remanescente de Quilombo (CRQ) na Serra. Recebeu, em 2016, o certificado de autodefinição da Fundação Cultural Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cidadania, que reconhece e chancela grupos quilombolas no Brasil (confira entrevista).
A cinco quilômetros do centro de Muitos Capões, a vila é habitada por cerca de 30 famílias. Seus primeiros moradores foram escravos alforriados, que receberam um lote de terra doado por um fazendeiro após a assinatura da Lei Áurea, em 1888. Os moradores vivos mais antigos descendem daqueles primeiros habitantes. Mais do que as histórias que cresceram ouvindo, a vida que herdaram diz mais sobre sua origem do que qualquer papel registrado em cartório. Compartilham histórias de trabalho desde a infância, aprendendo todo tipo de lida do campo, como a construção de cercas e a doma de animais, ofícios que exerceram enquanto o corpo permitiu.
Com a pele negra marcada por cicatrizes e pernas que não o ajudam mais, por problemas de coluna, Eurides Antônio Ribeiro caminha com o auxílio de muletas. Um corpo de quem pouco descansou ao longo de 81 anos vividos no Matão e nas fazendas dos arredores, onde iniciou a labuta aos 12 anos.
– Quase que me criei como escravo. Porque fiz de tudo. Sei fazer cerca, palanque, lavrar terra, quebrar pedra, tirar ripa de pinheiro. Fui criado no coice da enxada – conta.
Para os trabalhadores que serviram nas fazendas, a felicidade que se podia experimentar dependia de ter um patrão generoso. Eurides é grato:
– A mesma comida que o patrão comia com a família na varanda era a que os empregados comiam na cozinha. Ele levantava da mesa pra ir ver o que estavam servindo pra gente. Era um homem muito bom.
Eurides vive da aposentadoria. Para construir a casa humilde em que mora à beira da estrada, comprou madeira com a indenização que recebeu após um filho morrer atropelado. Sem vislumbrar para os netos um futuro fora do Matão, o preocupa ver o trabalho valer cada vez menos.
– Tu paga lenha, paga luz, paga água, paga comida e acabou. O cigarro custava R$ 1, hoje custa R$ 5. Um quilo de carne custar R$ 18 é um absurdo. Sou do tempo que meu pai saía de casa com alguns trocados e voltava da cidade com quirera, milho, mel, arroz. Hoje, só pegar a condução pra ir até Vacaria custa R$ 30. Eu já tô na presilha do laço, mas e os meus netos? Quando chegar a vez deles de forcejar, vão passar fome – lamenta.
As fazendas também foram a escola de Gumercindo Francisco da Silva, 82. Herdou do pai e do avô o ofício de fazer cercas e também as “tabuinhas”, ripas de madeira que eram usadas para cobrir as casas dos mais ricos antes de existirem as serrarias. Do trabalho no campo, as lembranças mais doloridas são da lida com os animais e da discriminação. Por ter aprendido muito cedo que as pessoas o diferenciavam pela cor, diz não ter orgulho de ser negro:
– Nas fazendas tu não encontra branco trabalhando. Só os morenos. Tem que tratar de cavalo, de porco, de vaca. No inverno saía descalço na geada pra tocar as vacas no campo. Se tinha racismo? Ahh, mas tinha. Era “negro faz isso” pra cá, “negro faz isso” pra lá. Mas o que eu ia fazer? Tinha que ficar quieto e obedecer. Queria ter nascido branco, pra ter sofrido menos.
Os bailes dos morenos
Entre as histórias que se ouve dos moradores do Mato Grande, uma memória compartilhada sobre o preconceito sofrido pela comunidade negra remete a um passado recente. Em algumas localidades da Serra, até meados do século passado, eram comuns os bailes segregados, que ocorriam em salões que só os brancos podiam frequentar. “Vetada a entrada de pessoas inconvenientes à sociedade”, diziam os convites para as festas, o que na prática significava a discriminação racial. Negros, pardos e bugres (indígenas) tinham o seu próprio salão e suas festas eram custeadas pelos brancos, que contratavam gaiteiros para tocar nos bailes dos negros nas mesmas datas em que realizavam os seus.
São marcas de um passado remoto, mas que em Mato Grande durou até meados dos anos 1990, quando um rapaz, negro e com problemas mentais, incendiou o salão reservado à sua raça. Simbolicamente, o fogo consumiu também a separação entre as raças na comunidade, marcando uma convivência mais misturada.
– Se um moreno quisesse entrar no baile, (os brancos) botavam a gente pra fora como se fosse um bicho. Eu tentei ir uma ou duas vezes, mas depois não fui mais – conta Gumercindo da Silva.
Conhecido por ser um dos bons contadores das histórias do Matão, Vicente da Silva Neto, 58, diz que não se curvava à restrição a sua cor.
– Confesso que eu era teimoso. Ia lá e dançava. A gente não tinha muito, mas sempre andava com uns troquinhos no bolso. Se alguém vinha incomodar eu dizia: “me mostra a diferença do teu dinheiro pro meu, que aí eu vou embora” – lembra.
Vicente diz ter crescido ouvindo sobre os horrores da escravidão que o avô contava sobre a vida do pai, bisavô de Vicente, homem conhecido por Gregório 21, pois tinha dois polegares na mão esquerda.
– Aquele sim teve vida de escravo. O que me deixava mais “coisiado” era quando meu avô contava que os escravos apanhavam até cair no chão, que ficavam amarrados sem poder fazer nada. Aquilo tudo era chocante pra mim – conta.
Aos 10 anos Vicente começou a trabalhar para um expedicionário que adquiriu terras na região. Só deixou a propriedade 36 anos depois, mas ainda presta serviços esporádicos para os descendentes do antigo patrão, que diz ter sido um homem muito generoso, que lhe deu até a carteira de motorista. Ao contrário do vizinho Gumercindo, Vicente carrega orgulho da cor da pele e da história sofrida dos seus antepassados:
– A gente nasceu pra ser assim, tem que ser assim até o fim. Tenho orgulho de viver na terra que meu pai e meu avô deixaram pra mim.
As curas do Pai Bilu
À beira de uma estrada vicinal a cerca de dois quilômetros do centro da comunidade do Matão, um casebre de madeira com as janelas e as portas permanentemente fechadas guarda o que restou da “igreja do Pai Bilu”. Dezenas de fotografias, peças de roupa, arranjos de flores e panos bordados deixados por pessoas que tiveram uma graça alcançada pela mais conhecida autoridade religiosa da região. Referência de espiritualidade para os moradores do Mato Grande, Luiz Antônio de Godoy, o Pai Bilu, era uma mistura de pai de santo e curandeiro, de orientação católica e com forte ligação com o espiritismo. Morreu em 2012, aos 65 anos, vítima de um câncer no pâncreas.
No túmulo do religioso ainda são depositadas fitas coloridas daqueles que acreditam em um poder curativo póstumo. Mais do que um homem capaz de alcançar curas para doenças que a medicina não foi capaz, era procurado para tratar da alma.
– A maioria o procurava por aquilo que na época chamavam de assombração, espírito, barulho, ruídos. Tipo de coisa que não tem como explicar. Gente com depressão, com um sentimento estranho que não sabia explicar e nem sabia de onde vinha – conta Odinéia Godoy, 32, filha do pai de santo.
Pai Bilu nunca cobrou por seus atendimentos. Vivia de doações e deixou para os dois filhos e para a viúva uma casa humilde, a 100 metros da sua igreja. Odinéia lembra que os atendimentos ocorriam de quarta a sábado. Era comum receber excursões de cidades como Caxias do Sul e São Marcos. No domingo descansava, na segunda e na terça-feira ia até as casas de família, fazendas e empresas para dar sua bênção.
– O que ele dizia era: “se tenho R$ 20, todos nós temos” – recorda a filha, que está desempregada, assim como o irmão.
A família vive da aposentadoria da mãe. Por sete anos, Odinéia se recusou a entrar no santuário do pai, onde também foi realizado o seu velório. Voltou ao local para levar a reportagem. Além de ter acompanhado diversos de seus serviços, guarda ressentimento do bullying que sofria na escola:
– O pessoal não entendia, achava que ele fazia mal pras pessoas. Por ser menina, eu sofria mais do que os meus irmãos. Tinha o cabelo comprido. Me chamavam de bruxa, diziam pra não chegar perto de mim. Acabei me fechando um pouco.
Contra quebranto, olho gordo e mau-olhado
Terezinha de Jesus Silva da Silva tem 72 anos, todos eles vividos no Mato Grande. Frequentou a escola até o segundo ano.
– Só aprendi o suficiente pra me defender – diz.
A infância foi ajudando o pai na roça e a mãe a lavar roupa num rio próximo. Era adolescente quando começou a trabalhar como faxineira em casas de famílias, ofício que ainda exerce, embora esporadicamente.
Além da simpatia e do sorriso fácil, é conhecida pela comunidade por saber fazer partos e por ser uma benzedeira de reza forte e infalível. Os galhos de arruda que recolhe no terreno são o seu bisturi. Não que Terezinha espalhe o dom da cura física e espiritual. Conta-se no Matão que ela gosta de se manter reservada e só atende conhecidos, quando a procuram para desfazer feitiçaria.
– Já curei muito olho gordo, muita inveja, já tirei muito o sol da cabeça. Me trazem muita criança com bicha, quebranto, queimadura, cobreiro... – conta.
Aposentada, mãe de cinco filhos e avó de nove netos, passa os dias ajudando a cuidar dos bisnetos, que já são 10. Diz que quer ensinar uma de suas netas a benzer, para que a tradição da família siga em frente. Mas explica que, uma vez que tiver ensinado o que sabe, perderá o seu poder.
– É assim que funciona. Se a gente ensina, perde o dom. Só vou passar adiante quando sentir que estou encerrando – diz Terezinha.
Invisibilidade histórica
No livro Presença africana na Serra Gaúcha: subsídios, a historiadora caxiense Loraine Slomp Giron aborda a escravidão, o racismo e o papel dos negros na formação socioeconômica e política da região. Para a pesquisadora, a comunidade tem sua importância ignorada nas narrativas históricas – inclusive as oficiais –, que realçam o papel dos colonos italianos e alemães e ignoram a maciça presença negra no início do povoamento da Serra. Embora não fosse tão expressiva quanto no Sul do Estado, onde os escravos trabalhavam nas charqueadas, a comunidade negra na Serra chegou a representar 40% da população total em censo realizado em 1780 (o percentual diminuiria gradativamente, e de forma mais significativa a partir das migrações brancas na segunda metade do século 19).
“Se a escravidão na região das colônias era proibida, o mesmo não ocorria na região dos campos, em que a base econômica era a mão de obra escrava, a monocultura (pecuária) e o latifúndio”, escreve a historiadora.
Loraine, que publicou a obra em 2009, também reforça que a miscigenação favorece o elo mais forte da corrente e força ao mais fraco abrir mão de traços de sua identidade cultural. Imigrantes forçados, os negros perderam a memória da terra natal e até mesmo sua família de origem, das quais eram separados. Receberam por sobrenome o local de procedência ou da propriedade em que trabalhavam. Mesmo libertos, para serem reconhecidos como pessoas, tiveram de copiar dos brancos também a língua, a religião, a economia e a cultura. Em outras palavras, restou ao negro tornar-se um cidadão branco, de pele negra.
“Colocá-los no mundo”
É para combater a invisibilidade e a exclusão que Mato Grande tem em Juliana Acauan Pinto uma aliada incansável. Técnica de Bem-Estar Social da Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) no município, Juliana ajudou a realizar o levantamento de dados para “colocá-los no mundo”, como diz, os remanescentes de quilombo. E desde então tem sido uma facilitadora para garantir o acesso dos moradores a programas sociais, nas áreas de geração de renda, defesa e garantia de direitos, alimentação saudável e atividades físicas, entre outras.
Um dos focos da Emater é junto à população feminina do distrito, excluída do mercado de trabalho. Enquanto a maioria dos homens jovens trabalha nas colheitas de maçã e de alho e no extrativismo do pinhão, as mulheres ficam em casa cuidando dos filhos. Quando as crianças estão na escolinha, dedicam-se às atividades domésticas, sendo totalmente dependentes do dinheiro que os companheiros recebem. Algumas fazem faxina
– Parte do trabalho é tentar despertar nas mulheres a atitude de querer fazer algo por elas mesmas. São inseguras, têm a autoestima baixa. A maioria, com 17 anos, já tem filho para cuidar. Elas teriam acesso a bolsa de estudos para fazer uma faculdade, mas não têm o ensino médio completo – comenta Juliana.
Entre as ações desenvolvidas nos últimos tempos estão oficinas de produção de sabão em barra e líquido (para consumo e para venda na feira do agricultor), oficinas de ervas medicinais, caminhadas e ginástica. Também foram feitas excursões para levar as mulheres que nunca saíram da região. Fizeram passeios à praia de Cidreira, a uma horta de ervas medicinais em Picada Café e à Expointer, em Esteio. Uma das participantes, Nandara Godoy, 25, conta que os passeios têm ajudado a abrir a cabeça e querer coisas novas:
– É muito bom conhecer pessoas diferentes, ver gente que faz coisas que a gente não conhece. Principalmente para as mulheres, que não têm muita oportunidade de sair daqui.