Por Ely José de Mattos, economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 40 milhões de pessoas foram submetidas à algum processo de escravidão moderna no mundo em 2016 (trabalho forçado, exploração sexual, entre outros). No Brasil, entre 1995 e 2015, quase 50 mil trabalhadores foram libertados de condições análogas à escravidão. E foi em meio às polêmicas quase distópicas dos últimos dias, que o presidente Jair Bolsonaro sinalizou o que pensa sobre este assunto.
Em sua fala, o presidente apontou uma suposta diferenciação entre trabalho escravo e aquele análogo à escravidão. Segundo ele, "a linha divisória entre trabalho escravo e trabalho análogo à escravidão é muito tênue". Bem, trata-se de um equívoco conceitual básico. Tanto nas convenções da OIT como na legislação brasileira, está bem tipificado o crime de submissão de pessoas à condição análoga a de escravo. Ser "escravo" já não tem sentido jurídico desde a Lei Áurea, de 1888, quando se extingue o direito de uma pessoa de ter propriedade sobre outra. Atualmente, é a condição análoga à escravidão que contempla as condições que atacam a dignidade humana no trabalho. Não é uma condição mais leve. Trata-se do próprio conceito moderno de escravidão, um dos maiores atentados à humanidade na sociedade contemporânea.
A preocupação central do presidente é o confisco de propriedade onde seja flagrado trabalho em condições análogas à escravidão, prevista pela Emenda Constitucional 81/2014 – que tramitou por 19 anos! Até agora a emenda não foi regulamentada por lei em função de pressões políticas para que se relativize o conceito de escravidão contemporânea. O governo Temer, em 2017, já havia causado polêmica ao exigir, via portaria do então Ministério do Trabalho, a privação de liberdade do trabalhador para caracterizar esta situação. Se esta ideia for resgatada, o trabalho degradante, hoje uma categoria considerada análoga à escravidão, ficaria de fora do conceito.
Levado a cabo, este pode ser um dos maiores retrocessos civilizatórios do Brasil. O argumento de que essa revisão é necessária para eliminar insegurança jurídica é falacioso. De acordo com organizações do trabalho, o atual conceito não inspira esse tipo de preocupação. Pelo contrário, é a simplificação conceitual que comprometeria a rigidez de fiscalização e punição que esta atrocidade demanda.