Acompanhado de pelo menos sete ministros e mais de uma centena de empresários, o presidente Jair Bolsonaro embarca na segunda-feira para sua mais importante e delicada viagem internacional desde a posse. Serão cinco países em nove dias. Entre os destinos estão nações fundamentais para os negócios brasileiros, como a China, principal parceiro comercial, e três árabes, Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita.
A viagem será um teste para a diplomacia brasileira – e, em especial, para o presidente. A China é o adversário número 1 dos Estados Unidos, com quem o Palácio do Planalto tem prometido alinhamento automático. O gigante asiático, uma ditadura comunista que celebrou em outubro 70 anos, encarna, do ponto de vista ideológico, todo o mal que Bolsonaro criticou durante a eleição. Há um ano, chegou a afirmar:
– A China não está comprando no Brasil. Está comprando o Brasil.
Sete meses antes, como pré-candidato, havia visitado Taiwan, considerada província rebelde por Pequim e até hoje reivindicada como seu território. O governo chinês, por meio da embaixada em Brasília, protestou contra a visita. O dragão asiático é ainda alvo preferido dos petardos lançados pelo escritor Olavo de Carvalho, guru do setor ideológico do governo, entre os quais o chanceler Ernesto Araújo, o assessor internacional Filipe Martins e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
– Houve alguns atritos por parte do então candidato Bolsonaro, e na época em que era deputado federal. Depois que assumiu o cargo e tinha uma estrutura de Estado em volta dele, passou a haver certa cobrança de que se mantivesse esse relacionamento com a China no patamar que lhe é devido – afirma Tulio Cariello, coordenador do Conselho Empresarial Brasil-China.
Principal cliente do país, a China comprou US$ 63,92 bilhões (R$ 259,3 bilhões) em 2018, o equivalente a 26,7% das exportações brasileiras. As aquisições feitas lá representaram 19% de nossas importações totais. O grande interessado nas boas relações é o agronegócio, já que os três produtos mais vendidos para a China são soja (43%), óleos brutos de petróleo (23%) e minério de ferro (17%).
Cada frase ou gesto do presidente estará sob escrutínio dos chineses a partir do dia 26, quando Bolsonaro chegará a Pequim depois da visita ao Japão para a entronização do novo imperador, Naruhito. No Itamaraty, a ordem é pragmatismo: mostrar-se aberto aos anfitriões e aos investimentos bilionários, sem desagradar ao governo Donald Trump.
Cariello destaca o bom momento das relações entre China e Brasil, em boa parte graças ao trabalho de reconstrução de pontes realizado pelo vice-presidente Hamilton Mourão, que esteve em Pequim em maio. Um primeiro fruto dessa reaproximação política foi a reativação da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban). Mourão é visto como fiador, diz Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas que esteve com representantes chineses participantes de conversas com o vice-presidente.
– Mourão basicamente disse a eles: “Não se preocupem com nada que o presidente diz, a gente dá conta dessa relação” – relata.
Também a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, ajudou a polir arestas, apoiando o candidato chinês em substituição ao brasileiro José Graziano da Silva à frente da FAO, a agência da ONU para alimentação. Segundo Stuenkel, a China está preocupada com negócios – e o dragão não irá rugir contra o Brasil, desde que Bolsonaro evite abordar pontos sensíveis, como direitos humanos (Pequim mantém cerco aos independentistas do Tibete), Hong Kong (e a atual revolta por mais autonomia) ou Taiwan (a província rebelde). O próprio governo de Xi Jinping já deu mostras de fidelidade: durante a crise dos incêndios da Amazônia, Pequim se manteve em silêncio.
– Eles deixaram muito claro que não permitiriam que essa questão afetasse a relação. Ou seja, em nenhum momento a China criticaria o Brasil – diz Stuenkel.
O regime chinês espera duas sinalizações importantes: o Brasil se mantenha neutro na guerra comercial com os EUA e as empresas chinesas sejam bem-vindas.
Apesar do tamanho do comércio entre Brasil e China, não está previsto nenhum anúncio relevante. Devem ser assinados protocolos fitossanitários liberando a exportação de farelo de soja e frutas, além da certificação de mais frigoríficos para a venda de carne. Mas pode ganhar fôlego negociação sobre a participação do Brasil na Belt and Road Initiative (Nova Rota da Seda), série de investimentos em transporte e infraestrutura terrestres e marítimas conectando Europa, Oriente Médio, Ásia e África. Inicialmente, a América do Sul, terreno de influência política norte-americana, não estaria no projeto, mas países como o Chile já mostraram interesse.
Xi virá a Brasília, em novembro, para encontro dos Brics, e, depois, seguirá para Santiago para a cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico. A China deve demonstrar ao Brasil o interesse de Xi de anunciar, em Brasília, a integração do Brasil à nova Rota da Seda. Em troca, viria mais investimento. O assunto não agrada a Trump.
– Nessa briga entre EUA e China na América Latina, a vantagem claramente está com a China. A China sabe que não há muito o que os EUA pode dar ao Brasil. Não vai ter acordo comercial, nem se Trump for reeleito. E a China consegue oferecer algo que Bolsonaro precisa: grandes investimentos, comércio crescente – pontua Stuenkel.
Outro assunto que pode aparecer – com capacidade de constranger o governo – é a Huawei, empresa chinesa demonizada por Trump. No próximo ano, o Brasil terá de decidir se vai ou não bloquear a companhia do leilão da 5G. Se bloquear a Huawei, pode haver retaliação chinesa. Se não o fizer, a aproximação com os americanos estará seriamente ameaçada.
Interesse em vender e em atrair fundos bilionários
No caminho de volta do Extremo Oriente, o presidente Jair Bolsonaro pisará em uma das regiões mais delicadas do planeta de olho nos bilhões de dólares das ricas monarquias do Golfo Pérsico, mas também com o objetivo de colocar, ao menos por enquanto, ponto final ao mal-estar criado com os árabes em razão da promessa de transferir a embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém. Para o Palácio do Planalto, a polêmica está encerrada com a decisão de abrir um escritório comercial (com status menor do que uma representação diplomática) na Cidade Sagrada – cuja parte leste é reivindicada pelos palestinos como capital de seu futuro Estado. No auge da crise, os países da Liga Árabe ameaçaram boicotar produtos brasileiros.
A possível mudança de endereço da sede diplomática, acompanhada da visita de Bolsonaro a Israel, em março, era um agrado ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que veio à posse do presidente brasileiro, e, sobretudo, aos evangélicos, que compõem a base de apoio. Nos bastidores, a sensação é de que o governo entendeu, após reclamações de empresários, a importância do comércio com os árabes.
– Essa viagem ajuda muito. Aquilo tudo dos riscos, ruídos que existiam, foram minimizados com a não concretização da mudança da embaixada. A viagem vem para consolidar essa postura de não realização da mudança. Se ainda existe alguma coisa, deve ser muito pequena e deve ser ultrapassada – afirma o presidente da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, Rubens Hannun.
Assim como no diálogo com a China, o vice-presidente Hamilton Mourão teve papel importante na sensibilização de Bolsonaro. Ele recebeu duas vezes representantes da Câmara – no período da transição e, depois, já no cargo.
Entre janeiro e setembro, as exportações brasileiras para a região somaram US$ 9,3 bilhões, valor 13,2% superior ao registrado no período em 2018. Os cinco principais produtos vendidos para a região são carne de frango, açúcar, minério de ferro, carne bovina e milho. Os líderes foram Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Arábia Saudita, Egito, Jordânia e Argélia.
Ainda concentrados nos Estados Unidos e na União Europeia (UE), os fundos soberanos dos três países árabes que serão visitados por Bolsonaro – Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos – procuram oportunidades confiáveis e rentáveis. Somente os dos Emirados Árabes Unidos contam com mais de US$ 1 trilhão. O governo brasileiro quer uma parcela maior dessa quantia no país, que hoje se limita a US$ 5 bilhões. A comitiva deve propagandear projetos em infraestrutura, energias renováveis, saúde, defesa e pré-sal. Apenas do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), 18 projetos de concessões e privatizações estimados em R$ 1,23 bilhão serão sugeridos. A venda do novo KC-390, avião militar da Embraer, também está no cardápio.
– São três países muito fortes, com fundos soberanos importantíssimos. Os Emirados Árabes Unidos já têm acordo de investimentos assinado com o Brasil.
Os outros, não. Os árabes têm muito desejo de investir no Brasil e estão atentos a nossa área de logística para segurança alimentar. Esse pode ser um grande resultado da visita – prevê Hannun.
Um dos pontos polêmicos da visita deve ser os encontros com o príncipe saudita Mohamed bin Salman. Herdeiro do trono, ele é acusado de ter ordenado a morte do jornalista Jamal Khashoggi, após entrada no consulado da Arábia Saudita em Istambul (Turquia), em outubro de 2018. A Arábia Saudita também lidera uma coalizão militar contra rebeldes houthis no Iêmen – com suspeitas de violações aos direitos humanos. Esses aspectos, no entanto, não deverão aparecer na hora de fazer negócios, na visão do pesquisador em Relações Internacionais Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas.
– Bolsonaro precisa desfazer os danos causados por sua política em relação a Israel. E o Brasil precisa de investimentos.
A Arábia Saudita é um comprador importante de produtos brasileiros e agradece essa visita porque também está em uma situação ruim. Por razões diferentes, são dois líderes que enfrentam problemas reputacionais no Ocidente – afirma o professor, lembrando que, no cenário internacional, a imagem do governo ainda está arranhada pela maneira como gerenciou a crise dos incêndios na Amazônia.