A inflação atual está bem longe daquele dragão que queimava o dinheiro dos brasileiros no início dos anos 1990. Qualquer comparação seria, no mínimo, exagerada. Mas isso não significa que a maior parte da população esteja tranquila com a escalada de preços, justamente de componentes que fazem parte do cotidiano das famílias, como alimentação, transporte e energia elétrica.
No acumulado dos últimos 12 meses (até junho), o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) alcançou 8,35%. Já em Porto Alegre, a variação foi maior: 9,07%. A sensação de muitos gaúchos, porém, é de que o aumento nas contas básicas é muito maior do que esses percentuais. E isso não deixa de ser a realidade da maior parte das famílias, já que há uma diferença considerável entre o índice e os produtos que pesam mais no bolso das pessoas. Entender esses aspectos da nossa inflação oficial e como ela funciona são condições básicas do orçamento familiar, lembra Gustavo Inácio Moraes, professor da Escola de Negócios da PUCRS.
Exemplos: em Porto Alegre, a variação do Transporte alcançou 16,4% no acumulado de 12 meses, seguido por Alimentação (13,79%) e Artigos de Residência (13,42%), segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
— Se a energia sobe mais que o IPCA, isso significa que, mesmo que eu consiga reajustar o meu salário pelo índice, estou transferindo mais dinheiro para o consumo de luz e, com isso, ficando mais pobre — explica o economista-chefe do Banco Fator, José Francisco Lima Gonçalves, que atribui a alta da inflação ao aumento de preços das commodities e à volatilidade do câmbio.
Os preços de grãos importantes como soja, milho e trigo, assim como o alumínio, o cobre e o minério de ferro, estão subindo por duas razões: a desvalorização da moeda brasileira, que fechou 2020 com queda de 22,4% ante o dólar, e o aumento de interesse de países ao produto brasileiro. De acordo com Gustavo Moraes, por causa do distanciamento social, muitas indústrias no mundo produziram menos e isso impactou a reposição de insumos. Por outro lado, houve o aumento da demanda.
— Se esse consumidor global está pagando mais pelo produto, nós teríamos que desembolsar mais porque o produtor vai procurá-lo. Há um ano, negociávamos o barril de petróleo a US$ 22, mas agora estamos a US$ 73 — afirma.
O coordenador do Índice de Preços do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), André Braz, concorda que as exportações representam um desafio.
— Na medida em que você exporta muito, sobra pouco para disponibilizar no mercado brasileiro. Se o valor do milho sobe, a carne de ave fica mais cara. Se a indústria comprar o aço mais caro, é normal que a máquina de lavar, a geladeira e o carro vão custar mais — explica.
O economista prevê que a alta é temporária, mas depende do cenário internacional. Enquanto continuar essa demanda dos países ricos, as commodities devem pressionar a inflação. E, diz, a boa notícia é que começamos a ver que os preços estão invertendo a sua trajetória. Ainda estão mais altos do que no mesmo período de 2020, mas há uma tendência de queda. Nesse sentido, completa, existe a chance de os produtos ficarem mais baratos ainda neste semestre.
E o que o governo pode fazer para conter essa escalada? Para André Braz, a luz no fim do túnel são medidas que diminuam o risco político, esclarecendo e punindo casos de corrupção, combatendo o déficit público com corte de gastos e fazendo privatizações em alguns setores. José Francisco, do Fator, acrescenta que é necessário planejamento e uma política semelhante à do presidente dos EUA, Joe Biden, com programa emergencial, de crescimento e olhando para energia renovável, sustentabilidade, tecnologia, qualificação e defesa da indústria e da agricultura.
Pior para quem tem menos
Para grande parte dos brasileiros, a inflação foi mais perversa neste ano. Os preços de energia elétrica, gás, combustíveis, medicamentos e alimentos, principalmente os da cesta básica, atingem em cheio o bolso dos mais pobres. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a inflação de quem tem renda muito baixa (até R$ 900 por mês) foi de 8,91% no acumulado de 12 meses. No mesmo período, a variação da renda alta (maior do que R$ 16 mil) ficou em 6,33%.
Segundo o diretor de estudos macroeconômicos do instituto, José Ronaldo de Castro Souza Jr., existem períodos em que a inflação dos mais ricos é maior, pois depende muito dos itens que estão mais inflacionados. Vale a ponderação, claro, de que essas pessoas detêm melhores condições de enfrentar adversidades.
— A inflação pode prejudicar o mais pobre quando ele não tem condições de se proteger, como na época da inflação muito elevada (início dos anos 1990). As pessoas recebiam o salário e tinham perda durante o mês. As classes com renda mais alta conseguiam colocar em aplicações que protegiam o dinheiro — lembra.
Economista da FGV, André Braz afirma que a cesta básica aumentou mais de dois dígitos nos últimos 12 meses, influenciada pelos preços de feijão, arroz, açúcar e carne, impactando as famílias de baixa renda, que tendem a gastar grande parte do rendimento com esses produtos. Em Porto Alegre, a cesta acumula variação de 25,35% em 12 meses, segundo os dados de junho do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Em contrapartida, os mais ricos tiveram reduções de algumas despesas do dia a dia: desconto em escola particular, as viagens aéreas foram canceladas e os eventos ainda estão com restrições.
— O que precisaria ser feito são investimentos em educação a longo prazo, estimulando pesquisas, incentivando universidades a produzirem mais tecnologia, permitindo que famílias de baixa renda ingressem na faculdade — afirma Braz, ao defender que este cenário só mudará com planejamentos de médio e longo prazo.
Índice por índice
Conheça os indicadores que medem o impacto no seu poder de compra:
- IPCA: considerado pelo governo federal como a inflação oficial do país, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo mede o quanto pagar as nossas despesas fica mais caro ou mais barato. Ele indica, por exemplo, a variação do preço dos alimentos, do transporte e de mais sete itens. É calculado em 10 regiões metropolitanas – incluindo Porto Alegre –, além do Distrito Federal, medindo o custo das famílias de um até 40 salários mínimos.
- INPC: semelhante ao IPCA, mas mede a avaliação do custo de vida das famílias com até cinco salários apenas. Esses grupos são mais sensíveis às variações de preços, pois tendem a gastar todo o seu rendimento em itens básicos, como alimentação, medicamentos e transporte.
- IGP-M: mede o movimento de preços dos setores da indústria da transformação, construção civil, agronegócio e despesa familiar. Nos últimos meses, ele virou o algoz de quem paga aluguel por acumular alta de 35,75%. Economista da FGV, André Braz destaca que o índice não foi desenvolvido para essa finalidade do aluguel. Porém, durante o período de hiperinflação, ele começou a ser usado em muitos contratos.
- INCC: o Índice Nacional da Construção Civil mede a evolução dos custos de construções, influenciado pelos preços de itens como tubos e conexões, ferro e aço, arames, cimento e mão de obra. Responde por 10% do IGP-M.
Inflação boa? Existe?
Economista da FGV, André Braz afirma que a inflação boa é a que está dentro da meta do Banco Central – neste ano, é de 3,75%. Quando está dentro desse padrão, ela mostra um estímulo da demanda por produtos sem privar famílias de suas necessidades.
- Os anos da hiperinflação: embora com potencial de reduzir a renda das famílias, o cenário atual não tem comparação com aquele do início dos anos 1990, quando a remarcação de preços era prática comum. Veja algumas diferenças entre os dois períodos:
- Números: no início dos anos 1990, a inflação chegou a 6.800% em 12 meses. Embora seja considerada alta, a variação atual neste recorte está em 8,35%. Há 30 anos, o índice chegava a aumentar 80% em um único dia.
- Motivos
Para o economista-chefe do banco Fator, José Francisco, a crise hiperinflacionária da época foi intensificada por uma desvalorização da moeda. Com o crescimento dos gastos públicos entre os anos de 1960 e 1970, o agravamento da crise mundial e o aumento de petróleo, o Brasil chegou à década de 1980 com uma grande dívida externa, com uma indústria defasada e sem reserva de dólares. Segundo analistas, hoje o principal motivo para a alta da inflação é o preço das commodities. - Moedas
Um dos grandes êxitos do Plano Real foi acabar com a hiperinflação em 1994. Segundo o professor da Escola de Negócios da PUCRS Gustavo Inácio de Moraes, a nova moeda recuperou a ideia de unidade de conta, ou seja, todos os preços foram expressos com a introdução da Unidade Real de Valor (URV), que funcionou como referência para garantir a estabilidade dos preços durante a transição do Cruzeiro para o Real. Hoje o país não tem problemas com a moeda, como é o caso da Argentina.
* Reportagens de Júlia Pitthan, Pedro Henrique Pereira e Jacson Almeida
A minha inflação é diferente da sua. E a nossa também não é a mesma do índice de preços divulgado todos os meses, que busca refletir o padrão médio de consumo do brasileiro. Quando você reduz o consumo de algo, substitui ele ou pesquisa e compra um produto ou contrata um serviço mais barato, está mexendo na variação de gastos da sua casa. É o que os educadores financeiros querem dizer ao orientar que o consumidor faça sua própria inflação pessoal.
Quando a alta é forte e atinge itens regulados como energia e combustíveis, fica mais difícil, eu entendo. Não é também para aceitar sem reclamar elevações de preços por desajustes na economia. A indignação é válida e necessária. Mas enquanto legitimamente vociferamos que o salário terminará antes do mês, os boletos seguem chegando. Reduzir padrão de vida ou sacrificar horas de descanso por uma renda extra são medidas difíceis. Mas as considere transitórias e necessárias para evitar um mal pior: a inadimplência.
Se falta a governos o planejamento das finanças, ele serve para empresas e lar. Às vezes, vale fazer estoque comprando em maior quantidade para pagar menos pela unidade, mesmo que compartilhe com vizinhos ou o concorrente do setor. Em outros casos, ir aos poucos evita desperdícios em casa ou estoque encalhado na empresa.