Filho da agricultura familiar e um visionário por vocação, Sidnei Bianchi, 43 anos, ainda trabalhava como diarista rural quando já sonhava em um dia ter a sua própria vinícola. Foi graças aos recursos do Plano Safra que o sonho ousado virou realidade: de um vinhedo de 1,5 hectare em uma região improvável à uva, ergueu uma produção que frutificou e hoje está com mais de 40 rótulos no mercado, do vinho ao suco.
A trajetória do produtor se assemelha à de muitos outros no campo. O programa de financiamento equalizado do governo federal, no qual a União arca com a diferença dos juros aplicados no mercado, é o principal meio de crédito do agronegócio brasileiro. No Rio Grande do Sul, sua presença é massiva especialmente na pequena e na média agricultura, com destino principal ao custeio das lavouras e dos rebanhos.
Os primeiros recursos, acessados em 2000 por meio do Banrisul, viabilizaram a implementação do pequeno vinhedo em Vila Maria, no norte do Estado. De lá para cá, já então estruturado o Plano Safra na forma como se conhece hoje, todos os anos o produtor vinha incrementando algo na sua produção, com o objetivo de ter a vinícola. Em 2015, ela saiu do papel. E em 2019, passou a operar.
A dificuldade inicial de crédito era apenas um dos problemas que se juntava ao desafio de implementar a cultura da uva em região não tão tradicional no cultivo na fruta. A produção em Vila Maria, hoje, soma 14 hectares ao todo — 12 de vinhedos e dois de pomares de bergamota — e produz em torno de 200 mil litros de bebidas ao ano, vendidas em todo o país.
— Não tivessem essas linhas de fomento, eu não seria o Casa Bianchi e continuaria sendo o Sidnei que lá atrás só plantava fumo. A partir do momento que comecei a ter acesso a esses recursos que são equalizados, consegui "dar um up" no meu negócio, consegui botar muito alimento no mercado — diz o produtor, que também se formou administrador de empresas, fez cursos ligados ao agro e se tornou sommelier para acompanhar o crescimento da produção.
No Plano Safra vigente, para o qual o governo federal anunciou mais de R$ 400 bilhões em recursos - que vêm das instituições financeiras e contam com aporte da União na equalização e na subvenção de algumas linhas - Bianchi buscou cerca de R$ 400 mil em crédito junto ao Banrisul para custeio e manutenção dos vinhedos, com taxa de juros de 8% - abaixo da taxa Selic, hoje em 13,25%. No ciclo passado, foram R$ 300 mil contratados para o mesmo fim. O produtor ainda possui financiamentos em outras linhas para aquisição de máquinas e equipamentos.
— Produzimos porque o governo banca o custeio. Como eu ia tirar R$ 400 mil do bolso para produzir 300 toneladas de uva? Não consigo me imaginar sem recurso equalizado hoje. E espero um dia não depender mais porque quero crescer e deixar recurso para outros produtores que vêm atrás — diz Bianchi.
Custeio lidera operações
É o preparo da terra que concentra a maior parte dos financiamentos aportados pelos produtores rurais no Rio Grande do Sul. A fatia dedicada a este investimento é considerada natural dentro do processo produtivo, já que precisa ser feita todos os anos, a cada ciclo. Neste ponto, portanto, difere de outros aportes feitos pelos produtores, como a compra de máquinas e implementos, que são de longo prazo.
— Custeio é o dinheiro que o produtor precisa ter para se preparar e fazer a próxima safra. Pode ser para manejo de solo, sementes, defensivos... é estar pronto para a próxima colheita. E é natural que tanto recurso vá para custeio porque outros aportes são mais longos. Como a renovação de frota, que não precisa ser feita toda hora. Custeio é todo ano — lembra o presidente da Central Sicredi Sul Sudeste, Márcio Port.
O Banco do Brasil é o maior operador de recursos para o agronegócio no país e lidera as contratações de Plano Safra. Desde a largada do calendário agrícola 2023/2024, R$ 3 bilhões já haviam sido desembolsados no Estado dos R$ 240 bilhões disponibilizados nacionalmente.
Dos R$ 20,5 bilhões financiados pelo banco no RS na safra 2022/2023, R$ 12,4 bilhões foram destinados às operações de custeio. Já as operações de investimento somaram R$ 3,1 bilhões. Outros R$ 5 bilhões atenderam a operações de comercialização e da chamada cadeia de valor do agro. O total financiado foi 24% superior ao montante do ciclo anterior.
No Banrisul, as operações de custeio também lideram. Em 2021, as concessões de crédito para este fim somaram R$ 2,4 bilhões, ou 63,29% do recurso rural liberado. Em 2022, a parcela era de 77% (R$ 4,8 bilhões). No primeiro trimestre de 2023, as liberações somaram R$ 2,8 bilhões. Dos R$ 11 bilhões reservados para o atual Plano Safra do banco gaúcho, R$ 9 bilhões são destinados para custeio, comercialização e industrialização, enquanto R$ 2 bilhões são reservados para investimentos. Da maior parte do bolo, cerca de 70% vão para preparação da próxima safra.
Nos recursos do Sicredi, 60% dos desembolsos no último Plano Safra foram para custeio. É uma característica que tem se mantido, segundo o banco. Metade deste recurso é destinada para a produção de soja. No custeio pecuário, cerca de 90% vão para a criação de bovinos.
Pequenos e médios contraem maior fatia
Dado do censo agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que mais de 60% das propriedades rurais têm menos de 20 hectares no Rio Grande do Sul. São pequenas propriedades, portanto, que fazem toda diferença no peso do agro gaúcho — e no rateio dos recursos.
Do total desembolsado pelo BB no último ciclo, o grosso dos valores foi tomado pelos agricultores familiares e por médios produtores. Das 94 mil operações contratadas no RS, 78% foram para esses dois grupos. Foram R$ 4,2 bilhões financiados no âmbito do Pronaf e outros R$ 2,7 bilhões desembolsados pelos médios produtores beneficiários do Pronamp.
No caso do Banrisul, o banco gaúcho vem aumentando a carteira do agronegócio a cada ano e neste ciclo lançou o maior Plano Safra de sua história, de R$ 11 bilhões. Dessa cifra, R$ 2 bilhões são para o Pronaf, que é o pequeno produtor, R$ 3,8 bilhões são para os médios que se enquadram no Pronamp, e R$ 5,2 são para os maiores. Mais de 70% das operações são destinadas para Pronaf e Pronamp.
— Atendemos aos três segmentos (pequeno, médio e grande produtor). Mas temos um cuidado especial para atender tanto o Pronaf quanto o Pronamp porque entendemos que, dando o incentivo correto, são como se fossem startups que podem cada vez mais fazer investimentos conscientes e crescer ao longo do tempo — diz o diretor de Crédito do Banrisul, Osvaldo Pires.
Investimento na produtividade e contra a seca
O sistema de irrigação de porte suficiente para reduzir os efeitos da falta de chuva está entre os investimentos recentes financiados por Edevanio Laurindo, de 48 anos. Produtor de arroz há pouco mais de duas décadas no distrito de Águas Claras, em Viamão, ele administra 220 hectares de área com o pai. O sistema de irrigação, diz, "faz toda a diferença na lavoura", já que garante ganho de 70% na produtividade em um cenário de seca.
O produtor estima que cerca de 60% da sua lavoura é financiada com linhas do Pronamp, programa voltado aos médios produtores. No último ano-safra, Laurindo financiou junto ao Sicredi R$ 350 mil para custeio e outros R$ 351 mil para investimento, recurso com o qual focou no sistema de irrigação.
Em 2023/2024, repetiu a dobradinha, financiando outros R$ 300 mil para custeio e mais R$ 250 mil para investimento. A última fatia, inclusive, concretizado com um uma máquina escavadeira nova, que o produtor já pilota pela propriedade com a finalidade de fazer a limpeza dos canais na lavoura.
Nos últimos anos, Laurindo tem apostado também na soja em rotação com o cereal. A oleaginosa vem ampliando espaço na Região Metropolitana, sendo, inclusive, motivo de novos financiamentos. A expansão requer investimentos do produtor, já que o grão exige toda uma cadeia de aportes para responder às exigências da cultivar.
Renato Guido, gerente da agência do Sicredi que concedeu o crédito a Laurindo, diz que há muito investimento acontecendo devido às linhas que estavam travadas sem recursos em programas anteriores. Roberta Nunes, gerente de negócios agro na mesma agência, completa que houve um "boom" na carteira do segmento. Do início das novas contratações até a última segunda-feira (14), o Sicredi já havia liberado R$ 2,4 bilhões em mais de 26 mil operações do Plano Safra atual no RS.
Industrialização ainda é menor
Com a maior parte dos recursos alocadas no custeio das lavouras, a industrialização da produção ainda fica atrás no Estado no que diz respeito ao financiamento equalizado. Conforme o diretor de crédito do Banrisul, Osvaldo Pires, as operações deste tipo ainda ficam concentradas nos grandes produtores, em especial as cooperativas, já que tais aportes exigem maior escala.
No Sicredi, que lidera operações de Pronaf (voltado à agricultura familiar) e de Pronamp no RS, a industrialização "aparece pouquíssimo", sobretudo por não ser uma característica da agricultura familiar. Mesmo as agroindústrias familiares com perfil de expansão conseguem investir dentro das operações tradicionais do Pronaf, pelo porte das suas empresas.
Já as ações voltadas a investimentos são operações que em início de ano agrícola demoram a deslanchar, justamente por serem mais estruturadas e exigirem outro planejamento. Máquinas, implementos, tratores e colheitadeiras estão entre os itens mais financiados pelos produtores dentro do guarda-chuva do investimento. Mas há interesse crescente pelos aportes em energia solar e em irrigação devido às estiagens.
— Energia e água são preocupações importantes e um olhar presente que o produtor tem tido. A irrigação ainda não ocorre no ritmo que precisaria pelas dúvidas em questões legais, mas, ainda assim, tem alta — diz o presidente da Central Sicredi Sul Sudeste, Márcio Port.
Mercado financeiro na mira dos grandes
Apesar de os anúncios de Plano Safra superarem recordes a cada ano — foram R$ 344 bilhões desembolsados em 2022/2023 e R$ 435,82 bilhões lançados em 2023/2024, mesmo as maiores cifras da história do programa já não têm sido suficientes para acompanhar o crescimento do agronegócio brasileiro. Nas duas últimas safras, os recursos equalizados esgotaram ainda no decorrer do ciclo e exigiram remanejo de valores para que algumas linhas seguissem operando.
Quem pode, busca alternativas. Os grandes produtores têm recorrido ao mercado de capitais para financiamentos. Os Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagros), as Cédulas de Produtor Rural (CPRs), as Letras de Crédito Agrícola (LCAs) e os Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs) despontam no segmento privado.
O tema está presente no campo e foi constante nos debates do Congresso Brasileiro do Agronegócio, no início de agosto, no centro financeiro de São Paulo. Vice-presidente de Produtos e Clientes da B3, Juca Andrade destacou que os produtos de captação que passam pela bolsa brasileira estão mostrando a importância do investimento privado como financiador do setor produtivo. Para economistas do setor, o mercado de capitais já é determinante para o financiamento da agricultura nacional.
Segundo a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), os instrumentos ligados ao agro captaram R$ 18 bilhões no primeiro semestre de 2023. Os CRAs responderam pelo segundo maior volume de ofertas no período, em R$ 13,3 bilhões. Os Fiagros também se destacaram na primeira metade do ano, atingindo R$ 4,7 bilhões em emissões e crescimento de 50,4% frente ao mesmo período do ano passado.