Ainda quando criança, Gabriella Di Laccio ouviu ressoar o inconfundível chamado da música. Canoense criada em Sapucaia do Sul, a gaúcha até tentou se desvencilhar do destino ao cursar Arquitetura, mas, no segundo ano de faculdade, percebeu que não conseguiria deixar de lado sua maior paixão: cantar. Quando decidiu perseguir o sonho, nasceu não apenas uma soprano lírica, mas também a artista que integrou uma lista da BBC que enumerava as cem mulheres mais inspiradoras e influentes do mundo em 2018. Hoje, ela é reconhecida internacionalmente como uma das principais vozes na luta pela igualdade na música.
Sua trajetória como artista começou cedo: aos sete anos, cantava no coral da escola e, aos 11, começou a fazer aulas de piano, mesmo sem ter o instrumento em casa. Depois de cursar o Ensino Médio em Canoas, passou no vestibular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas o desejo de viver do canto fez com que Gabriella decidisse tentar uma vaga na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, em Curitiba. Formada, entendeu que era hora de alçar voos mais altos para seguir sua jornada e aprimorar a formação. Encorajada por um maestro britânico, deixou o Brasil rumo a uma pós-graduação no Royal College of Music, em Londres. É na terra da Rainha que a soprano está radicada há duas décadas.
Além da carreira, Gabriella se dedica a projetos que contribuam para dar mais visibilidade às mulheres na música clássica. Mas foi somente em 2014, quando o mundo comemorava os 450 anos do nascimento de William Shakespeare, que a soprano começou a se dar conta da falta de representatividade em sua área. Enquanto pesquisava obras com os textos do autor, ela encontrou ciclos de canções de mulheres que nunca tinha ouvido falar.
Um ano depois, avistou em um sebo A Enciclopédia Internacional de Mulheres Compositoras (1981). A obra reunia mais de cinco mil nomes, mas Gabriella não conhecia nenhuma delas. A negativa veio também de seus colegas, que nunca haviam ouvido falar de nenhuma das tantas artistas. A partir daquele momento, a ficha começou a cair.
— Passei uma vida indo a concertos, mas nunca questionei os programas só com nomes de homens — reflete.
A soprano descobriu que existe, desde os anos 1970, um movimento que busca dar a devida relevância a essas mulheres. Entretanto, por ser feito por acadêmicos, muitas vezes não chegava ao público geral. Inconformada, ela lançou em 2018 o site Donne – Woman in Music, em que compartilha a história e os feitos dessas artistas para que o público pudesse conhecê-las.
— Três meses depois, comecei a receber mensagens de mulheres do mundo inteiro. Compositoras estavam se sentindo meio invisíveis e, de repente, tinha uma lista em que podiam colocar o nome delas — conta.
Ser capaz de fazer o que você ama é um grande privilégio. Cada vez que subo ao palco é um verdadeiro presente
GABRIELLA DI LACCIO
soprano
Depois da avalanche de pedidos, Gabriella decidiu dar um passo à frente. Com a lista das 15 maiores orquestras do mundo da revista Gramophone em mãos, pesquisou quantas músicas de mulheres estavam incluídas em seus repertórios. O resultado surpreendeu: menos de 2%. Publicado pelo jornal britânico The Guardian, um dos periódicos mais respeitados do mundo, o levantamento despertou o interesse internacional pelo projeto Donne.
Hoje, além de gerenciar a plataforma e suas redes sociais, Gabriella também é responsável pelo selo independente Drama Music. Neste mês, assume uma nova empreitada: será curadora de uma ação da rádio britânica Scala para trazer novas vozes femininas aos ouvintes. Mais um passo para tornar as obras de mulheres compositoras acessível ao público.
A seguir, conheça um pouco mais da trajetória de Gabriella:
Como nasceu seu interesse por música?
O desejo de ser artista é algo que vem com a gente. Tem uma frase de Picasso que gosto muito: “Toda criança é um artista. O problema é como manter-se artista depois de crescido”. Minha maior sorte foi ter escutado o meu chamado artístico ainda quando criança e ter me entregado completamente à minha paixão pela música, que é, inegavelmente, uma parte fundamental do quebra-cabeças que me torna uma pessoa completa.
A música clássica não é um rumo profissional óbvio no Brasil. Você teve apoio da família?
Meus pais nunca questionaram minha loucura! (risos) Sempre tive uma paixão muito grande por música em geral, mas a clássica me tocou muito fundo. Meus pais não cortaram as asas daquele sonho um pouco surreal naquele momento. Esse é o maior presente que eles me deram e serei eternamente grata por isso.
Quando começou a trilhar seu caminho na música, você imaginava que poderia chegar ao patamar em que está hoje?
Imaginava o estereótipo do que seria uma carreira de cantora lírica, e tinha aquela ideia glamourosa. Óbvio que é legal, mas há tantas outras partes que nem temos conhecimento. Desde que o projeto começou, comecei a ver que consigo, de uma forma muito pequena, contribuir para coisas tão importantes hoje em dia, que é a diversidade e igualdade.
Como é realizar o sonho de ser cantora?
Me sinto muito abençoada por fazer parte do mundo da música e por toda a alegria que recebo como artista. Ser capaz de fazer o que você ama é um grande privilégio. Cada vez que subo ao palco é um verdadeiro presente. Cada performance é importante para mim, não importa onde eu esteja no mundo. Tento fazer com que cada uma delas conte.
Você teve uma experiência marcante de estudos e carreira no Reino Unido. Como esse período lhe transformou como artista? E a adaptação?
Quando passei no Royal College of Music foi fantástico, mas não tinha bolsa de estudos. Tive que aguardar mais um ano e fazer outra audição para que eles mantivessem minha vaga. Cheguei uma ou duas semanas antes das aulas começarem. Fui direto para um curso de performance e abracei e beijei todos os meus professores no primeiro dia de aula. Eles ficaram: “Nossa, o que é isso?”. Não estava preparada para o choque cultural e isso me abalou por muitos anos como artista. Acabei tendo um complexo de inferioridade depois de ver os colegas, que eram em sua maioria europeus e tiveram uma educação mais completa do que a minha musicalmente.
Você recebia muitas críticas no início da carreira?
As pessoas foram me tolhindo, e deixei porque me sentia menos do que os artistas europeus. Até que chegou o momento em que comecei a buscar a minha própria voz artística e aceitar quem sou. Foi a partir daí que minha carreira começou a mudar, porque comecei a fazer um repertório mais latino-americano. Sou uma artista brasileira, não europeia.
Para você, quais as vantagens de ser uma artista de música clássica nascida no Brasil?Crescemos em um país em que vemos as pessoas batalhando, fazendo de tudo para atingir seu objetivo. Sempre soube que poderia chegar lá, mesmo que alguns momentos fossem mais difíceis. O brasileiro tem muita garra. Muitos dos meus colegas do Royal College não continuaram a carreira.
O que você diria para uma mulher em um setor predominantemente masculino?
Para qualquer mulher, qualquer pessoa que não se enxergue em uma posição, diria: “Busque mulheres (que sejam) modelos para se inspirar”. Aquela imagem tem que estar muito forte contigo. As mulheres da história da música estão tão ligadas comigo que, se penso que não vou conseguir fazer algo, sinto uma força extra. É preciso lembrar que obstáculos fazem parte da caminhada. Ser uma fênix, sempre. Se cair, a gente levanta.
Como ter esses exemplos femininos na música clássica poderia ter impactado você na infância?
Sempre tive coragem, garra, mas nunca tive a certeza de que existiram muitas (artistas mulheres). Ter esse sentimento de representatividade histórica (há mais tempo) teria me dado um pouco mais de segurança, especialmente quando cheguei em Londres. Sabe-se lá onde eu estaria se soubesse disso antes, mas espero correr atrás agora.
A disparidade de gênero na música ainda é uma questão forte. Que soluções práticas podem ajudar a amenizar isso?
Para mim, o único jeito seria tornar obrigatório, em qualquer festival, em qualquer corpo artístico, ter um conselho representativo com mulheres, gays, negros, trans. Que cada voz pudesse falar por si. Agora, nós consumidores também temos que fazer a nossa parte. Qual é o nosso trabalho? Prestar atenção. Temos que começar a questionar. Precisamos nos conscientizar que temos muito preconceito e que, muitas vezes, não nos damos conta. Temos muito a aprender.
Além de cantar, que outras atividades lhe trazem alegria?
Meu marido sempre pergunta isso: “Tem outro hobby que não seja música?” (risos). É difícil. Algumas pessoas falam: “Você não pode levar seu trabalho para casa”. Para nós, artistas, não existe isso. Gosto muito de ir ao teatro. E amo viajar. Conhecer uma cultura nova, um país novo, sou fascinada por isso.
Quais cuidados que você precisa ter com a sua voz no dia a dia?
O que preciso é, principalmente, parar de falar (risos). E beber muita água! Se estou em um ensaio, são três, quatro litros. O que desgasta muito a voz é falar demais. Em lugares como restaurantes, você fica competindo com a música (ao conversar), então, é fatal. Nada de bebida alcoólica, nem de ficar em ambientes com ar-condicionado.