Era para ser uma viagem de descanso, mas foi a porta de entrada para uma nova vida. Ao dar uma caminhada pelas ruas do Rio de Janeiro, a gaúcha Marilice Carrer foi descoberta por um produtor, que lhe colocou em um circuito de desfiles, aparições em comerciais e figuração em programas de TV.
A história da modelo parece a realização de um sonho de adolescente. Mas Marilice não era nenhuma menina quando pisou pela primeira vez em uma passarela – já havia passado dos 50 anos e jamais havia sonhado trabalhar no mundo da dramaturgia ou da publicidade. Na verdade, quando recebeu o cartão de visitas do produtor, ela já não alimentava esperanças em sonho algum.
Em 2010, quando começou a trabalhar como figurante, Marilice atravessava um período de adversidades, que a aproximou de uma depressão. Cerca de dois anos antes, havia sido demitida do cargo de executiva de uma grande empresa, na qual trabalhou por 23 anos. Pouco tempo depois, enfrentou um episódio trágico: a morte do marido, com quem havia completado apenas cinco anos de matrimônio.
— Estávamos ainda em lua de mel — lamenta.
A ex-executiva havia ido passar uma temporada no Rio de Janeiro depois de receber um diagnóstico de doença pulmonar. Para escapar de uma cirurgia, prometeu ao médico que mudaria suas rotinas, que a colocavam em solidão e falta de movimento, e que não passaria mais os invernos no Sul, evitando o contato com o frio e a umidade.
Com 1,85m de altura e postura elegante, Marilice caiu nas graças dos produtores da Rede Globo em sua estadia carioca. Era a figurante número um quando alguma novela precisava de uma personagem com pose de ricaça em cena. Formada em administração de empresas, nunca havia cogitado participar de um programa de TV. No entanto, de uma hora para outra, tornou-se presença constante no Projac – quando o costureiro Jacques Leclair (Alexandre Borges) aparecia em alguma cena de Ti-ti-ti (2010)atendendo uma dama da alta sociedade, geralmente era ela que estava diante das câmeras.
Recomeço sem idade
Mas a mudança na vida de Marilice não é apenas individual. Hoje, aos 61 anos, ela preside o grupo Divas da Alegria, que promove na vida de dezenas de mulheres a mesma renovação que ela vivenciou depois dos 50 anos. O grupo foi formado quando sua fundadora voltou para Porto Alegre, em 2015, após a temporada estendida no Rio.
Além do trabalho como figurante, Marilice desenvolveu uma sólida trajetória em concursos de beleza, acumulando 41 títulos e se tornando referência para sua faixa etária. É com essa experiência que ela motiva mulheres a partir de 60 anos a levantar sua autoestima.
O projeto Divas da Alegria oferece oficinas de aperfeiçoamento de postura e de voz, atitude na passarela, fotogenia, entre outros cursos. Mais do que isso, envolve suas participantes em atividades sociais, arrecadando doações e levando alegria para quem vive momentos de dificuldade.
— Nossa primeira turma de divas tinha muitas mulheres em tratamento do câncer de mama. Desde então, começamos com ações sociais, visitando postos de saúde, cantando, realizando coreografias e conscientizando o público sobre a necessidade de prevenção — explica a fundadora.
Aos 92 anos, Yara Grabin é a participante mais velha – e uma das mais ativas – do grupo. Ao longo do ano passado, devido à pandemia, teve que se acostumar a realizar as atividades propostas por Marilice via internet. E não foram poucas. Houve concurso virtual de beleza, amigo-secreto, gravação de vídeo para TV, entre outros.
— Não sou muito de internet. Mas faço as coisas mais simples. Não tive problema algum em participar — conta Yara.
A senhora nonagenária aposentou-se como costureira, sem jamais ter participado de um desfile ou atividade parecida. Hoje o que ela gosta mesmo é de desfilar no Carnaval. Pelo quarto ano seguido, participou como integrante da escola Imperadores do Samba no Porto Seco.
— É que sou muito disposta, gosto muito de dançar — diz ela.
Nem sempre foi assim. Antes de participar das oficinas e dos desfiles, Yara experimentava um cotidiano bem menos agitado, com poucos compromissos além de caminhadas pelo bairro Floresta, onde mora. Viúva, vive na companhia da neta, filha do seu único filho, já falecido, e do namorado da jovem. As atividades das Divas ajudam a dissipar qualquer tristeza:
— A gente está sempre em movimento, principalmente ajudando outras pessoas. Uma coisa vai puxando a outra, e a gente não para.
Dia de modelo
O mais recente projeto de cunho social das Divas é um calendário com imagens das participantes captadas no Theatro São Pedro. Parte da renda arrecadada com a venda do produto está sendo revertida para projetos sociais de diferentes entidades. Lançado em dezembro, em poucos dias teve arrecadação suficiente para oferecer café da manhã e almoço para mais de cem moradores de rua, relata Marilice.
— O tema do calendário é “um dia de estrela”. Ficou perfeito, porque elas passaram a ser as estrelas do espetáculo. Foram para um teatro onde geralmente somos as espectadoras e se tornaram as estrelas — analisa.
Além de estimular as participantes a fazer parte das atividades das Divas, Marilice também costuma encaminhar e preparar algumas das integrantes para concursos de beleza. É o caso de Ida Camargo, que aos 75 anos é a atual segunda princesa da Corte da Maturidade do Carnaval de Porto Alegre.
— Cada faixa recebida é uma satisfação e um estímulo para continuar — conta ela.
E há até mesmo quem começou a trilhar uma nova carreira profissional a partir do estímulo das Divas. Ilá Casagrande, aos 62 anos, estuda interpretação para TV e cinema em uma escola da Capital. Aposentada como enfermeira, recebeu de Marilice o empurrãozinho que precisava para realizar o sonho antigo de se aproximar das artes e da dramaturgia. Por indicação da fundadora das Divas, já trabalhou como figurante em um longa ainda não lançado e aguarda para gravar uma participação em mais um projeto audiovisual.
— Estou muito satisfeita com esse grupo. É uma reunião de pessoas que se apoiam, que dialogam, que se mantêm focadas em resgatar e reforçar a autoestima de todas. Com elas, vivi muitas experiências e vislumbrei possibilidades que não imaginava antes — afirma Ilá.
A enfermeira aposentada conta que, além do apoio das divas, o suporte da família é fundamental quando o assunto é seguir atrás dos sonhos na maturidade:
— Meu marido e meu filho me apoiam. Fiz uma revolução na minha vida depois da aposentadoria. Tem que ser assim, viver coisas diferentes. Nada nos impede de experimentar tantas coisas gratificantes, que fazem bem para a alma. Há uma vida lá fora que a gente pode viver em qualquer idade.