Quando a advogada Gabriela Souza deparou com múltiplas denúncias de mulheres que acusam de abuso sexual um renomado produtor de cinema, ela não teve dúvidas: estava em frente ao "Me Too brasileiro" em 2020. O movimento original eclodiu nos Estados Unidos há três anos e deu visibilidade há milhares de relatos de violência por meio de uma hashtag nas redes sociais, culminando na condenação do produtor de Hollywood Harvey Weinstein por crimes sexuais em março deste ano – ele foi acusado por mais de 80 mulheres. A semelhança entre os casos impulsionou um grupo de juristas a criar um espaço seguro para as vítimas se sentirem encorajadas a quebrar o silêncio. Batizada de #MeTooBrasil, a plataforma já está ar e funciona como canal de denúncia, lugar de acolhimento e referência para suporte jurídico e psicológico.
– A vítima pode optar apenas por desabafar, porque, muitas vezes, a mulher precisa ser ouvida, ter o que aconteceu validado. Ela pode optar por denunciar, e daí vai ter o apoio jurídico, psicológico e social. A vítima escolhe, não é uma imposição, nosso foco não é o agressor. Queremos o renascimento e o fortalecimento dessa mulher – explica a gaúcha Gabriela, que integra a coordenação jurídica da iniciativa idealizada pela advogada Marina Ganzarolli, de São Paulo.
Para criar a rede de apoio, elas contam com a parceria do Justiceiras, que reúne quase 4 mil voluntárias e já atendeu pelo menos 1.800 vítimas de violência – uma das fundadoras do projeto é a promotora de Justiça de São Paulo Gabriela Manssur, que está à frente do Instituto Justiça de Saia. A proposta é apoiar e orientar as mulheres que buscam auxílio na plataforma e, com pouco mais de duas semanas no ar, os números já chegam a 30 relatos.
O #MeTooBrasil também promete servir como porta-voz para pressionar autoridades e opinião pública em casos que joguem luz sobre a violência contra a mulher. É por isso que o movimento nasce na esteira das denúncias contra o curador de festivais de cinema Gustavo Beck, expostas em uma reportagem do site independente Intercept com depoimentos de pelo menos 16 vítimas – o produtor se manifestou negando as acusações. Nas redes sociais, as juristas também manifestaram recentemente a inconformidade com a decisão sobre o caso Mariana Ferrer, que terminou com a absolvição do empresário paulista André Camargo Aranha após acusação de estupro.
E mais: o braço brasileiro do #MeToo ainda ganha corpo em meio à pandemia, outro fator responsável por lançar para o centro do debate a violência doméstica, lembra a advogada Gabriela Souza:
– Nascemos como movimento em um momento de análise. As pessoas se aquietaram na pandemia e precisaram enfrentar seus monstros. Nos últimos meses, atendi muitos gatilhos de estupro, por exemplo. Mulheres que perceberam o que passavam ou haviam passado e que, de vez em quando, a vida corrida faz a gente não conseguir encarar. Não só estupro marital, mas estupro na infância e abuso.
Direitos sem medo
Foi em 2017 que Gabriela decidiu mudar de rumos e investir no sonho de faculdade: abrir um escritório voltado às causas femininas. Hoje com 34 anos, a porto-alegrense lembra que, ainda estudante, derramou lágrimas quando leu o julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da Lei Maria da Penha.
– Foi uma grande virada de chave, me emociono até hoje. Aquilo mexeu comigo, chorei muito, mexeu em algo que estava escondido – recorda a jurista.
Depois de se formar pela PUCRS e passar anos emendando estágios, trabalho em escritórios e empresas, ela resolveu que precisava encarar de frente aquilo que a incomodava no dia a dia profissional: o número crescente de mulheres sendo desacreditadas. Foi aí que o Gabriela Souza – Advocacia para Mulheres saiu do papel.
– Tenho motivações pessoais, mas, muito mais do que isso, toda mulher tem. Toda mulher carrega a violência. Quando decidi abrir o escritório, nem sabia se existia algo parecido, pesquisei e vi que eram poucos. Em dois meses, estava inaugurando meu espaço – conta a advogada.
E ela ressalta que o atendimento à mulher precisa ser compreendido para além das histórias de abuso:
– Ser mulher é político e, por isso mesmo, olhar para os direitos das mulheres em todas as áreas também é necessário. Somos empresárias, empregadas, consumidoras, sócias, assinamos contratos, pagamos tributos. Precisamos perder o medo de ir atrás dos nossos direitos.
Somos empresárias, empregadas, consumidoras, sócias, assinamos contratos, pagamos tributos. Precisamos perder o medo de ir atrás dos nossos direitos.
GABRIELA SOUZA
ADVOGADA
O desafio do público feminino esbarra em uma estrutura dominada por homens. Sem titubear, Gabriela é enfática: o judiciário é machista.
– É machista assim como todo mundo é. Os princípios patriarcais vêm de um machismo estrutural que atinge a todos nós, assim como o racismo. Precisamos tirar a cortina de fumaça para podermos nos reinventar enquanto sociedade. O judiciário também é responsável por perpetuar violências – destaca a advogada. – A lei da alienação parental, por exemplo, é usada de forma misógina. Existe uma discussão muito forte sobre a revogação, pois a lei atinge só as mulheres e não protege as crianças. Perpetua a ideia da mulher louca, vingativa, que inventa histórias. Isso é entendido como absoluto quando, na verdade, não é.
Desafios da luta
Lidar com a exposição nem sempre é fácil. Além do desgaste emocional de casos que ganham as manchetes, a advogada conta que já foi ameaçada de morte, alvo de duras ofensas e precisou de medida protetiva extensiva. Histórias que geram revolta de parte da opinião pública não são incomuns na vida da jurista.
– Trabalhar com mulheres é sempre ter que lidar com um lado de repercussão negativa. Aprendi a lidar com os riscos da profissão que nunca imaginei que teria, fui inocente demais por não pensar nisso. Por me colocar em uma posição de defender as mulheres, me coloquei em um lugar de risco. Aprendi a ter medo também, e ele ser o responsável para seguir buscando justiça com cautela.
Futuro promissor
Gabriela expõe um olhar esperançoso sobre o que se avizinha quando o assunto são os avanços nos direitos das mulheres, principalmente ao avaliar a geração que entrará na vida adulta nos próximos anos. As adolescentes que nasceram a partir de 2006, quando foi sancionada a Lei Maria da Penha, se formaram cidadãs amparadas pela legislação. E isso vai gerar frutos na luta feminina daqui para frente:
– É fantástico porque elas terão mais facilidade de exercer seu papel na mudança de políticas públicas. Estamos vendo o início de uma geração que está entrando na vida adulta abraçada nesses conceitos.
A última década, segundo Gabriela, foi de avanços significativos ao redor do mundo na busca pela igualdade de gênero, inclusive no Brasil. Hoje, a advogada afirma ser cada vez mais difícil atender uma mulher que busque ajuda jurídica e não faça a menor ideia de seus direitos básicos. O desafio, porém, tem sido romper com o "ciclo adoecedor" da violência:
– Ele faz com que a mulher acredite que está delirando, que é louca, está imaginando coisas. Muitas vezes, ela tem o conhecimento, sabe que existe a lei, mas tem certeza de que não se aplica a ela, fica com a autoestima muito diminuída. É muito frequente mulheres que não percebem a violência sexual dentro do casamento, que pode ser patrimonial também, por exemplo. É errado ser obrigada a dar teu dinheiro para o marido pagar as contas. Precisamos estar atentas.
Precisamos tirar a cortina de fumaça para podermos nos reinventar enquanto sociedade. O judiciário também é responsável por perpetuar violências.
GABRIELA SOUZA
ADVOGADA
E a lista de obstáculos de quem peleia por uma vida mais digna para as mulheres não para por aí. Gabriela diz que os avanços recentes no combate à violência se inscrevem apenas na esfera punitiva, e não na preventiva. É preciso exercitar uma visão mais complexa sobre como educar as crianças para que elas não se tornem vítimas nem agressores. Esse é o único "futuro possível", defende a advogada:
– É um alerta. Precisamos de políticas públicas eficientes. Avançamos como nunca na história nos últimos 10 anos, mas, o que preocupa é que os esforços são sempre direcionados ao agressor. A gente vive uma epidemia de violência doméstica. Não falar disso é apenas dar força para que as mulheres sigam morrendo. Temos que falar exaustivamente, inclusive nas escolas, capacitar profissionais, fazer palestras. Num país tão violento contra as mulheres, precisamos saber proteger.
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