Isabella Nunes, 19 anos, tem mais de 80 vestidos de prenda guardados no armário de seu quarto em Osório, no Litoral Norte. Lara Rossato, 36, prefere as bombachas, confortáveis para o dia a dia na área rural de Dom Pedrito, no extremo sul do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, Shana Müller, 44, varia entre saias e calças pantalonas, mas não abre mão do chapéu.
Pertencentes a gerações distintas e situadas em diferentes cantos do Estado, o que une as três é a adesão à chamada estética gaúcha. O conceito informal engloba tanto a indumentária oficial do Rio Grande do Sul, determinada pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) com base no modo de vestir das antepassadas do Estado, quanto as tendências de vestuário que surgem a partir dela e, sem tanto apego às normativas, misturam-se com a moda do mundo contemporâneo.
Embora as duas vertentes nem sempre convivam muito bem, não há problema em nenhuma delas, conforme aponta a historiadora e designer de moda Edineia Pereira da Silva:
A indumentária, como conceito, precisa representar uma história e uma identidade que remetem ao passado. No Rio Grande do Sul, é somente aquilo que está nas diretrizes do MTG. O que não está alinhado às diretrizes, que servem para preservar a tradição do vestir, não pode ser chamado assim.
A pesquisadora cita alguns exemplos:
— Nós temos os figurinos, roupas usadas por artistas regionais, que remetem a elementos da indumentária, mas não devem ser confundidas com ela. E há a moda gaúcha, que surge inspirada nesses figurinos e se populariza entre as mulheres no geral. Todas essas roupas podem coexistir e contribuem para a preservação da cultura gaúcha, mas não podem ser tratadas como indumentárias.
Ditando moda
A cantora Shana Müller inaugurou o estilo de vestuário que bebe na fonte da indumentária sem a intenção de reproduzi-la fielmente. Principal figurino da artista em meados dos anos 2000, a combinação de saia longa e rodada, faixa com estampa que remete ao povo mapuche marcando a cintura, bata de ombros à mostra e chapéu sobre a cabeça caiu tanto nas graças das mulheres gaúchas que impactou também o mercado.
Lojas de trajes típicos passaram a comercializar peças que caracterizavam o visual de Shana, que chegou a criar, ela própria, uma marca de roupas.
— Sempre entendi que o show é uma estética visual, um explorar criativo, e queria levar algo diferente aos palcos. Só me dei conta da proporção que a coisa tomou quando percebi que as pessoas estavam indo aos meus shows vestidas como eu — pontua ela.
Shana recorda quando percebeu que o seu nome tinha ficado associado também às peças:
— Certa vez, em Passo Fundo, muito antes de criar a minha marca, ouvi no rádio a propaganda de uma loja que dizia: "Aqui você encontra as saias e as faixas Shana Müller" (risos). O meu nome tinha virado sinônimo para essas roupas. Ou seja, um novo mercado se abriu a partir de uma estética que criei enquanto buscava compor um figurino que me identificasse.
Passadas duas décadas da ascensão de Shana Müller na música regionalista, quem vai hoje ao Acampamento Farroupilha ou a algum baile gaúcho ainda encontra reproduções praticamente idênticas das combinações de saia, faixa e bata popularizadas por ela. Enquanto isso, a cantora se manteve alinhada à estética gaúcha, mas operou mudanças em seu estilo.
As saias rodadas deram cada vez mais lugar a modelos com o corte reto, e a calça pantalona também virou opção para os modelitos. Já o chapéu seguiu sobre a cabeça, bem como os chalés, palas e ruanas de estampa mapuche – que passou a ser chamada de "estampa pampa", mas não é permitida pelas diretrizes do MTG.
Defendo que possamos misturar elementos da indumentária com aquilo que gostamos de usar. Muitos gaúchos, por não estarem dentro de um CTG, sentem que essa cultura não pertence a eles, mas ela é de todos nós. O tradicionalismo não é o único jeito de ser gaúcho
SHANA MÜLLER
Voltando às raízes
O ponto de vista é compartilhado pela cantora e influenciadora digital Lara Rossato. Nascida em Dom Pedrito, a artista cresceu usando peças da pilcha campeira, mas deixou o estilo de lado quando se mudou para Porto Alegre e passou a ganhar a vida cantando clássicos do rock em barzinhos da Capital. No período da pandemia, porém, Lara voltou a viver no Interior e decidiu que voltaria às raízes também no campo musical, lançando-se como cantora regionalista.
O retorno impactou, também, o estilo. As bombachas, que faziam parte da infância e adolescência de Lara no campo, voltaram com tudo ao guarda-roupa dela. Hoje, são o carro-chefe.
— Queria que mais mulheres conseguissem se ver vestindo essa peça, que valoriza todos os corpos, é linda e extremamente confortável. Dá para combinar com uma bota, um coturno, até um tênis esportivo. É a nossa bombacha, sabe? É a nossa identidade como gaúchas — enfatiza.
A cantora tem a parceria da stylist gaúcha Carolina Jobb, que presta consultoria a ela diretamente de Londres, onde trabalha com celebridades como as atrizes Priyanka Chopra e Amanda Holden. O objetivo, segundo Lara, é trazer informação de moda para a estética gaúcha, mesclando elementos da indumentária com peças e acessórios que estão em alta.
A artista aposta em sobreposições de cintos e na amarração de lenços embaixo do chapéu, entre outras inovações. Aliás, os lenços gaúchos são terreno fértil para a criatividade, conforme Lara. Ela sugere que o acessório seja usado no pescoço, no cabelo ou até amarrado no cós de uma calça preta básica, trazendo um ponto de cor.
A moda é uma forma de demonstrar o orgulho que temos do nosso Estado. Uso peças da indumentária em qualquer lugar e me sinto realizada quando vejo que as pessoas olham para mim e sabem que sou gaúcha. E por que não fazer isso usando, também, aquilo que é tendência?
LARA ROSSETO
Unir a moda à tradição não é exclusividade das gerações contemporâneas. Conforme a historiadora Edineia Pereira da Silva, "as mulheres gaúchas sempre se vestiram de acordo com a moda de cada período". Contudo, adaptavam as tendências para a própria cultura, que era pautada no conservadorismo.
— Quando a moda começa a encurtar as roupas femininas, as gaúchas não aderem, pois o recato era uma das principais características delas — explica.
A pesquisadora destaca a existência de registros históricos que demonstram que, mesmo no Interior, as mulheres gaúchas estavam atentas às novidades e usavam os materiais que tinham disponíveis para reproduzir tendências.
— Isso conta uma história de mulheres que eram recatadas, sim, mas não eram seres de outro planeta. Pelo contrário: eram criativas, preocupavam-se com a estética visual e queriam estar alinhadas à moda.
De olho na diretriz
Primeira prenda do Rio Grande do Sul, Isabella Nunes defende que é possível aderir às tendências da moda sem desrespeitar as diretrizes que regulamentam a indumentária gaúcha. Para ela, que representa a juventude do Movimento Tradicionalista Gaúcho, o regramento deve ser encarado de forma positiva, pois serve para preservar a memória e a cultura das antepassadas, não para impor padrões.
Isabella também é adepta das bombachas, que são permitidas às mulheres, conforme as diretrizes do MTG, durante eventos de viés campeiro (o Acampamento Farroupilha, por exemplo). Porém, a peça preferida dela é o vestido de prenda.
Confeccionar uma nova peça é um processo que enche a jovem de entusiasmo. Os modelos costumam ser desenhados por ela ou comprados de lojas especializadas em criar croquis para vestidos de prenda. Com o molde escolhido, é preciso definir também tecidos, rendas e fitas a serem usados na confecção, sempre feita pela avó de Isabella, que é costureira.
E mesmo respeitando as diretrizes do Movimento Tradicionalista Gaúcho, que especifica das cores aos tipos de renda permitidos nos vestidos, ela garante que a moda não precisa ser rechaçada.
— Quando o plissado voltou a estar em alta, começamos a ver vestidos de prenda plissados. Agora, tenho feito muitos modelos tingidos em degradê. A gente mergulha parte do tecido na tinta e pendura de cabeça para baixo, para escorrer e formar o degradê. É um processo manual, que está dentro das diretrizes e que dá um resultado lindo — exemplifica a prenda, que defende:
É possível levar tendências à indumentária, até porque as mulheres do passado também faziam isso. A gente só não pode perder de vista aquilo que é tradicional.
ISABELLA NUNES