Se a maternidade é transformadora, para algumas mulheres essa vivência se converte propriamente em arte. Com a ponta do pincel ou da caneta, mães-artistas do Rio Grande do Sul marcam esse momento através de trabalhos criativos e, como efeito colateral, ajudam a si mesmas e a outras famílias.
No ano de 2002, a diretora e professora de teatro Vanja Ca Michel se inspirou no adolescente de 16 anos que via desabrochar dentro de casa – seu filho Roges Michel dos Santos – e concebeu a peça Adolescer, que leva aos palcos os hormônios à flor da pele e as descobertas características do período de transição entre a infância e a vida adulta. Com um elenco de 12 atores, este clássico do teatro gaúcho completou 22 anos de atuação ininterrupta em maio, sempre dialogando com pais e filhos.
"Adolescer" é uma missão maior do que o palco, é uma maternidade gigante
VANJA CA MICHEL
Diretora e professora
— Adolescer é a voz dos adolescentes no palco. Falamos sobre relacionamento, bullying, crise de ansiedade, parentalidade, sexualidade, separação, chegada da madrasta e do padrasto. São mais de 20 anos ouvindo suas questões, e a impressão que tenho é de que estão sempre em carne viva, pois estão aprendendo a lidar com suas emoções e se atrapalham nisso, mas não querem pedir ajuda. Sofrem muito, erram querendo acertar — afirma Vanja.
Ao longo dos anos, virou parte da missão da diretora, que também tem formação em magistério, acolher os adolescentes antes, durante e depois do espetáculo. Um retrato dessa postura é a publicação feita nas redes sociais no início de maio, em que os incentivava a contatá-la durante a severa enchente no Estado: “Vocês não estão sozinhos”, escreveu ela, divulgando seu número de celular “Se precisar conversar, estou aqui para ajudar. Me chama no Whats”.
— O Adolescer é uma missão maior do que o palco, é uma maternidade gigante. Há muito tempo tenho contato com a gurizada e frequentemente eles me pedem ajuda, me ligam de madrugada. Então nesse momento tão difícil, me coloquei à disposição. Alguns fizeram contato e tentei mostrar uma luz mesmo quando seus pais perderam tudo. Muitos estão em desespero, querem ajudar a família e não sabem o que fazer. Outros estão tristes porque perderam seu quarto, seus livros, coisas importantes para eles — relata.
Quando colocou o primeiro roteiro em pé, a diretora natural de Santa Catarina pôde contar com o filho adolescente. Hoje com 38 anos, Roges relembra o tempo em que foi o “informante” da mãe sobre tudo o que estava na moda entre seus colegas: as músicas que ouviam, os games, as gírias e até os tipos de bullying que rolavam então. Essa parceria se refletiu na relação mãe-filho:
Ela queria entender os comportamentos e, naturalmente, acabou sendo menos impositiva e mais aberta a ouvir
ROGES MICHEL DOS SANTOS
Empresário
— Por causa da peça, durante minha adolescência, nossa relação não foi de “Tu tens que fazer isso e não aquilo” e sim um diálogo, como “Por que está fazendo isso?”, “Me explica por que teus amigos estão falando tal coisa?”. Ela queria entender os comportamentos e, naturalmente, acabou sendo menos impositiva e mais aberta a ouvir, o que foi uma sorte para mim — relembra Roges, que é empresário e atua na administração e marketing do espetáculo.
Trabalhar com um tema que está sempre em mutação é um desafio: em poucos meses as trends passam, a tecnologia evolui, os jovens migram de rede social e a adolescência ganha uma nova cara. Isso exige que a peça seja atualizada constantemente, explica Vanja, e a obriga a estar sempre presente onde eles estão, seja presencial ou online, desde as comunidades do Orkut até os perfis do TikTok.
Mas a peça também traz desabafos sobre questões que nunca se extinguem, como a busca por identidade, individualidade e os conflitos com os progenitores, como trata este trecho:
“Quando eu era criança, eles falavam para mim ‘Filha, quando tu crescer, tu pode ser o que tu quiser’. Agora eu sou o que sou, eles não aceitam de jeito nenhum? Até parece que eu sou a vilã da história. Eu não tenho sonho, eu só tenho os sonhos dos meus pais. E, se eu não conseguir ser aquilo que eles querem?”.
Quando mãe e filho se encontram para fazer as fotos e a entrevista desta matéria, no teatro CIEE, em Porto Alegre, Roges não poupa palavras para demonstrar o orgulho que sente da mãe, especialmente pelo trabalho que é feito nos bastidores. Segundo ele, Vanja ultrapassou a função de diretora de teatro e se tornou uma figura de segurança para os jovens:
— O maior desafio do Adolescer é um dia, quem sabe, conseguir mostrar esses momentos que ela passa fora das cortinas, em que auxilia jovens que estão se sentindo perdidos, sem saber lidar com um problema X. Nesses 22 anos, ela se tornou a “mãe” de muitas pessoas, inclusive gente que a encontra ela no supermercado hoje e fala “Graças a Deus que você me ouviu daquela vez”.
Diálogos necessários
A maternidade mesclada à arte e à cultura também fortalece mulheres no enfrentamento de situações difíceis, como a descoberta de um câncer. A jornalista e escritora Fernanda Rosito, natural de Porto Alegre, descobriu um tumor em 2018, ano em que tinha recém trazido ao mundo o bebê Enzo.
— Fui diagnosticada com câncer de mama quando meu filho tinha um ano e oito meses de idade, chupava bico e usava fralda. Naquela época, o chão e o teto se abriram — ressalta.
Enzo era muito pequeno para entender que a mãe ficou sem cabelos, sobrancelhas e que ganhou algumas marcas pela mastectomia total e reconstrução de uma das mamas. Porém, entre 2021 e 2022, quando Fernanda teve o diagnóstico alarmante de recidiva na axila, e depois descobriu metástases na coluna e no fígado, os efeitos que a doença e a segunda rodada de tratamentos tiveram sobre a mãe não passaram despercebidos ao menino crescidinho, por mais que Fernanda nunca tivesse contado a ele sobre o câncer.
— Sempre menti para meu filho achando que estava o protegendo, pois venho de uma geração que não podia falar “câncer”. Por medo de contar o que estava acontecendo, dizia “Filho, a mamãe comeu um negócio que fez mal, está com dor de barriga” ou então “Não posso te buscar hoje porque vou viajar a trabalho”, quando ia fazer a químio. Até que um dia, Enzo disse “A mamãe é preguiçosa, só quer dormir e não quer brincar comigo”. Nesse momento tive o estalo de que estava na hora dele saber sobre o câncer — conta a jornalista.
Quando a doença se espalhou, foi a primeira vez em que Fernanda, de fato, teve medo de morrer, o que contribuiu para uma retomada da fé na religião Espírita. Dentro deste contexto, relata que recebeu uma “mensagem” durante uma madrugada, levantou-se de súbito, foi para a sala de estar e escreveu de uma só vez o livro O Suquinho da Mamãe (Giostri, 2023). Suco é como chama a quimioterapia que lhe permitiu continuar vivendo.
Hoje não minto mais para o meu filho. Evito falar a palavra câncer, mas não deixo de mencioná-la se for necessário
FERNANDA ROSITO
Jornalista e escritora
— Decidi escrever um livro para ser um instrumento para contar que tinha câncer. Enzo já estava com seis anos e ainda não sabia. O livro ajudaria outras mulheres a contarem para os seus filhos sobre a doença, porque o grande medo de uma mãe quando tem o diagnóstico de câncer é faltar com o seu filho, achar que a criança vai ter medo da mãe morrer — descreve Fernanda.
A obra infantil é narrada por um personagem que representa Enzo, contando a jornada de descoberta do menino sobre a doença da mãe. O livro segue uma linguagem pensada para o entendimento das crianças, como nesse excerto:
“Certo dia, minha mãe encontrou uma bolinha embaixo de seu braço. Era uma bolinha bem durinha, parecia um limão. Ela ficou assustada, mas disfarçou bem. Logo me chamou para brincar...”.
— Contei quando publiquei o livro. Hoje não minto mais para o meu filho. Evito falar a palavra câncer, mas não deixo de mencioná-la se for necessário. Mas digo para ele “Filho, hoje a mãe vai lá tomar o suquinho” — explica Fernanda, que está curada, mas segue em tratamento até completar o protocolo de cinco anos.
Traços de família
Imagine uma mãe jovem, deitada em uma rede instalada no seu apartamento e segurando nos braços um bebê que só conseguia descansar nessa posição. A imagem do momento foi um recorte das dificuldades enfrentadas no início da primeira maternidade da artista plástica Mariana Riera, que inspirou um novo período na sua carreira, a do trabalho com retratos.
— Arthur nasceu com refluxo gástrico muito intenso e só dormia no meu colo, então passava longas horas nessa posição com ele. Foi uma fase pesada, de uma maternidade que começou muito atropelada. Engravidei sem planejamento aos 21 anos, tive que parar de amamentar, foi todo um drama, mas, aos poucos, fui reconstruindo o prazer de ser mãe — destaca a artista de 41 anos.
A partir deste primeiro trabalho, a porto-alegrense adotou como marca os grandes retratos de pessoas deitadas, sempre retomando a posição daquele primeiro retrato. Ela mistura técnicas como tinta acrílica, óleo, pastel seco, guache e lápis, e boa parte dos trabalhos tiveram seus filhos como modelos, como, por exemplo, dois que estão expostos na Ocre Galeria, na Capital: Tudo Que Flutua (2016), que retrata o filho mais velho, Arthur Riera de Castro, deitado sobre os azulejos da nova casa da família, na Zona Sul, e a obra Ninho (2020) que traz o caçula, Théo Riera de Castro, deitado em sua cama com estampas de folhas e passarinhos:
Retratar meus filhos ou incluir elementos nossos é uma forma que encontrei de unir essas duas coisas tão difíceis de lidar e também de me ver nessas outras famílias
MARIANA RIERA
Artista plástica
— Comecei fazendo retratos deitados pois é a melhor forma que tinha de observá-los, fotografá-los e de conseguir fazer aquilo funcionar. Segui fazendo essas figuras nessa posição porque achei que tem algo de esquisito, não é comum ao gênero. Há uma vulnerabilidade em pintar pessoas deitadas, que é um pouco como me sentia naquele primeiro retrato, segurando o bebê.
Mesmo quando pinta pessoas que não são da família, a artista procura trazer elementos do cotidiano da sua casa. Na tela que está trabalhando atualmente, o retrato de uma mãe e uma filha sentadas no sofá, incluiu o travesseiro da cama de Théo, alguns livros seus e almofadas de casa.
— Minha vida é muito dividida entre me dedicar ao meu trabalho ou à família, sempre foi uma corda esticada. Retratar meus filhos ou incluir elementos nossos é uma forma que encontrei de unir essas duas coisas tão difíceis de lidar e também de me ver nessas outras famílias, já que no fim das contas, o retrato é sempre a gente falando da gente mesmo, de como olhamos o mundo e as pessoas — conclui.