Amor de mãe pode ser tóxico? Se você acompanha a trama da novela A Vida da Gente (2011), da TV Globo, que está sendo reprisada durante a pandemia, já sabe a resposta. Na história, Eva (Ana Beatriz Nogueira) é mãe de Ana (Fernanda Vasconcellos) e Manuela (Marjorie Estiano) – e o relacionamento delas é caótico. Eva despreza Manuela e joga todas as suas expectativas em Ana, que tem uma carreira promissora como tenista. Controladora e invasiva, essa mãe age sem freios e acaba minando a autoestima das filhas, além de cobrar o amor e o tempo investido na vida delas.
Para saber quais são os sinais e como lidar com a "maternidade tóxica", Donna conversou com as psicólogas Helena Centeno Hintz, que é presidente da Associação Gaúcha de Terapia Familiar, e Mara Lins, diretora da faculdade de Psicologia do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo de Porto Alegre. Leia a seguir:
O que é?
Maternidade tóxica é aquele relacionamento entre mães e filhos que não é saudável. Todos as relações têm altos e baixos, isso é normal, só que, nesse caso, os momentos difíceis são o fundo do poço e podem gerar consequências graves para os filhos. Essa mãe pode ter algum transtorno mental de fato ou apenas problemas para lidar com suas emoções. A psicóloga Helena explica que o mito do amor materno ser apenas instintivo já caiu por terra há um bom tempo.
— A mãe tóxica pode ser uma mulher chegou à maternidade por convenções sociais, por exemplo. Que idealizava a maternidade de outra forma e não consegue lidar bem com o que encontrou na prática. No fundo, é o que ela desejava mesmo? — explica ela, que também é fundadora do Domus - Centro de Terapia Individual, de Casal e Família.
Boa parte das mães não sabe que está agindo de uma forma tóxica. Até porque, assim como em relacionamentos amorosos, nem sempre todas as atitudes são ruins, também há momentos de afeto e carinho. Sem perceber, ou com a desculpa das "boas intenções", ela acaba gerando mal-estar, desgaste emocional e insegurança nos filhos.
— Há, sim, mães que não gostam das filhas, mas podemos olhar pelo lado que algumas dessas mulheres não tem nenhum preparo para ser mães. Terminam projetando suas insatisfações, angústias, expectativas, inveja, e veem a filha mais como um perigo _ diz a psicóloga Mara, que também é doutora em Psicologia Clínica.
Quais os sinais de que a relação não é saudável?
Mães precisam dar limites e ter certo controle sobre os filhos, principalmente crianças e adolescentes. O problema é quando isso se torna uma obsessão ou uma prática excessiva. Veja alguns pontos de atenção citados por Helena e Mara:
- Quando a mãe é extremamente controladora e faz com que o filho se sinta mal até quando ele comunica alguma necessidade básica, como alimentação, por exemplo. "Fulano, você está sempre com fome? Você tem que aprender a se virar sozinho!". Ela culpa a criança ou a julga sempre egoísta. Não acolhe e não tem paciência para ensinar.
- Muitas vezes, é uma mãe que enxerga o filho como uma extensão da sua própria vida. Por isso, ele tem que seguir o que ela pensa.
- Muitas mães humilham os filhos, inclusive com xingamentos ou palavras duras. Acreditam que estão punindo a criança, o adolescente ou o adulto fazendo-os se sentirem mal e inúteis. O recado é: você só dá trabalho, me decepciona e nunca vai conseguir me deixar feliz e satisfeita.
- Quando suas expectativas não são atendidas, ela ataca a autoestima do filho. Ele nunca é bom o suficiente. Tirou 9 e não 10 na prova, por exemplo. Se não passou no vestibular, é burro. Se não conseguiu determinado emprego, é despreparado.
- Discussões são frequentes nessas relações, inclusive por assuntos que seriam de fácil resolução. Muitas dizem "eu vou embora de casa se você continuar fazendo isso". A criança acaba com medo de se sentir desamparada.
- O ciúme também é um ponto de alerta. Apesar de não terem uma boa relação com o filho, sentem ciúmes quando ele consegue construir um bom relacionamento com a tia ou a avó, por exemplo. É como se fosse um atestado de fracasso.
- Ser "melhor amiga" da filha nem sempre é saudável. Dependendo do caso, pode ser invasivo e conota uma certa possessividade. A mãe tem que permitir que sua filha tenha seus momentos sozinha e construa sua individualidade.
- Muitas mães acabam comparando os filhos entre si. "Por que você não é tão bom quanto o seu irmão? Tão inteligente? Tão talentoso?". Essa atitude acaba minando a autoestima dos filhos.
Como lidar?
O primeiro passo é reconhecer que suas atitudes não estão colaborando para um relacionamento saudável, e isso precisa ser um processo consciente. Se você é mãe, exercite a autocrítica e questione-se: como minhas atitudes estão impactando meus filhos?
— Uma mãe que tem essas atitudes tóxicas, muitas vezes, faz de forma inconsciente. Ela precisa observar o que está faltando para si, como estão as áreas da sua vida, qual pedaço está bom ou ruim. Tem o papel de mãe, de mulher, de filha, de amiga, de irmã, espiritualidade, enfim, para e olhar para cada um deles e avaliar — pontua a psicóloga Mara. — Geralmente, essa mãe está totalmente voltada para a filha, e as outras áreas estão um caos. Buscar outros interesses e outros prazeres é importante. E, se for o caso, buscar ajuda profissional.
A psicóloga Helena vai na mesma linha: as mães devem refletir diariamente sobre sua conduta e sair do piloto automático. Caso isso não aconteça, fica mais fácil cair em armadilhas, como a superproteção:
— A mãe tem que permitir que sua filha tenha seus momentos sozinha. O cuidado saudável é uma coisa, superproteger é outra — diz Helena. — E se a mãe não percebe como está agindo, a filha vai se dar conta em algum momento. Uma das formas é buscar ajuda profissional. A terapia familiar com mãe e filhos seria um caminho para poder pensar melhor sobre essas questões.
A seguir, veja dicas de como encarar o problema de frente:
Para as mães
- Pare e reflita sobre suas atitudes. Qual o tipo de cuidado que exerço? Como estou comunicando o que sinto? Abra-se para ouvir o filho sem ficar na defensiva. Pense sobre o que ele apontar que não está legal na relação.
- Calma! Se você leu a reportagem e se identificou, é possível mudar. É difícil uma mãe reconhecer que está construindo um relacionamento não muito saudável, mas, se você conseguiu, está no caminho de mudança. Você não é a pior mãe do mundo e provavelmente estava tentando acertar na criação dos seus filhos.
- Preste atenção ao controle. Se você acredita que nenhum namorado da filha é bom o suficiente, ou nenhuma amiga, pode ser um sinal de que algo está errado. É preciso buscar ajuda profissional para entender o que está por trás dessa insatisfação recorrente. As mães precisam preparar os filhos para voar, só que algumas acabam preparando o filho para ficar.
Para as filhas
- Não se culpe se precisar se afastar um pouco da mãe na vida adulta para conseguir construir seu próprio caminho. Quando a filha se torna mãe, esse afastamento do relacionamento tóxico é ainda mais comum.
- Se sua mãe não topar a terapia familiar, busque terapia individual. É importante identificar o quanto esse relacionamento tóxico gerou impacto na sua formação. E também é um jeito de evitar repetir as mesmas atitudes que você vivenciou na infância mesmo sem perceber.
- A comunicação entre mãe e filha é muito importante. Mas, se você não consegue dialogar, evite tópicos difíceis, que podem acionar atitudes tóxicas da mãe. É uma forma de conviver protocolarmente sem tanto desgaste emocional quando vocês estão juntas.
- Siga firme em seus posicionamentos Questione-se: o que realmente é importante para mim? Escolha quando ceder na relação com a mãe e quando não vai abrir mão. Só assim será possível construir seu caminho de independência na vida adulta e tentar manter a privacidade. Tente encontrar um meio termo.