Lá pelos cinco anos de idade, Valéria Barcellos já reunia os cachorros e as galinhas no quintal de casa, em Santo Ângelo, agarrava um microfone de faz de conta e dizia: “Agora vocês vão ver meu show, vão me ouvir interpretar!”.
É na felicidade dessa criança que sua versão adulta – uma mulher trans, preta, na faixa dos 40 – estava pensando quando conversou com Donna pela primeira vez esse ano. A data era 23 de março e a artista, que canta, atua, fotografa e performa, estava prestes a se mudar para o Rio de Janeiro, para começar a gravar as cenas de sua primeira novela, Terra e Paixão.
Enquanto fazia os últimos preparativos, a gaúcha topou fazer fotos para a matéria que sairia depois da estreia no horário nobre da TV Globo e relatar as expectativas e o mix de sentimentos que tomavam conta naquele momento: da alegria de ver escolhas estratégicas colocando-a no caminho de um sonho ao medo de acabar na mira de um canhão de intolerância e de preconceito.
— Penso muito na realização dessa criança, ao mesmo tempo em que sinto muito medo. Não só pela expectativa do novo, mas do que pode acontecer com uma pessoa que está na linha de frente, num lugar de destaque. E estou ali representando muitas pessoas, tenho medo dessa responsabilidade. Mas também não tenho nem um pouco de modéstia de dizer que não estou vivendo uma coisa que mereço. Porque eu mereço. Trabalhei muito para isso, tenho 35 anos de carreira musical, 25 de teatro, demorou até demais. Super mereço isso tudo — reconhece.
Na sessão de fotos, feitas no estúdio Áudio Porto, na Capital, onde alguns trabalhos como cantora já foram gravados, Valéria usou um vestido colorido feito especialmente para a ocasião. A criação é do designer Jeffe Souza, e ela faz questão de lembrar que foi esse amigo quem pagou os primeiros R$ 3 para a entrada dela no Venezianos Pub Café – bar de Porto Alegre onde se consagrou cantando.
A relação de quase 20 anos entre o estabelecimento e Valéria é tão forte que, para a primeira cena de Luana Shine na novela, foi realizado um evento com projeção da trama nas paredes da Travessa dos Venezianos, Cidade Baixa, onde ele está localizado. A gratidão pelos lugares e pelas pessoas que moldaram a caminhada da artista até aqui é mencionada várias vezes:
— Em 2005, quando vim morar em Porto Alegre, passei dificuldades, fome, dormi na rua, tudo isso aconteceu. E teve toda essa rede que me ajudou, desde a menina que me acolheu na casa dela ao menino que pagou para eu ir ao Venezianos na primeira vez. Ele dizia: “Tenho certeza de que, se te ouvirem cantando, alguém vai te dar uma chance”. Tenho gratidão infinita a todo mundo que passou pela minha vida. Não acredito que teria conseguido chegar até aqui, inclusive viva, se não fosse pelas pessoas que me ajudaram.
A segunda vez em que Valéria conversa com Donna é em 29 de maio, agora já devidamente consolidada na novela das 21h. E ela conta que sua vida mudou drasticamente nos dois meses que se passaram.
A começar pela agenda de shows que precisou dar lugar a uma rotina exigente de gravações, as quais começam no fim da manhã e frequentemente terminam tarde da noite. A atriz é uma das que chegam mais cedo aos estúdios, para dar tempo de colocar as unhas longas e a meia-peruca cacheada que caracterizam sua personagem, uma gerente de bar.
O cenário de seu cotidiano também mudou. Valéria agora passa os dias em Nova Primavera, a cidade cenográfica montada nos estúdios da emissora. Quando não está lá, está no flat na Barra da Tijuca, onde criou o ritual de abrir as janelas e dar bom dia para o mar antes de sentar-se para tomar seu café e repassar os textos.
Mas a mudança mais impressionante talvez esteja no fato de estar vivenciando situações em que uma mulher trans é “vista em um lugar de gente”, alguém de quem é possível “se aproximar, abraçar”.
São algumas das palavras que a atriz usou para contar, por meio do Instagram, sobre o dia em que foi reconhecida pela vizinha no elevador do prédio. Sinal de que, através da personagem, é o ser humano quem está sendo enxergado.
— Mesmo aqui em Porto Alegre, nesse fim de semana de folga, já vejo as pessoas me reconhecendo, falando que gostam da personagem, que é interessante, que dão risada. Me deixa feliz essa recepção bonita da pessoa física a partir da personagem. É muito legal, porque, por mais que a Luana seja completamente diferente de mim, continua sendo eu em muitos aspectos — afirma.
Movida a inquietude
No bate-papo a seguir, confira detalhes sobre carreira, vida pessoal e sonhos de Valéria Barcellos, uma mulher permanentemente “insatisfeita” e focada em abrir caminhos para si e para quem vem junto dela.
Você foi para o Rio de Janeiro definitivamente?
Fui com metade das malas, porque ainda tenho apartamento aqui. Mas já estou com metade do pé para lá. Afinal, vou ter que ficar o ano inteiro e já estou estudando algumas propostas que chegaram para 2024.
Como Valéria se define?
Insatisfeita. Nunca fico satisfeita com aquilo que tenho, sempre quero mais. Vou sempre dar um passinho a mais para frente e tentar abrir caminho para outras. A inquietude e a insatisfação me movem.
Saí de Santo Ângelo, vim para Porto Alegre, fui fazendo shows, teve Katy Perry (fez a abertura do show da turnê Witness, em 2018), as coisas foram indo até que agora estou na televisão. E quero mais ainda, muito mais.
No início, quais eram os seus sonhos?
Meu sonho era com arte. Pensava que, se trabalhasse em um lugar onde tivesse bastante visibilidade, as pessoas me olhariam de outra maneira e teria respeito para externalizar quem sou.
Lembro da minha primeira vontade de atuar, aos nove anos, quando vi Ney Latorraca fazendo uma personagem na TV em que ele se vestia de mulher. Achei aquilo fascinante. Era muito apaixonada por um vestido verde-pistache que tinha na minha casa, queria muito usá-lo.
Então, na hora, veio um clique: “Já sei! Vou poder usar esse vestido, se fizer teatro, já que o Ney Latorraca pode!”. A arte é tão importante para mim, que me possibilitou ser. Olha que gigantesco isso. Todo meu trabalho artístico de cantar, atuar, fotografar e performar vem da necessidade da afirmação do meu ser.
Quais as expectativas para esse novo momento?
Que a vida seja mais carinhosa comigo a partir de agora. Espero desenvolver mais trabalhos de maneira mais branda, que o caminho seja menos espinhoso. Sempre tenho na cabeça a imagem de um corredor de rosas muito bonito. Mas, para avançar nesse corredor, é estreito e acabo me arranhando nos espinhos. Então, ele vai me machucando, apesar de ser lindo.
Espero que agora tenham me dado uma capa para passar me machucando menos. Artisticamente, quero fazer as coisas com mais delicadeza e menos pressa, menos urgência, menos ferimentos.
E que experiências você ainda gostaria de vivenciar?
Cantar com Adele. Também queria beijar o príncipe Harry, mas esse já casou (risos). O que quero são coisas pequenas e facilitadas. Um dos meus maiores sonhos é ser invisível. É algo que não sei se vou experienciar nessa vida, mas queria poder ir ao supermercado sem ninguém ficar me olhando, deve ser maravilhoso.
Também queria muito ter problemas. Um dos maiores sonhos de uma pessoa trans é ter problemas, tipo reclamar que o Uber quase bateu vindo para cá, que a fila está grande, que teve trânsito. Acho que queria ter problemas e a invisibilidade da cisgeneridade, que passa por qualquer lugar e não chama atenção pelo gênero.
Você deseja invisibilidade, mas relata emoção ao ser reconhecida. Como lida com esses extremos?
As pessoas me olharem é muito diferente de me enxergarem, mas acho que algumas delas estão conseguindo, o que é uma felicidade. Elas deixam de ver a primeira camada daquilo que imaginam que é a vida de uma pessoa trans e conseguem me reconhecer a partir do trabalho. O trabalho dignifica muito a gente. Muitas de nós não têm essa dignidade.
Mas o que estou passando não deixa de ser invisibilidade, já que, quando você se coloca no patamar de uma pessoa como todas as outras, acaba sendo invisível. Estou experimentando um pouco e está sendo lindo.
Você já usou o nome Valéria Huston. Por quê?
Eu fazia cover da Whitney Houston, principalmente I Will Always Love You, que certamente cantei mais vezes do que a própria Whitney. Também porque, em Santo Ângelo, participei de um concurso de rainha do Carnaval e precisava de um nome. Aí uma amiga me deu a luz: “o gingado da Globeleza Valéria Valenssa e a voz da Whitney”.
Quando foi que Huston deu lugar a Barcellos?
Foi lá por 2012, quando tive a retificação de nome. Depois de muito tempo de luta, achei por bem agarrar o sobrenome de família. Foi um processo pesado de três anos e meio.
Primeiro, consegui trocar só o nome nos documentos, não o gênero. Tive que entrar com mais um processo. Fui uma das pioneiras a conseguir sem cirurgia de redesignação genital, que era uma obrigatoriedade. Isso abriu precedente para muitas.
Como faz para manter a cabeça no lugar?
Dia desses, parei e pensei: “Algo que tanto desejei chegou” e isso pode dar um nó na cabeça, pode surgir o: “E agora? Será que acabou?”. Tenho tentado aproveitar cada segundo e estou com a terapia em dia. Todos os dias, abro a janela e olho para o mar. Isso tem me feito muito bem. Vez ou outra desço, boto o pezinho na água e ela me ajuda a desopilar.
Você sofreu um ataque transfóbico em 2015. Teme novos episódios?
Sim. Recebo pouco hate na internet, mas o que vem é pesado. Me preocupa essas pessoas acharem natural expressar ódio contra mim.
Desde sempre, acham que trans e travestis podem ser alvos de chacota e violência, um corpo quase público sobre o qual os outros têm o direito de falar, opinar, apontar, tocar. Não é assim.
Como se blindar?
Não sei e o que mais me amedronta é que não sei quando, de onde e de quem virá essa violência. Em 2015, estava na Rua da República, indo almoçar para comemorar o show lindo que tinha feito na noite anterior.
Estava ao lado do meu ex-marido, não estávamos nem de mãos dadas, quando uma pessoa me abordou xingando de infinitas coisas. O que tento fazer é ficar atenta a qualquer sinal e ao que pode me blindar juridicamente.
Você fez uma tatuagem sobre o ferimento que sofreu.
Sim, nas costas, no lado esquerdo. É um microfone grande com flores que saem dele. Dá uma simbologia bonita de que, mesmo que me ofereçam essas coisas, ainda continuo oferecendo música, beleza e flores.