“Eu sou aquilo que sou e, se quiser me mudar, você vai se arrepender”, avisa Alcione, a Marrom, em Mulher Ideal. O trecho define bem quem é a cantora, que acaba de completar 50 anos de carreira: uma mulher bem resolvida, que não pede licença para ser o que é e não tem pudor em dizer aquilo que pensa.
Perto de chegar também aos 75 anos de vida, ela não quer saber de nenhum tipo de amarra sobre sua personalidade. Está feliz sendo quem é, fazendo o que faz, e não pretende abrir mão disso por nada.
— A Alcione que chega aos 75 é uma mulher feliz, de bem com a vida. Uma pessoa que faz o que gosta, que vive do que ama, e ainda ganha por isso — resume ela. — Encaro o envelhecimento como um processo natural. Só peço a Deus para ter saúde e disposição para continuar exercendo o meu ofício dignamente — completa.
Esse ofício é praticado por Marrom desde a adolescência, quando aprendeu a tocar instrumentos de sopro com o pai, João Carlos, maestro da banda da Polícia Militar do Maranhão, onde a cantora nasceu. Foi por lá que integrou os primeiros conjuntos musicais, atuando como clarinetista. Contudo, mesmo tendo origem nordestina, foi cantando o ritmo que é um símbolo carioca que a voz de Marrom conquistou o Brasil inteiro.
Em cinco décadas de música, a dama do samba pode se orgulhar de nunca o ter deixado morrer nem acabar. Lançou mais de 42 álbuns – até o final deste ano deve realizar o 43º, gravado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro – e incontáveis hits.
Músicas como Você me Vira a Cabeça, Meu Ébano, Estranha Loucura, Sufoco e Garoto Maroto, entre outras, que revelam a força e a fragilidade de uma mulher que é tão dona de si e independente como apaixonada e vulnerável.
Esse mix de emoções traduzidas em música lhe rendeu mais de duas dezenas de honrarias. A próxima ela recebe em 21 de novembro, dia do seu aniversário.
A comemoração será marcada pela entrega da Medalha Alcione, distinção de mérito cultural criada pelo governo do Rio justamente para exaltá-la. Só que a festa não para: no ano que vem, Marrom também será a grande homenageada do Prêmio da Música Brasileira.
— Presentão! — define ela.
É assim, reconhecida por sua contribuição e consciente ela própria de tudo o que fez pela música brasileira, que a artista sobe ao palco do Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre, na noite de 11 de novembro, para celebrar junto ao público gaúcho os 50 anos de carreira e os 75 de vida.
Nesta entrevista à revista Donna, a cantora fala sobre carreira e vida pessoal, percorrendo desde os desafios que acompanharam sua trajetória artística até o sexo na terceira idade.
Você começou como crooner (artista que canta acompanhado de instrumentos de orquestra), ainda muito jovem. Há algum traço daquela época e daquela menina que você carregue até hoje?
É como diz a canção, “os sonhos não envelhecem”, e as emoções são fundamentais no exercício de qualquer atividade artística. Posso ter anos de carreira, mas, quando subo ao palco, as minhas emoções são renovadas.
E, como naqueles tempos, continuo preocupada em agradar ao público que sai de casa para assistir aos meus shows.
Se você pudesse dar algum conselho para essa Alcione de 50 anos atrás, que estava começando na música, o que diria?
O que diria para qualquer artista iniciante de ontem ou de hoje: para ter foco, trabalhar muito, ir em frente e seguir em busca dos seus sonhos. Acho que fiz isso, não é?
Naquela época, você imaginava que chegaria onde está hoje?
Claro que não. Sonhava apenas em viver do meu ofício. Jamais poderia imaginar que, depois de tanto tempo, teria esse público tão fiel e carinhoso, que me acompanha aonde quer que eu vá.
Mais do que fazer sucesso, você tornou-se um ícone da música brasileira. Há algo da sua personalidade que tenha sido definitivo para que você alcançasse esse patamar?
Aprendemos com os nossos pais, eu e meus irmãos, a nos fazermos respeitar, a não abaixar a cabeça para quem quer que seja.
ALCIONE
Cantora
Desde o início, percebi a diferença entre fazer sucesso e ter uma carreira. Naturalmente, e não me arrependo, escolhi a segunda opção. Além disso, como todo artista iniciante, tive influências musicais, mas isso jamais me impediu de buscar autenticidade e ter personalidade.
Você é uma referência para cantoras e cantores da nova geração. Como lida com isso?
É claro que isso me faz muito feliz. Mas, em contrapartida, também aprendo com essa galera jovem e talentosa.
Como foi preparar a turnê em comemoração aos seus 50 anos de carreira? Só a escolha do repertório já deve ter sido um desafio.
Certamente. É um desafio e tanto. Sempre fica de fora uma ou outra música que o público gostaria de ouvir. Mas procuramos, eu e minha equipe, priorizar um roteiro com os principais hits da carreira.
O lançamento de Tijolo por Tijolo, seu último disco, se deu junto à chegada da pandemia. Isso atrapalhou de alguma forma os projetos que você tinha para ele?
Todo mundo teve que dar um tempo no período da pandemia. Felizmente, tivemos as lives e pudemos nos manter mais ou menos próximos aos fãs.
Mas não tínhamos como realizar turnês, encontrar o público pessoalmente. E essa troca de energia é fundamental para o nosso trabalho.
Como foi o período de isolamento social para você?
A obrigatoriedade do isolamento é sempre ruim, mas o pior foi ter ficado impossibilitada de abraçar e beijar os que amo, estar perto de minha família. Essa foi a pior parte para mim.
Quem olha para você, vê uma mulher empoderada, dona de si, que não tem medo de ser quem é. De onde vem toda essa força?
Dos ensinamentos familiares. Aprendemos com os nossos pais, eu e meus irmãos, a nos fazermos respeitar, a não abaixar a cabeça para quem quer que seja. Isso sempre nos deu força e ajudou na construção da minha personalidade.
Na sua música, a mulher não depende de homem, é ela quem dita as regras. A Loba e Mulher Ideal, por exemplo, estão aí para provar. Por que é tão importante para você que a mulher seja representada dessa forma?
Em qualquer situação a mulher tem que ser bem representada. Meu pai sempre dizia que deveríamos ser independentes e jamais depender de homem nenhum.
Ao mesmo tempo, você tem canções que expressam um lado vulnerável dessa mulher que não depende de homem, mas também se apaixona. Essa combinação tem a ver com você?
Como todo mundo, desfruto dos problemas e das benesses contidas nos relacionamentos. E adoro uma canção romântica. Isso, porém, não sugere que haja submissão nem descarta a independência que sempre fiz questão de preservar na minha vida pessoal.
Você representa o samba, um gênero musical ainda dominado pelos homens. Em algum momento ser mulher tornou as coisas mais difíceis nesse meio?
As mulheres sempre passam pelos mesmos preconceitos, até hoje, infelizmente. Mas acho que, a partir das nossas próprias atitudes, as coisas vêm melhorando um pouco. Tem muitas guerreiras por aí, batalhando por isso. Só tento fazer a minha parte.
Você se considera feminista?
Não sei se ter o comportamento independente que sempre tive me define como feminista. Sou uma mulher que corre atrás dos seus sonhos sem se preocupar demasiadamente com dificuldades, percalços e preconceitos.
Prestes a completar 75 anos, você acredita que envelhecer pode ser mais difícil para a mulher do que para o homem?
O homem continua tendo alguns privilégios, pois nós somos sempre mais cobradas quando se trata dessas questões. Mas acho que todas as idades têm suas belezas, e envelhecer também traz outras marcas como a maturidade.
Falar sobre sexo na terceira idade ainda é um tabu. O que você pensa sobre isso?
Que não deixamos de ser mulheres ou homens quando chegamos à maturidade. O sexo pode ser até melhor mesmo, nessa fase, porque já nos conhecemos melhor. O assunto não é tabu para mim e não me envergonho da minha sexualidade.