É sobre o chão móvel de uma chalana que Maria Bruaca inicia sua jornada de cura e de autoconhecimento depois de décadas isolada em uma casa, com suas vontades reprimidas e subjugadas. Ouvindo a voz grave e rouca de Isabel Teixeira, a responsável por hipnotizar o país com sua versão da personagem no remake de Pantanal (TV Globo), a impressão é de que a atriz guarda semelhança mesmo é com o rio, correndo livre na direção dos seus desejos.
Filha de Renato Teixeira, um dos mais relevantes músicos da cena nacional, explorou a raiz artística na atuação. É atriz desde os 10 anos e colou sua vida ao teatro, com temporadas no Brasil, na França e no Japão. Hoje é também diretora, dramaturga e editora de livros. Junto a isso, é uma “mãe em movimento” que, aos 48 anos, dedica-se a preparar para a vida uma menina de 11 anos e um jovem de 18, inspirando-os a alçarem os próprios voos.
– O que está mais distante de mim enquanto artista é ficar em casa esperando me chamarem para alguma coisa – enfatiza.
Isabel mora no Rio de Janeiro e tem sua vida vinculada à agenda de gravações, seis dias por semana, das 11h às 21h. Veterana no teatro, é iniciante em TV, onde havia participado de uma única outra novela, Amor de Mãe, de 2020. Ela entende a produção atual como um patrimônio nacional, já que entra na casa das pessoas e consegue unir diferentes realidades. E comemora que a narrativa esteja engajando, inclusive, gerações mais novas, que a assistem com um olho na tela e o outro nas redes sociais.
Ao longo deste bate-papo, ela discorre sobre a construção da sua carreira, a relação com a maternidade e reflete sobre a jornada de Maria Bruaca em busca de suas vontades soberanas.
O Brasil está encantado pela nova Bruaca e, sobretudo, por Isabel Teixeira. Quem é ela?
Eu também estou tentando descobrir. Há 48 anos que venho me conhecendo com intensidade, mas agora é um momento divisor de águas, pois nunca tive a visibilidade que estou tendo.
Ainda estou tateando, não entendi direito o que aconteceu. Esses dias me falaram que são 150 milhões de telespectadores da novela. Você consegue imaginar esse número de pessoas?
Não consigo me descrever muito, pois cada hora é uma hora. Agora, sou a Isabel que mora no Rio de Janeiro e tem uma vida totalmente ligada a um cronograma que me passam toda sexta-feira, com gravações de segunda a sábado. Posso dizer que sou a mesma trabalhadora de dois ou três anos atrás, só que parece que eu jogava handebol e agora estou jogando futebol.
Sempre trabalhei naquela caixa do teatro, ao vivo, com público, com repetição. Sou apaixonada por isso e de algum modo esse ofício moldou minha vida: sou mulher, mãe, dona de casa, mas sempre andei junto com o teatro.
Meus filhos conviveram com pessoas de teatro, frequentaram desde pequenos, sabem como é. Não fui uma mãe presente no domingo à tarde, é a hora em que estou trabalhando, viajando. Escrevo, atuo, dirijo, tenho alguma noção de luz; isso também é quem sou. E o outro lado é o familiar.
E como funciona a tua dinâmica com os filhos e a carreira hoje?
Meu filho foi morar fora este ano e minha filha está em São Paulo, pois recomeçaram as aulas, mas ficou aqui nas férias e vem em alguns finais de semana. Não há separação. Trabalhei fora do país durante 12 anos quase seguidos, passando temporadas grandes fazendo turnê fora. Então, meus filhos foram criados com uma mãe que vem e vai. E isso é muito difícil, pois uma mãe em movimento ainda não é uma coisa bem-aceita.
Não é bem-aceita por ti ou pelo olhar externo?
Era por mim, porque culturalmente foi me dado que eu teria que ter muita culpa por viver assim. Mas a riqueza disso também é muito legal, de uma mãe que vai fazer peça de teatro no Japão e, de repente, leva todo mundo para morar em Paris no inverno. Meu filho está dando um passo largo e acho que essa coragem ele aprendeu comigo. E ele sabe disso.
Minha filha é muito antenada e informada em tudo e, ainda assim, é difícil. Tive que lidar com a culpa e fazer muita terapia, porque é muito louco. Em 2022 ainda é mais fácil aceitar um homem que trabalha fora e viaja – que aí é “chiquérrimo! Nossa!” – do que uma mulher.
Mas tive muito apoio do pai dos meus filhos. Ficamos casados por 12 anos e agora fazemos guarda compartilhada, somos uma equipe. E não devo isso a ele. É como é. Um dando força para o outro. Não é que ele seja maravilhoso e bonzinho. Olha o tanto de coisa que a gente tem que desconstruir, né?
Questões como sexualidade sempre foram tratadas com naturalidade na tua casa?
Isso também é uma construção, né? Minha mãe não tinha um formulário pronto para me criar. A gente foi construindo juntas, sempre nessa transparência e na vontade de as coisas serem ditas. Como ela me criou praticamente sozinha, conversarmos sobre tudo era uma forma de me proteger para que eu pudesse falar. Porque é difícil quando você se sente oprimido por alguma situação ou por ser mulher.
Lembro que eu pegava ônibus desde muito cedo e ela dizia “Bel, se alguém faz alguma coisa no teu corpo dentro do ônibus e você não gosta, grita, que aí as pessoas, principalmente as mulheres, se unem” – ainda não existia a palavra sororidade, mas era isso. Então, tinha essa coisa de minha mãe me preparar para o mundo.
Ela era uma mulher na década de 1980, criando uma filha que tinha que pegar transporte público, estudar em escola pública, estar no mundo, se virar e trabalhar. Falar era muito importante.
Maria Bruaca é uma mulher em busca dela mesma?
Tem uma situação pré-estabelecida que é: ela mora naquela fazenda, isolada, com aquele marido, trabalhando na casa e isso é a função dela. A partir do momento em que descobre a traição, eu costumo pensar que o chão se abre. É um abalo sísmico que não para, como se aquela casa começasse a tremer e ela continuasse tentando varrer, cozinhar e ter algo com o Tenório, mas não consegue, porque está tudo mudando. E isso dá um “tilt” na cabeça dela, emocionalmente, sexualmente e moralmente.
Então, não é “bota um cropped e reage, Mary Bru” porque não é tão simples. Se fosse, a gente nasceria e morreria, porque já está tudo resolvido, né? E acho que essa loucura vai ficando mais intensa, ela realmente fica embotada com aquele monte de informação, com a própria sexualidade.
A chalana é o começo da cura. Um restauro onde ela vai refazer o chão para pisar. Maria vai ter que ter um restauro social, legislativo, ético e um restauro enquanto mulher ativa, enquanto mulher que está, enquanto mulher que teve uma história. É uma personagem que paira por todos os cenários da novela porque para esse restauro, ela precisa dos outros, pois a gente faz uma sociedade juntos. Ela vai ouvir muito para se conhecer.
Por qual razão tu achas que as pessoas têm se identificado com essa personagem?
Acho que isso é o retrato de um país que ainda tem muita Maria Bruaca, em graus diferentes. Costumo dizer que o diapasão dela é um, pois na relação não tem violência física, mas tem abuso moral e patrimonial. E quantas mulheres neste país vão ver as cenas que gravamos e se dar conta de que foram abusadas patrimonialmente? Fala-se pouco sobre, mas abuso patrimonial também é você colocar a mulher dentro de casa, cuidando dos filhos, ganhar dinheiro e depois falar que foi tudo você quem fez.
A gente também pode estar vivendo uma relação moderna, seja homem com mulher, mulher com mulher, homem com homem e haver um momento em que você cede a algo e isso torna-se o normal, mas depois fica ruim e você não consegue sair. Por exemplo, com a palavra “bruaca”, que o Murilo Benício, no início, tinha dificuldade em falar, pois se sentia mal.
A gente diz que Tenório pode ter começado a chamar Maria de “bruaca” numa brincadeira, no sentido de “vem aqui minha panquequinha”, pois bruaca também significa isso. Algo carinhoso e que depois o hábito fez com que virasse uma coisa pejorativa. A palavra se transformou e ela não notou, deixou passar.
E Maria não escutava nem música, pois não tinha acesso à cultura na casa dela. Não podia nem saber que estava sofrendo abuso, porque a cultura vem também nos colocar no mundo, traz referências. Ela não folheava uma revistinha, um gibi, não tinha nada.
A Maria Bruaca de 1990, da Angela Leal, era taxada de “piranha” nas ruas. A tua tem recebido mais carinho. O que mudou?
Eu estou tentando entender também. Ângela falou isso num encontro virtual que tivemos e não me caiu a ficha na hora. Como assim que ela era xingada na rua de “piranha!”, “galinha!”, “vaca!”, “dá pra todo mundo!”?. Mulher quando tem a sexualidade exposta, sente e vai, no impulso, é taxada de galinha, né? Embora estejamos desconstruindo isso, acredito que seja porque as leis e o mundo são feitos pelos homens. As leis de 1800 não era a mulherada quem tava fazendo. Acho que tem a ver com isso, mas está mudando.
Começou a mudar visivelmente por volta de 2010. Percebi na vez em que estava andando na rua com uma amiga, uma atriz alta, linda e muito forte, quando um cara passou por ela e falou “GOSTOSA!”. Ela imediatamente parou, se virou e disse “O senhor falou o quê? Quem foi que deu essa liberdade pro senhor?”. E meu coração começou a bater disparado.
Voltamos a andar e perguntei por que ela tinha feito aquilo. A vida inteira eu ouvia “que olhos!”, “que bunda gostosa”, “vou te chupar toda”, e não ligava. E minha amiga disse “não é para não ligar. Isso não é bom. Isso não pode”. E me dei conta de que era verdade. A personagem é a mesma, mas há uma mudança em quem faz essa dramaturgia, que é o público. Vem da geração que nasceu em 2002, 2003. Mulheres muito atentas, uma energia que vai dominar o mundo.