Com imagens de olhos tatuados nas mãos, a comunicadora e psicanalista Manuela Xavier, 33 anos, descreve sua atuação profissional como de "olhos atentos para mulheres inquietas". Foi aos 30 anos, quando entendeu ter vivido um relacionamento abusivo, e em uma fase na qual já se considerava feminista de carteirinha e dava aulas de psicanálise, que decidiu criar uma comunidade nas redes sociais com a missão de "despertar mulheres".
Sua página no Instagram é apelidada por ela de "alcateia" — uma referência ao livro Mulheres Que Correm Com Os Lobos (1989) — e conta com nomes como o da escritora Djamila Ribeiro e da cantora Anitta entre os mais de 400 mil seguidores.
Para além da internet, agora Manuela investe na literatura para dialogar com as mulheres. Em seu livro de estreia, De Olhos Abertos: Uma História Não Contada Sobre Relacionamento Abusivo, lançado nesta semana, ela convida os leitores para uma "conscientização coletiva sobre o abuso nas relações amorosas", a partir de um alerta sobre o perigo da violência psicológica.
Na entrevista a seguir, a comunicadora e psicanalista explora o que diz ainda ser necessário discutir acerca do assunto, como ajudar uma amiga que está nesta situação e de que forma é possível usar a internet de maneira construtiva:
O termo "relacionamento abusivo" ganhou força e guiou muitos debates nos últimos anos. Qual o diferencial da sua abordagem?
As mulheres têm vergonha de contar a própria história, porque parece que a culpa é delas. Tem uma descredibilização.
Quando contei a minha história publicamente, vivi isso: "Não foi bem assim", "Mas você era chata, né...", "Você também não era fácil".
Relacionamento abusivo é uma pauta que me interessa muito, porque acho que a gente não está falando sobre o principal, que é a violência psicológica. Falamos muito quando a violência está explícita, que era o que a Jout Jout (Prazer, comunicadora que viralizou em 2015 com um vídeo que trazia à tona a questão dos relacionamentos abusivos, ainda pouco comentada abertamente) falava.
É muito fácil de identificar quando o cara fala: "Não bota o batom vermelho, porque é coisa de p*ta". Quando o cara toma o seu celular ou te bate. Agora, quando é aquela coisa muito sutil, em que você começa a trabalhar emocionalmente para o relacionamento, quando o cara te faz se sentir culpada... A culpa é uma dimensão muito estrutural e eu falo sobre isso no livro.
Trago uma perspectiva histórica e psicanalítica de como a culpa é incutida nas mulheres desde o momento em que nascemos. Toda a lógica dos movimentos é naturalizada para que elas se desculpem. O que tem de não contado é essa dimensão sutil e estrutural, que não é individual. A sociedade empurra mulheres para relacionamentos abusivos. O não contado é nesse sentido, de que existem dimensões simbólicas e psicológicas.
Você deixa claro que parte de uma perspectiva pessoal para falar do assunto. De que forma sua experiência contribuiu para o desenvolvimento do livro?
Ter passado por um relação abusiva me ajudou não na escrita do livro, mas em toda a minha percepção. Quando vivi a minha relação abusiva, já era feminista e falava de relacionamento abusivo. Eu falava: "Não tira o batom vermelho", "Ele não pode controlar suas roupas".
Meu ex controlava as minhas, mas quem dera fosse só isso. Toda a lógica e dinâmica de violência psicológica era muito maior, porque era mais profunda.
Ter vivido um relação abusiva fez com que eu entendesse do que ninguém estava falando. O que é estrutural, silencioso, que dialoga com a culpa feminina. Ter vivido fez com que eu entendesse que existe uma outra coisa que não está nos protegendo.
Porque conhecimento eu tenho. Conheço o feminismo, (na época) eu estava terminando o doutorado em Psicologia, era independente financeiramente. Eu que bancava a casa. Ou seja, não era para viver uma relação abusiva. E não falamos sobre essas mulheres. Se eu vivi, é porque tinha alguma coisa que não estava sendo falada.
No livro, você conta uma história pessoal na qual chama o ex em questão de "boy probleminha". O que caracterizaria esse termo?
Ih, menina, é o problema do século. Descobri essa categoria de homem a partir do meu relacionamento. É uma armadilha.
O que é o "boy probleminha"? É o homem que hackeou o machismo, as novas estratégias de dominação. Ele já percebeu que não dá mais para agir na brutalidade, não dá mais para dizer: "Você é minha mulher".
Não foi um homem que percebeu isso, é meio que a seleção natural da espécie (risos). Ele vai pensando assim: "Essas mulheres estão querendo um homem sensível, então eu tenho que falar da minha sensibilidade". Só que ele vai (fazer assim): "Isso que você fez comigo me feriu, é o meu gatilho, como você é má".
O "boy probleminha" é o homem que, para continuar permanecendo nesse lugar de dominação, se utiliza da arma da falsa sensibilidade
MANUELA XAVIER
Psicanalista, comunicadora e escritora
O cara vai, a partir das próprias questões — que são inerentes a todos —, jogar toda a responsabilidade na mulher, na companheira. Porque ele imagina, como um bom homem socializado dentro da masculinidade, que a mulher está ali para servi-lo, para cuidá-lo, para ampará-lo.
Ele não se posiciona como um sujeito adulto e responsável pelos próprios B.O.s. É o homem que, para continuar permanecendo nesse lugar de dominação, se utiliza da arma da falsa sensibilidade.
É tão sensível que não pode ser contrariado, não pode se frustrar, tal com o "macho". Só que o "machão" faz isso pela força. O "probleminha" te convence, e esse é o perigo.
O que é "tratamento do silêncio", outro termo que você aborda, e como ele impacta as mulheres?
A sociedade patriarcal está estruturada a partir de uma dominação masculina. Essa dominação impõe que os homens monopolizem os espaços, e o silêncio é uma forma de monopolizar o espaço de fala da relação. Ele não te diz o que está acontecendo. No tratamento do silêncio, o cara não te ofende, não te xinga... Pode até vir junto (as ofensas). Mas é quando o homem entende que o silêncio dele é a arma mais poderosa, ele te pune, fazendo com que você fique sem entender por que ele está sem falar com você.
Você fica pensando: "O que eu fiz?" e começa a trabalhar emocionalmente para esse cara. Ele exerce poder sobre você. É quando você guarda suas dores no bolso porque fica pensando no que fez de "errado". É a mesma coisa que o tratamento de abstenção sexual, quando os homens punem as mulheres não fazendo sexo com elas. O cara entende assim: "Não vou transar com você – não porque não tenho tesão, mas porque quero te fazer sentir não-desejada".
E então você ficar pensando: "Será que engordei? Será que transo mal? Será que ele está com outra?". A gente mesmo, emocionalmente, vai mantendo o cara nesse lugar de poder, de que ele escolhe se fala comigo ou não, se transa comigo ou não. É uma violência psicológica.
Como ficar "de olhos abertos" para ser capaz de identificar um possível relacionamento abusivo?
A ideia do livro não é que a gente esteja atenta para olhar os sinais, mas sim para o nosso próprio incômodo. Por mais que todas as violências sejam estruturais e a gente vá naturalizando muitas delas — o furo na orelha, o sutiã apertado, a cirurgia plástica — nós sentimos o incômodo. "Eita, bateu mal, não gostei". É para isso que precisamos olhar.
Termino o livro com isso, em um capítulo chamado Mais Vasalisa, Menos Cinderela, porque a história das mulheres tem que ser contada em seus protagonismos, não como coadjuvantes de um homem. É esse olhar que a gente precisa ter: para nós mesmas e para o nosso protagonismo. E para o nosso incômodo, porque ele comunica. Se você se perguntou "será que eu estou doida?", esse é o sinal. Porque quem está louco não pergunta.
Por que uma mulher que está em um relacionamento abusivo, muitas vezes, tem dificuldade de identificar essa situação?
Relacionamento abusivo é um projeto social. Foi feito para você cair nele. Estranho seria se você não caísse
MANUELA XAVIER
Psicanalista, comunicadora e escritora
Vejo muitas mulheres se perguntando: "Como eu me permiti chegar até aqui?". Não fomos nós que deixamos chegar. A sociedade nos deixa chegar nesse lugar. O relacionamento abusivo não é uma dor ou vivência individual, é coletiva.
Muitas ficam, porque elas nem sabem que é abuso. Acham que aquilo é o normal: "Ah, ele está sendo protetor, está sendo cuidadoso, homem é assim mesmo, eu também não sou fácil".
Hoje, quando ouço que não sou fácil, sei que estão querendo dizer que não me conformo, não me submeto. O problema não sou eu, e sim vocês que estão achando ruim. A mulher fica no relacionamento porque não tem acesso a essas informações. No livro, eu desvelo essas armadilhas. Relacionamento abusivo é um projeto social. Foi feito para você cair nele, estranho seria se você não caísse.
Qual o papel da rede de apoio de uma mulher que está vivendo um relacionamento abusivo?
Essa pergunta está no top 3 das que mais recebo no Instagram. As pessoas acham que o mais óbvio que elas precisam fazer é falar: "Amiga, você está em um relacionamento abusivo, esse homem é podre, sai fora". Mas não é esse o caminho. Não diga isso a ela. Porque, se a gente entende que a estrutura social é um grande pacto que coloca as mulheres nessas relações e faz com que elas achem que essa violência é amor, se você diz que o que ela está vivendo é abuso, você vai contra o movimento de emancipação dela.
O que a rede de apoio precisa fazer é lutar coletivamente para que essa mulher recupere sua autoestima, seu senso de capacidade própria, que ela tenha noção e segurança do apoio que vai receber.
Muitas mulheres acham que "ah, estou nesse relacionamento há cinco anos, me afastei dos meus amigos, se eu sair hoje eu não tenho ninguém". A responsabilidade da rede de apoio não é denunciar, é estar ao lado. É preciso estar ali amparando, lembrando essa mulher como ela é suficiente, inteligente, capaz. Levando essa mulher para fazer e construir coisas fora da relação.
A partir desse laço, essa mulher vai tendo de volta sua autoestima e vai conseguindo identificar (o abuso). O mundo empurra as mulheres para falar da nova dieta, da nova cirurgia e de como enlouquecer o homem na cama. É isso que nos estimulam a conversar. Mas precisamos falar de política, das nossas subjetividades. Quando, em uma roda de amigas, esse é o papo, a mulher que está ali pensa: "Será que isso tem a ver comigo?". Esses assuntos precisam ser discutidos.
Você tem um grande alcance nas redes sociais. Como analisa o poder da internet para fomentar a discussão de assuntos como esse?
Meu alcance não é maior do que o de pessoas que estão dizendo "como enlouquecer um homem na cama", "como ser a mulher recatada e do lar" ou "como encontrar um homem que te assuma". Ou a tal da "energia masculina e energia feminina", do "homem precisa ser o que toma as decisões".
A mensagem dessas pessoas ainda chega de uma forma muito mais radical do que a minha. Eu fico muito feliz de poder alcançar muita gente, de muitas mulheres virem me dizer que depois do meu conteúdo conseguiram sair de relação abusivas, e ver que, caraca, transformo a vida de pessoas. Mas acho que a gente precisa mais. Ainda é estranho, em uma mesa de bar, se a mulher fala, por exemplo: "Meu sonho não é casar". "Noooossa, não, mas é que seu relógio biológico ainda não apitou". Não é uma coisa que está dada, ainda é um espaço de resistência e luta.
Que dica você daria para as mulheres que se sentem inseguras ou mesmo vulneráveis aos eventuais gatilhos presentes na internet?
Precisamos estar muito atentas a quem a gente segue. A internet é uma vitrine, todo mundo ali expõe suas vidas. Mas ninguém expõe as merdas que vive, e sim o que é bonito. Isso vai mobilizando os nossos desejos. A gente queria ter uma vida perfeita, um casamento perfeito, igual àquela pessoa que a gente segue. Ainda ficamos muito vinculados às nossas referências.
Quando você anda de ônibus, não está escolhendo o que vê no outdoor, aquilo é imposto a você. Nos outdoors, vemos propaganda do casal feliz, da mulher com o corpão violão. Isso está construindo seu imaginário. Se no seu Instagram, no qual você escolhe quem seguir, escolher a mesma coisa que é imposta...
As pessoas precisam seguir mulheres que são produtoras de conteúdo feminista, que vivem felizes com seus cachorros, que são casadas com mulheres, que não são casadas com ninguém, que estão construindo seus impérios, com corpos fora do padrão. Essas pessoas existem, então eu posso existir. Pessoas que estão trazendo outros conteúdos que não seja: "Arrume um homem, esteja bela, recatada e do lar". Isso salva.
*Produção: Luísa Tessuto