Dentre as muitas faces que a violência contra mulher tem, uma das mais escondidas e que dificilmente culmina em denúncia contra o abusador é a violência patrimonial, uma das cinco formas de agressão previstas na Lei Maria da Penha. O assunto veio à tona após o relato de Susana Werner, que recentemente se separou do ex-jogador de futebol Júlio César. Em uma sequência de stories em seu Instagram neste domingo (10), ela afirmou que passou por "abuso patrimonial" em seu casamento. Donna já havia conversado com especialistas para esclarecer a questão.
Quando o companheiro toma o controle do dinheiro da mulher, deixa de pagar pensão alimentícia, destrói documentos, priva ou furta a mulher de bens ou recursos econômicos, causa danos propositais a objetos dela ou de que ela gosta, são situações que exemplificam esse tipo de abuso no dia a dia. E resulta que essas atitudes vão, aos poucos, dando controle a um indivíduo sobre a vida da mulher.
Um dos motivos do silêncio, apontam especialistas em direito e psicologia, é a dificuldade em comprovar o abuso: a violência patrimonial dificilmente deixa marcas no corpo, mas fere a autoestima e a liberdade das mulheres.
— A maior parte das pessoas vai denunciar quando sofre agressão física, quando está sendo ameaçada ou quando a situação já envolve os filhos. A violência patrimonial às vezes acontece quando o companheiro joga o celular da companheira na parede, em uma briga, ou começa a acessar o smartphone dela sem permissão. Também envolve questões de dinheiro, como, numa separação, as ameaças de "se tu não ficares comigo, eu vou tirar teus bens". Essas ameaças podem ser enquadradas como uma violência patrimonial — afirma Renata Teixeira Jardim, advogada, integrante do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres e coordenadora da área de violência na Themis, organização gaúcha que visa ampliar o acesso das mulheres à Justiça.
As principais afetadas pela violência patrimonial são mulheres negras e periféricas, explica Simone Paulon, professora do curso de Psicologia da UFRGS e coordenadora da Clínica Feminista da universidade, um programa de extensão para atendimento a mulheres em situação de vulnerabilidade. Durante esses atendimentos, a psicóloga tem deparado com relatos de mulheres de baixa renda, mães e chefes de família que sofreram muito ao longo da pandemia. Cerceadas de possibilidades de trabalho, elas ficaram mais tempo em casa e se viram em situações onde seus companheiros se apropriaram de seus CPFs e auxílios emergenciais.
— Utilizaram o momento de fragilidade aumentada em que as mulheres estavam para cometer esse tipo de crime. É algo que se retroalimenta. Quanto mais dependentes elas ficam, mais fragilizadas e à mercê da violência patriarcal elas se encontram. Quanto mais à mercê da violência, mais vão se afastando de seus recursos e possibilidades de autonomia gerando renda para si. Uma vez sem autonomia para acessar seus direitos e fontes de sobrevivência, vão ficando mais e mais vulnerabilizadas — afirma Simone.
Esse tipo de violência é motivado, em parte, pela forma como a nossa sociedade é estruturada e por alguns valores que carrega. Segundo a advogada Renata, como a nossa cultura continua a propagar conceitos e papeis sociais como o de que "o homem deve ocupar o papel de provedor, deve ser o que manda, o que banca", quando isso não ocorre, nascem tensionamentos que podem culminar em situações de violência patrimonial. Um exemplo clássico é quando o parceiro passa a utilizar o carro da mulher sem seu consentimento.
O esforço em continuar investindo em relações nas quais abusos como esse estão presentes, segundo Renata, também tem a ver com a idealização do amor romântico e a pressão que a mulher sofre numa sociedade em que muitos consideram que mulher, para estar feliz e realizada, precisa estar em uma relação.
— Mulheres que tem grana e tem autonomia também estão sujeitas à violência e tentativas de controle. Pode ser fruto de um incômodo do cara que não está conseguindo ser "o provedor", uma ideia que considero ultrapassada. Nesse sentido, a tensão relacionada a esses papeis faz com que ele assuma esse papel da violência e do controle pra poder colocar-se num lugar de prestígio social — afirma Renata.
Também mulheres herdeiras são vítimas de violência patrimonial, relata a psicóloga e pesquisadora Simone: partindo de uma ideia machista de que cuidar de terras, negócios, patrimônio e dinheiro não é "coisa de mulher", muitas filhas são privadas do seu direito à herança familiar.
— É uma realidade muito escondida. As mulheres são excluídas, muitas vezes com a conivência de maridos, juízes e da família. Parte-se do princípio de que as mulheres não sabem gerenciar bens e que, se não "casarem bem", é melhor deixar que os homens administrem os bens da família — afirma.
Atenção aos sinais
Pode servir de alerta para a violência patrimonial os casos em que o companheiro começa a mexer no celular da mulher sem permissão, tenta controlar sua vida profissional ou insiste que a mulher não siga na carreira, muitas vezes argumentando que ela deve responsabilizar-se mais pelos filhos, observa Renata.
— Um alerta é quando é só o parceiro que cuida das finanças e, por exemplo, em uma conta conjunta, a mulher não estar a par de quanto dinheiro tem na conta, quanto gasta no cartão. Esses pequenos controles, quando em excesso, produzem situações de vulnerabilidade que podem provocar uma violência, não só patrimonial mas de outros tipos — afirma a advogada.
Buscando ajuda
A dica das especialistas é que mulheres que se perceberem em situações de violência patrimonial tentem romper com o silêncio buscando redes de apoio, conversando com amigos, colegas de trabalho, se informando sobre a Lei Maria da Penha e sobre associações e coletivos de mulheres que podem acolher uma pessoa em situação de sofrimento.
O número 180, que é a Central de Atendimento à Mulher, e o aplicativo PenhaS também são ferramentas das quais a vítima pode dispor.