Por Gabriela Souza
Advogada especializada em direito das mulheres
Às vésperas do aniversário de 15 anos da Lei Maria da Penha (a ser completado no dia 7 de agosto), da terra de Maria da Penha, o Ceará, vem mais uma prova de que o Brasil não aprendeu nada sobre a promoção dos direitos humanos das mulheres. No dia 11 de julho, Pâmella de Holanda, mulher do artista conhecido como DJ Ivis, divulgou cenas em que é espancada pelo companheiro. As imagens foram compartilhadas dias depois de a jovem prestar queixa contra o músico por violência doméstica.
As cenas captadas por câmeras instaladas em casa mostram que, em pelo menos duas ocasiões, as agressões foram testemunhadas por terceiros – que pouco ou nada fizeram para deter o agressor. Reflexo de uma sociedade e de um país que simula perplexidade em redes sociais mas que mantém impassível às vítimas do machismo.
Também foi neste mesmo país que, há cerca de um mês, ao acompanhar uma cliente em um registro de ocorrência, fui surpreendida com a notícia de que uma medida protetiva demoraria um mês para ser deferida, quando o prazo legal é de 48 horas. Fui informada de que o “acúmulo” de trabalho tornava impossível o deferimento da proteção nesse tempo. Se tivesse sorte, em 15 dias...
A partir desses dois episódios, que ilustram o dia a dia de quem protege os direitos humanos das mulheres, passei a pensar que enquanto sociedade devemos novas desculpas a Maria da Penha e a todas as mulheres que sofrem violência.
A Lei Maria da Penha não é um presente da nação para as mulheres, mas o resultado da condenação do país pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em 2001, a Corte apontou negligência e omissão do Brasil em relação à violência doméstica, ilustrada pelo caso da farmacêutica cearense, que ficou paraplégica em uma tentativa de feminicídio do marido e passou por um calvário judicial para responsabilizar seu agressor.
Nosso país é signatário de tratados internacionais que se comprometem a erradicar a violência contra as mulheres, e é reconhecido por ter uma das legislações de gênero mais sofisticadas do mundo. Ao mesmo tempo, é conhecido por violá-la. Seguimos negligenciando, relativizando, questionando as mulheres.
A Lei Maria da Penha é um pedido de desculpas do Estado para as vítimas, representadas pela mulher que dá nome à legislação – nome tão simbólico este de Maria, tão comum e forte no nosso país. Mas, como nos ciclos de violência dos relacionamentos tóxicos, nos quais após bater o agressor se desculpa, o pedido de perdão é da boca para fora. O Brasil segue virando as costas às mulheres, situação agravada por um governo que legitima e praticamente incentiva a violência contra a mulher – apregoando a compreensão de que são loucas e indignas de confiança.
O Brasil segue não querendo ver o que acontece nos nossos lares e, sejamos honestas, hoje só estamos chocadas com a situação porque a vítima tinha câmeras de segurança. As mesmas câmeras que imaginamos nos proteger de bandidos violentos nas ruas descortinam a violência em casa.
Pâmella (agredida pelo DJ Ivis) tinha câmeras em casa. Talvez tenha recorrido a isso porque teve sua palavra questionada.
Fico imaginando se toda casa tivesse uma câmera para filmar, o quanto a sociedade se chocaria com o que veria. E o quanto nós nos apresentamos como telespectadores da naturalização da violência. Não gostamos do que estamos assistindo e trocamos de canal, simples assim. Nos alienamos para não precisar nos envolver. E assim, muitas vezes, ao presenciarmos a violência, somos aqueles que não só trocam de canal, como observamos a notícia mas não fazemos nada para mudar.
Pâmella tinha câmeras na sala e no quarto. Talvez tenha recorrido a esse artifício porque teve sua palavra questionada. Ivis já havia registrado boletim de ocorrência contra ela, como muitos pais fazem que mulheres que denunciam mães alienadoras. Temos de pedir desculpas a Maria da Penha, a Pamela e a todas as mulheres do Brasil, porque a maioria ainda não entendeu a lei que poderia evitar que cenas tão dolorosas ocorressem todos os dias. Isso sem falar no quão absurdo é o fato de uma mulher precisar gravar sua própria casa para provar que não está mentindo.
A Lei Maria da Penha prevê que é obrigação de todos – do Ministério Público, da Defensoria, do Judiciário, das polícias, da sociedade e de cada um individualmente – a missão de punir e erradicar todas as formas de violência, especialmente a doméstica. Quinze anos depois, ainda brigamos para que uma medida protetiva seja concedida em 48 horas, para que não seja apenas um papel manchado de sangue após a violência ser fatal; para que se entenda que violência psicológica e patrimonial também são crimes; para que se entendam os princípios mais básicos que determinaram que essa lei seja necessária e, ainda, urgente. Desculpa, Marias, não conseguimos cumprir o básico.
Aos leitores, proponho que a gente não troque de canal, não vire para o lado e olhe bem a fundo essa ferida exposta que nos mata diariamente e naturaliza as violências nos corpos das mulheres. Esse filme a que assisto diariamente pode ter um final diferente, e essa receita passa por uma atitude muito simples: em caso de briga entre marido e mulher, a gente mete a colher.