É só olhar as mochilas, as lancheiras e as camisetas para perceber que o universo dos super-heróis, definitivamente, deixou de ser considerado “coisa de meninos”. Esse processo é acompanhado de um protagonismo crescente das mulheres nas histórias, com habilidades diversas, consolidando modelos fortes para as meninas se espelharem.
Na última década, obras com foco em figuras femininas ganharam as telas, como Mulher-Maravilha e Capitã Marvel. Críticas à parte, a quarta fase do Universo Cinematográfico Marvel investe com força nesse movimento, em produções solo (como o filme Viúva Negra e a série Ms. Marvel) e papéis importantes em títulos como Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Há ainda mais diversidade, com diferentes nacionalidades e sexualidades, como mostram Kamala Khan e America Chavez.
Até mesmo nas atrações infantis elas têm ganhado destaque, como em Super Hero Girls, da DC. Além disso, roteiros e comportamentos evidenciam que novas discussões já têm espaço à mesa. Na recém-lançada Mulher-Hulk, por exemplo, a super-heroína lida com questões como julgamentos, abusos e dúvidas sobre sua capacidade.
— A mulher não está mais à espera de um homem que a salve ou lhe dê um lugar de valor, o que passa a ser buscado por ela própria — explica a psicóloga e psicanalista Fernanda Hoff, destacando que hoje as personagens precisam ter um valor que vá além da beleza, como serem lutadoras.
Essa transformação fica explícita, especialmente, em suas características, em seus figurinos (menos hipersexualizados), em suas atitudes e em suas relações, fortalecendo, desta forma, uma identidade por completo, como na vida real. E essas figuras poderosas, cada vez mais relacionáveis e comuns na infância feminina, ajudam a moldar a visão de mundo e estimulam o desenvolvimento das meninas, assim como a compreensão de suas capacidades.
Compreendendo a mudança
Conforme Adriana Amaral, coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Cultura Pop (Cultpop) e professora de Comunicação da Universidade Paulista (Unip), a potencialização das mulheres à frente das aventuras ocorre devido a diferentes fatores: a reivindicação de fãs e de movimentos sociais; o poder das redes sociais, que possibilitam dialogar com as indústrias e criticá-las; e, é claro, a percepção do mercado sobre as oportunidades financeiras que se apresentam ao abrir-se o leque de opções.
A doutoranda em Comunicação Larissa Becko, que desenvolveu uma pesquisa sobre fãs de super-heróis e atualmente estuda franquias de cultura pop, observa que há cada vez mais mulheres circulando nesse meio.
As especialistas ressaltam ainda que não é possível desvincular esse avanço de uma presença maior de artistas femininas nas produções. Elas trazem um outro olhar, construindo figuras que conversam com a sua realidade.
— A cultura pop sempre acompanha ou antecipa questões. Às vezes, ela é mais conservadora, mais progressista, mas vai se moldando e só sobrevive porque está em diálogo com a sociedade e com todo o resto — acrescenta Adriana.
O movimento é influenciado, ainda, pelas conquistas das mulheres, além de levantar uma questão temporal – com a Geração Z, que são os jovens adultos, tendo uma identidade atrelada a causas sociais e exigindo produtos que abarquem isso.
Heranças afetivas no consumo
Larissa Becko aponta que, durante seu estudo sobre a construção de identidade a partir dos super-heróis e dos quadrinhos, descobriu que, muitas vezes, o hábito de consumo é herdado dos pais ou introduzido por alguém da família.
É o caso da pequena Agnes “Batgirl”, como ela se autointitula, três anos, filha do Batman e da Batgirl. Desde cedo, encantou-se com o mundo dos super-heróis ao ver os pais vestidos como personagens “saírem para salvar o mundo”. Agnes é fã de super-heroínas, por serem “fortes”, e gostaria de ser uma delas.
— Ela acaba pegando alguma característica das personagens quando assiste, como da Mulher-Maravilha, que é determinada, e aí quer subir nas coisas, pular, fazer pose de luta — conta a mãe, Nathália Bacagini, 23 anos, gerente de loja e cosplayer profissional, que considera a atitude positiva, por estimular a imaginação de Agnes.
Consequentemente, a afinidade com os heróis deixa os pais orgulhosos.
— Acho legal ela curtir, pela parte de entender o que é certo e errado, se inspirar em pessoas que fazem o bem, como o Homem-Aranha, que ela adora, e a Batgirl, que não tem poderes, mas usa a tecnologia e a inteligência. É legal ver ela se inspirando em mulheres fortes, guerreiras, que fazem a diferença — defende o padrasto, Joe Rabelo, 39, motorista e também cosplayer profissional.
Identificação com as personagens
A participação das meninas na compra de produtos licenciados, na leitura de quadrinhos, nos cosplays, nos vídeos de reações online, nas sessões de cinema e nas convenções de cultura pop mostra que a identificação com os superseres é uma realidade em suas vidas.
— Acho que para as próprias crianças tem um caráter de mostrar que as meninas podem ser, sim, o que quiserem e estar onde quiserem — afirma a doutoranda Larissa Becko.
Adriana Amaral conta que vê muitas mães levando as filhas ao cinema e avalia essa identificação como positiva.
— Quando elas podem se ver inseridas nessas histórias, melhor. Então, quanto mais tipos diferentes de personagens, melhor, porque vai ter uma pluralidade de vozes, de entendimentos — pontua, destacando que a diversidade nas representações passa ainda uma mensagem de tolerância e respeito.
Para a psicóloga e psicanalista Fernanda Hoff, esse processo é saudável quando a criança se identifica com alguma cuidadora, tendo essa figura como um modelo, e vê traços que se relacionem com os de sua convivência. As heroínas ocupam, assim, um lugar simbólico de representar o ideal de conquistas na vida e no mundo e fazem ecoar a autoestima e confiança que surgem do cuidado.
Porém, quando elas são colocadas no lugar das figuras primordiais, que por algum motivo — seja social, financeiro ou psicológico — não estão conseguindo cumprir seu papel, isso passa a ser perigoso. Isso porque pode haver uma idealização de habilidades impossíveis das heroínas e a substituição de uma relação ativa com a cuidadora, que atua como uma referência essencial para o desenvolvimento da criança, por uma passiva com as telas.
— Claro que uma super-heroína faz com que a criança se identifique, porque está lutando por coisas. A gente pode ajudá-la a entender que existe a força física e a complexidade humana, que é o que importa — reforça.
Relevância da cultura pop no dia a dia
Na visão de Adriana Amaral, o protagonismo das mulheres nas superaventuras é importante, pois a cultura pop faz parte do cotidiano e traz representações e reflexões que ajudam até mesmo a compreender questões pessoais. Nikelen Witter, doutora em História Contemporânea, professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e escritora, concorda:
— A gente vê meninas muito jovens tendo essa consciência do lugar que ocupam, que não podem ser diminuídas nem caladas — afirma ela.
Já a psicóloga comenta que é importante que as meninas tenham figuras nas quais possam se espelhar, que sejam éticas, busquem seus ideais e falem sobre realizações.
— Ter o super-herói como também uma figura que está ali com força é uma forma de sair da realidade das relações para a da fantasia, o que é muito importante para uma criança crescer, para o imaginário dela. Porque é onde que criamos primeiro, para depois ir para o mundo real — declara Fernanda Hoff.
Recepção e boicote
Mesmo com os avanços, as indústrias demoraram muito tempo para perceber o potencial de consumo em outros grupos, defendem as pesquisadoras. Adriana Amaral atribui a demora ao medo de arriscar, em termos financeiros. Apesar disso, para Larissa Becko, o mais importante é o reconhecimento da falha e a tentativa de reparação.
De qualquer maneira, boicotes e críticas, vinculados a esse receio dos estúdios e oriundos da rejeição de grupos sociais tradicionais, acompanharam o tão esperado investimento. Contudo, na opinião de Adriana, os ataques representam uma minoria que se utiliza de estratégias para ecoar. Por esse motivo, ela vê uma aceitação cada vez maior da presença feminina nesses espaços.
Há ainda outras questões, a exemplo de quais são as representações identitárias mais adequadas. As habilidades das super-heroínas também são passíveis de problematizações, por estarem atreladas a uma idealização da capacidade das mulheres lidarem com muitas coisas ao mesmo tempo – algo presente em nossa cultura.
As pesquisadoras, além disso, citam pontos que ainda podem ser melhorados, como as motivações das personagens e a constante padronização dos corpos. Outras possibilidades a serem exploradas envolvem a falta de mais vilãs ou de diferentes formas de as mulheres exercerem o poder, como na pele de cientistas.
Para Nikelen, também é preciso quebrar preconceitos dos pais em relação ao processo de leitura e consumo desses produtos pelas crianças – sejam filmes, livros ou HQs. A historiadora sustenta que não adianta tentar proibir o consumo, sendo necessário participar.
Um passo à frente
O cenário atual, explica Nikelen Witter, é possível graças a um avanço histórico, que remonta à criação da Mulher-Maravilha, nas primeiras décadas do século 20. Ela é criada por um grupo, representado pelo psicólogo William Moulton Marston, na primeira onda do feminismo. Na visão dele, as histórias em quadrinhos desempenhavam um papel formativo nas crianças; havia um pensamento elaborado na raiz da amazona, no intuito de levá-la para as meninas, já que os meninos tinham o Super-Homem e o Batman.
— Ele queria uma super-heroína em que elas pudessem se espelhar, sentirem-se fortes, capazes, com opinião e bastando-se. Elas teriam uma relação com os homens, mas isso não diminuiria seu tamanho — explica a historiadora.
O sucesso estrondoso provou a importância da personagem. Porém, ao despertar interesses, a Mulher-Maravilha sai das mãos dos criadores, torna-se mais sexualizada e se afasta do namorado. Além disso, no pós-guerra, há uma ideia do retorno das mulheres ao lar. Assim, durante muito tempo, as personagens femininas apareciam, mas quase sempre como acessórias ou subordinadas a grupos, como o Quarteto Fantástico ou X-Men.
Nos anos 1980, as mulheres ainda eram obrigadas a ler quadrinhos nos quais estavam subrepresentadas e sexualizadas. As figuras femininas apareciam, muitas vezes, como uma desculpa para a motivação do herói e morriam, geralmente vítimas de violência extrema. As críticas, então, trazem à tona o fato de que havia leitoras e que elas estavam insatisfeitas, gerando um processo de abertura para as mulheres, que começam a se inserir nas equipes de criação.
É nessa década e na próxima que as mulheres começam a ocupar o espaço como heroínas com mais força. As primeiras mudanças, na percepção da historiadora, ocorreram com os X-Men.
Na virada do século 20 para o 21, impulsionada pela quarta onda do feminismo, passa a existir uma demanda maior. As mulheres deixam de aceitar essa representação, pois também são consumidoras – sobretudo a partir da segunda década do século 21, com a chegada da Viúva Negra aos cinemas junto aos Vingadores, sem superpoderes, apenas com habilidades impressionantes, despertando as meninas.