Livros, livros. Emendo uma leitura na outra, são boias para enfrentar o fim do inverno e o frio do luto: me despeço de um tempo que não voltará e de um "eu" que, novamente, se transforma. Despedida de mim, boas-vindas a mim.
Entre tantos títulos, cito dois: o magnífico Misericórdia, da portuguesa Lídia Jorge, e Nós, da brasileira Tamara Klink. Um em aparente oposição ao outro. O primeiro narra os becos sem saída da velhice, na voz de uma idosa internada em uma casa de repouso.
Em meio a outros internos e com a morte em seus calcanhares, ela não se entrega ao derrotismo e mantém a cabeça em heroica ebulição: em troca, deseja ser poupada. Da demência, do abandono, dos maus-tratos. Novos moradores chegam e outros desaparecem de repente, deixando seus assentos vazios no refeitório: não acordaram, nem acordarão. Cada dia é uma vitória vencida contra a pior noite, aquela que se tornará permanente, e está prestes a chegar.
O outro livro é o contrário. No auge da juventude, aos 20 e poucos anos, Tamara abre seu diário de bordo e nos deslumbra: não quer ser poupada de nada. Nascida na beira da praia, tendo passado a infância vendo seu pai navegar sozinho pelo mundo e retornar para contar, ela investe na mesma aventura, a seu modo: compra um barco e iça as velas, fazendo travessias solitárias que lhe exigem simplesmente tudo: desde consertar cabos e enfrentar ondas gigantes, até lidar com a ausência de qualquer voz e períodos de sono que não excedem 10 minutos.
Uma mulher perto do fim e uma mulher em seu início, ambas com a mesma coragem diante das incertezas, e tentando responder uma pergunta formulada por Tamara, mas que serve para ambas, e para nós: como pode tanta liberdade e tanta renúncia caberem num espaço tão pequeno?
Espaço pequeno: o barco, a vida. Navegamos, todos, ao sabor da correnteza, fazendo o melhor que podemos para não afundar. Na juventude, não queremos ser poupados de nada, emoções e riscos nos atraem, aguentamos noites insones, frutas vencidas e temos pernas e braços para o que vier. Na velhice, nos poupem: das conversas chatas, de comida sem gosto, e parem de encontrar defeitos em nossa saúde, basta de medicação.
Que sorte ainda estar entre os dois extremos. Não me poupo das viagens, mas já me poupo das roubadas. Não me poupo do amor, mas recuso a dependência. Nem barco em alto-mar, nem casa de repouso. A vida navegando no meio – já pendendo, claro, para um lado, mas em curso. Durante as calmarias, sob um céu nebuloso, me apego ao sossego moderado dos livros: corpo inerte, a mente em chamas. Quando o vento vira, e ele está virando, atenção plena, coração aos pulos, o corpo exigido ao máximo: nada de deixar a pior noite se aproximar. Olha o sol ali, aparecendo.